Por MAURICIO FALAVIGNA*
Enquanto no mundo começa-se a discutir um certo valor ao trabalho e ao Estado social, aqui mais que a primazia absoluta do mercado, ainda buscamos o desmantelamento do Estado
“A liberdade leva à desordem, a desordem à repressão, e a repressão novamente à liberdade.”
(Balzac)
Como em todas as ocasiões em que há propostas e discussões caras ao governo e a sua base de apoio, os assuntos na mídia tergiversam para polêmicas em torno da figura do presidente e de agressões calculadas. Enquanto as privatizações, a reforma administrativa e a manutenção do teto de gastos são as obsessões do momento, surgem disparates que ocupam o espaço dos noticiários. Desta vez a própria mídia se colocou à disposição para criar os factoides, já que houve pouca diferença entre o editorial da Folha e a ameaça de agredir um jornalista.
Mas a comédia humana também inclui a vida real e, portanto, voltando às intenções do governo…
Enquanto o mundo liberal indignou-se no primeiro momento com a quantidade de provas e argumentos levantados por Piketty que comprovam que, se há uma normalidades incontestável é a de que o livre mercado não distribui a riqueza, mas gera desigualdade crescente e cria oligarquias cujo objetivo final é o de abarcar o Estado e minar qualquer aspiração democrática, hoje essas ideias já foram assimiladas por importantes atores políticos do mundo civilizado.
Partidos de esquerda e centro-esquerda validaram essa argumentação no debate político, e até mesmo parte do discurso liberal assimilou o golpe. A forma do capitalismo passou a ser questionada, assim como a do papel social do Estado, as ideias de taxação progressiva, de impostos sobre os ricos e uma necessária redução das desigualdades.
No entanto, por aqui, a selvageria dos anos 80 faz sucesso com a elite. Guedes deve ter sua sala decorada com cartazes de Tatcher e Reagan em cores berrantes. Se considerarmos a cena histórica como o embate político entre Capital e Trabalho (o que não há em Piketty), foi um período em que os interesses dos trabalhadores foram massacrados por políticas antissindicais, desemprego e achatamento salarial. Primeiro se deu a perda do governo, em seguida a desmobilização e a crise salarial e de emprego, por fim uma perda política que aproximou até os partidos de oposição da agenda liberal.
Em Piketty, quando afirma que o retorno sobre o capital sempre supera o crescimento da renda, é colocada uma contradição capitalista. Para Marx seria uma regra ou lei: é o desequilíbrio de poder entre Capital e Trabalho que leva a essa constante. E a história nos mostra que isso vai até levar o achatamento do consumo a níveis em que não se absorve o produto do capital. E, quando se necessita de um aumento de demanda, volta-se a dar um certo valor ao trabalho e ao Estado social. E os caminhos para isso vêm sendo discutidos no cenário internacional.
Mas aqui caminhamos no sentido oposto, percorremos a primeira estrada, hoje globalmente questionada. E, mais que a primazia absoluta do mercado, ainda buscamos o desmantelamento do Estado. Tanto a inação em áreas sociais, quanto reforma administrativa e as almejadas privatizações carecem de sentido lógico, mas liquidam qualquer controle estatal sobre o jogo econômico e reduzem consideravelmente as possibilidades de investimento. Sem contar áreas sociais, que ficariam à mercê da filantropia e da iniciativa privada – duas fontes de investimento que jamais reduziram a desigualdade, que mantêm o status quo. A liberdade do mercado leva ao desespero e aos gritos, estes farão nascer a repressão e o jogo deveria seguir até a retomada do poder por valores que privilegiem a visão do trabalhadores. Mas que Estado sobrará após essa devastação?
O mais impressionante, no caso brasileiro, é a voz única que ecoa nos debates públicos construídos pela mídia. Por mais que haja personagens que se esgoelem contra a política econômica deste governo, não encontraremos um depoimento sequer em noticiários que aponte a irracionalidade do teto de gastos, da criminalização do funcionalismo público, das privatizações de setores estratégicos, do esfacelamento de empresas como a Petrobras, Correios, Caixa e Banco do Brasil. Os interesses do capital são mascarados como forças naturais, como a única estrada a trilhar.
Piketty entrevê soluções políticas para o horror capitalista, enquanto Marx disseca o horror da vida sob esses princípios. Como leitores ávidos de Balzac, com mais ou menos ódio, ambos usam como exemplo o mesmo ser humano para pintar o egoísmo e a ganância que se espraiam pelas relações humanas. Mas, seja nos tons pastéis de Piketty, ou na paleta expressionista do alemão, ambos sabem que, na selvageria dessa reconstrução da realidade brasileira levada a cabo pela primazia do mercado, como diria o romancista, o “privilégio de sentir-se em casa em qualquer lugar pertence apenas aos reis, às prostitutas e aos ladrões”. Não sobrará país algum.
*Mauricio Falavigna é historiador. Autor do livro Inclusão digital – vivências brasileiras.
Publicado originalmente no site reconta aí