Fora Bolsonaro

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Por Valerio Arcary*

Três notas em defesa de um pedido de impeachment unificado de esquerda

1.

A esquerda brasileira está diante de um dilema tático. Apresentar ou não um pedido unificado de impeachment de Bolsonaro na hora em que a pandemia vai precipitar uma situação de calamidade social. Mas o dilema tático é expressão de uma divergência estratégica. O PSol decidiu incorporar o “Fora Bolsonaro” à sua agitação política, associado ao eixo “Salvar vidas”, desde a última semana de março. O PT abraçou o “Fora Bolsonaro”, há duas semanas. As Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo adotaram o “Fora Bolsonaro”. No terreno da luta social, entidades onde a influência do PC do B é grande, como a UNE, defendem o “Fora Bolsonaro” e, em resolução de 19 de abril do Comitê Central, decidiu pela forma “Basta de Bolsonaro”.

Para qualquer trabalhador defender “Fora Bolsonaro” significa “Abaixo o governo”, portanto, no terreno parlamentar, a apresentação de um pedido de impeachment, que é o principal recurso institucional disponível para deslocar a presidência. Só que até agora não se conseguiu articular uma iniciativa comum impulsionada pelos partidos de esquerda. Por quê?

Parece um mistério, “só que não”. Nesse contexto nebuloso de jogo de sombras, o PSol está recolhendo assinaturas de entidades e lideranças, e decidiu apresentar um pedido de impeachment, ainda que, sozinhos. Mas não é, evidentemente, a melhor solução. Não o fará por excesso de protagonismo, pela sedução das luzes da ribalta, ou por impulso sectário.

Caberia ao principal partido de esquerda assumir o papel de aglutinar a Frente Única. A hesitação diante da campanha pelo “Fora Collor” em 1992 não deve ser esquecida, e não pode ser diminuída. O PT chegou atrasado seis meses. Muito atrasado. Só se engajou depois das manifestações de massas da juventude estudantil na segunda semana de agosto.

Seria, realmente, lamentável uma repetição. Seria muito mais grave agora. Bolsonaro não é Collor. Bolsonaro é o máximo líder de uma corrente neofascista. Não vai cair sem luta. Se não houver uma esquerda determinada a se apoiar na mobilização popular para derrubá-lo, pode recuperar a iniciativa que perdeu nos últimos dois meses

2.

A conjuntura política mudou há, pelo menos, um mês, porque assistimos a um enfraquecimento relativo do governo, a principal instituição do regime, embora a situação, uma periodização que remete, essencialmente, à relação social de forças, permaneça reacionária. A relação política de forças afere no terreno superestrutural a posição do governo com as outras instituições do regime (Congresso, Judiciário, Forças Armadas), a luta entre os partidos, o papel da mídia, o lugar das associações e entidades representativas, etc.

São dois graus de abstração distintos para atribuir sentido à dinâmica dos acontecimentos. Dentro de uma mesma situação se alternam diferentes conjunturas. O que define uma situação é a posição recíproca das classes. A classe trabalhadora continua em uma posição defensiva. Mas mudou a conjuntura porque se alterou a relação da maioria da classe dominante, e da nova classe média urbana, uma fração importante das camadas médias da sociedade, com o governo Bolsonaro sob o impacto da pandemia.

Bolsonaro tinha sofrido revezes, antes da pandemia, como a divisão pela metade do partido que o elegeu, o episódio grotesco de seu secretário da Cultura imitando um nazista, ou a ruptura com Witzel e Dória. Mas o negacionismo e a tentativa bonapartista de assalto à Polícia Federal provocaram as rupturas de Mandetta e, sobretudo Sergio Moro, que não foram defenestrados, ao contrário, se demitiram, e foram qualitativas.

De ofensiva para a preparação de um autogolpe a la Fujimori, Bolsonaro se viu obrigado a fazer concessões ao Centrão para se proteger diante do perigo de um impeachment. Uma inversão de tendência. Não é pouca coisa, se considerarmos como era adversa a conjuntura em novembro do ano passado.

Ainda há uma importante fração burguesa oferecendo sustentação ao governo de extrema-direita, evidentemente. A reunião no STF de representantes de setores industriais ilustra que o negacionismo de Bolsonaro não é somente uma extravagância ou anomalia pessoal, é uma monstruosidade, uma aberração de uma fração da classe dominante brasileira.

A evolução da situação política estará condicionada, sobretudo, pelo desenvolvimento da pandemia e da crise econômico-social. Teremos trinta ou cinquenta mil mortos até o final de maio? Mas o presidente neofascista ainda não está derrotado, e mantém posições de força: os neofascistas são instáveis, irrefreáveis, incontroláveis.

Não está descartado que diante de um descontrole social, Bolsonaro tente precipitar um Estado de Sítio, por exemplo. Não teria uma maioria no Congresso Nacional, nem seria referendado pelo STF (Supremo Tribunal Federal), mas o pedido seria, talvez, suficiente para atiçar as hordas fascistas em uma escala muito superior a tudo que conseguiu depois que foi eleito.

Um fator limitador da conjuntura é a impossibilidade, por um período, da ação de massas nas ruas pela esquerda, dado o isolamento social. Outro fator que pesa negativamente é a condição de extrema defensiva da classe no terreno econômico. Mas uma esquerda sem “instinto de poder” é um leão sem dentes, é um punho fechado com as mãos nos bolsos.

A mão não pode tremer, porque se abriu uma oportunidade. Por quê? (a) porque a maioria da classe trabalhadora já está contra o governo; (b) porque o apoio ao governo já é inferior a um terço da população; (c) porque é uma forma da esquerda disputar a liderança da oposição a Bolsonaro; (d) porque coerência tem importância, e a legitimação do impeachment vem do “Fora Bolsonaro”, não é senão a sua tradução parlamentar, ou então o “Fora Bolsonaro” está errado; (e) porque Bolsonaro é o centro da crise diante da pandemia e crise econômica, e há que tentar detê-lo, antes que recupere forças e tente o autogolpe.

3.

O argumento mais forte contra a apresentação de um pedido de impeachment é que seria “provocar o leão com vara curta”. Esgrime a ideia de que um impeachment feito pela esquerda seria o que Bolsonaro deseja para se colocar em posição de legítima defesa. Em outras palavras, seria uma tática ultraesquerdista.

O argumento impressiona, mas está errado, diante da mudança da conjuntura. Não é senão uma nova versão da tese de que seria “errado polarizar contra Bolsonaro”. A aposta tática de evitar o confronto com Bolsonaro repousa na estratégia de que o melhor seria desgastá-lo, lentamente, para aguardar as eleições de 2022. Ou seja, derrotar Bolsonaro sem correr riscos.

Só que Bolsonaro não é FHC, e 2022 não será como 2002. A premissa é que só podemos avançar com o pedido de impeachment quando existir uma maioria a favor no Congresso. Ou seja, só seria oportuno quando os representantes mais orgânicos do grande capital tiverem chegado à conclusão de que a permanência de Bolsonaro se transformou em um obstáculo disfuncional à ordem social diante da catástrofe da pandemia e da depressão econômica.

Esta aposta é errada, por quatro razões:

(a) a miopia leva a ver a fotografia e não o filme, porque a dinâmica que deve definir a tática do impeachment não é a relação parlamentar de forças de hoje, mas a relação política e social de forças na sociedade em dois meses, quando o impacto apocalíptico das mortes em massa sacudir a consciência de milhões;

(b) a aposta de que Rodrigo Maia e o seu entorno são aliados que merecem confiança para derrotar Bolsonaro, ou mesmo somente detê-lo, é uma ilusão, porque as diferenças táticas que a ala golpista da direita liberal com o governo de extrema-direita são muito menores que os acordos estratégicos que têm com a perspectiva de impor uma derrota histórica aos trabalhadores;

(c) a inércia parece ser orientada pela prudência, mas subestima a capacidade de Bolsonaro no poder relançar uma ofensiva, e recuperar uma parte dos apoios sociais e políticos que perdeu;

(d) a única forma de deter Bolsonaro é com mobilização, não com desânimo, prostração, paralisia, e a hora de iniciativa, coragem, ousadia já chegou, porque há um ódio que se acumula, e o centro da disputa é colocar os mortos no colo de Bolsonaro.

Bolsonaro não vai renunciar, não é um Jânio e tentará um autogolpe, na forma provável de um Estado de Sítio. Não podemos repetir os erros de 1964. O erro não foi provocar, foi não resistir.

*Valerio Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de As esquinas perigosas da história (Xamã).

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