Antigo Testamento e capitalismo

Imagem: Tima Miroshnichenko
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Antigo Testamento e capitalismo

Por JOSÉ MICAELSON LACERDA MORAIS*

Há diferenças significativas na forma como esses sistemas abordam a propriedade e a distribuição de riqueza

Estava supermercado, depois de passar as mercadorias no leitor, a atendente perguntou se o pagamento era no crédito ou no débito. No que respondi “é no Deus te pague”. Ela riu, mas não aceitou. Retirei o dinheiro do bolso e fiz o pagamento. Então, depois fiquei pensando sobre a importância e as implicações de cada uma dessas duas formas de divindade nas nossas vidas, e na sociedade que criamos a partir delas.

 

Diferenças

A economia descrita no Antigo Testamento é baseada em sistemas agrícolas e comerciais simples com ênfase em leis de justiça social e respeito à propriedade. O capitalismo, por outro lado, é uma economia de mercado baseada na livre iniciativa e na busca incessante pelo lucro. Busca que engendra um processo autossustentado de desigualdade econômica, tido como uma característica comum inerente ao próprio sistema; no qual os trabalhadores assalariados são frequentemente explorados e sujeitos a condições de trabalho precárias.

No Antigo Testamento, a terra e os recursos naturais eram vistos como um bem comum que pertencia a toda a comunidade e as leis protegiam os direitos dos agricultores e dos pobres a seu uso. Já no capitalismo a terra e os recursos são propriedade privada e podem ser comprados e vendidos livremente, resultando em concentração de riqueza e desigualdade, resultado da exploração e predação desenfreada da vida humana (trabalho social) e não humana (recursos naturais).

Além disso, no Antigo Testamento, era proibido aproveitar-se de situações de necessidade para lucrar, como a venda de alimentos em tempos de escassez. No capitalismo, porém, a lei da oferta e da procura prevalece e os preços aumentam em situações de escassez favorecendo os vendedores e prejudicando os compradores.

Outra diferença entre a economia do Antigo Testamento e do capitalismo está na abordagem dos contratos comerciais. No primeiro havia regras claras sobre como os contratos deveriam ser feitos e como resolver disputas. Por exemplo, era proibido cobrar juros excessivos dos pobres e havia medidas para proteger os mais vulneráveis em suas transações comerciais. Os juros excessivos eram vistos como uma forma de opressão aos pobres. Já no capitalismo, o mercado é regulado pela lei da oferta e da procura e os contratos são baseados na busca pelo lucro máximo, independentemente das consequências sociais e éticas.

No Antigo Testamento havia instituições como o ano sabático e o ano jubilar que visavam preservar a igualdade econômica e a proteção dos mais pobres. Já no capitalismo não há mecanismos similares para redistribuir riqueza e corrigir desigualdades econômicas. Nesse contexto se faz importante destacar que a economia do Antigo Testamento era uma economia agrícola e comunitária, fortemente influenciada por valores éticos e morais, como a justiça, a compaixão e o cuidado com o próximo. Enquanto o capitalismo é uma economia baseada no mercado e na propriedade privada, onde a ética e a moral são considerados formas subjetivas e secundárias em relação ao lucro e à maximização de ganhos.

No Antigo Testamento a propriedade era considerada um bem coletivo e as terras eram frequentemente redistribuídas para garantir a igualdade econômica. Já no capitalismo a propriedade é privada e as pessoas são livres para fazer o que quiserem com sua propriedade, incluindo explorar os trabalhadores e a natureza.

Na economia do Antigo Testamento a propriedade privada era vista como uma bênção divina e era importante para a proteção dos indivíduos e suas famílias. De maneira semelhante, a economia capitalista valoriza a propriedade privada como uma forma de proteger os direitos individuais e incentivar o empreendedorismo. As semelhanças incluem também a ideia de que a propriedade é um direito fundamental e que as pessoas devem ser livres para adquirir, vender e trocar bens e recursos.

No entanto, há diferenças significativas na forma como esses sistemas abordam a propriedade e a distribuição de riqueza. No Antigo Testamento, a propriedade era vista como uma forma de assegurar a sobrevivência da família e da comunidade e havia proteções em vigor para impedir a acumulação excessiva de riqueza por parte de indivíduos ou famílias. Já no capitalismo a propriedade é amplamente vista como um mecanismo para aumentar a riqueza individual e o lucro empresarial, o que resulta inelutavelmente em desigualdades sociais e econômicas significativas.

A propriedade privada capitalista, na qual os recursos e meios de produção são controlados por indivíduos ou empresas para obter lucro, promove uma sociedade de injustiças e desigualdades porque promove: (1) exploração dos trabalhadores: o sistema capitalista é baseado na busca pelo lucro máximo, o que leva as empresas a explorarem seus trabalhadores, pagando salários baixos e exigindo horas extras sem remuneração adequada; (2) desigualdade de renda: a propriedade privada dificulta a distribuição equitativa da riqueza, concentrando-a nas mãos de poucos. Isso leva a uma enorme desigualdade de renda, onde a classe mais rica acumula a maior parte da riqueza, enquanto a classe mais pobre luta para sobreviver; (3) falta de acesso à bens e serviços básicos: a falta de acesso à saúde, educação e habitação adequada, por exemplo, é resultado da concentração de recursos nas mãos de poucos indivíduos ou empresas; (4) exclusão social: a propriedade privada capitalista leva ao surgimento de uma sociedade dividida, onde os membros da classe mais rica se beneficiam da realidade dos demais, tornando-se cada vez mais desumanos e desrespeitosos.

A propriedade privada capitalista é baseada na acumulação de riqueza e poder pelos indivíduos que possuem mais meios financeiros. Isso significa que as empresas e a terra são controladas por uma minoria rica, o que conduz a uma concentração de poder econômico e político nas mãos de poucos indivíduos. Resulta dessa forma de propriedade a exploração dos trabalhadores, desigualdade de renda, acesso limitado a bens e serviços básicos, falta de proteção social para os mais vulneráveis, entre outras injustiças. Além disso, a propriedade privada capitalista também leva a problemas ambientais, como a degradação do meio ambiente em nome do lucro, afetando negativamente a vida de muitas pessoas e comunidades inteiras.

Nesse sentido, a propriedade privada capitalista é uma fonte de muitas desigualdades e injustiças, e é importante que sejam consideradas alternativas mais equitativas e sustentáveis que possam promover uma sociedade mais justa e inclusiva para todos.

Outra diferença importante é a forma como as pessoas são remuneradas por seu trabalho. No capitalismo, as pessoas geralmente são pagas com base em sua produtividade e no valor que agregam ao mercado. Já no Antigo Testamento, as pessoas são incentivadas a trabalhar com base em suas necessidades e capacidades e todos devem ter acesso ao suficiente para atender às suas necessidades básicas, independentemente de sua produtividade.

O Antigo Testamento descreve a instituição da servidão como uma forma de resolução de dívidas, uma forma de punição por crimes ou, ainda, de proteção de pobres. Nos dois primeiros casos, por exemplo, alguns israelitas podiam ser vendidos como escravos, mas a servidão era limitada em duração, geralmente sete anos, e havia regras específicas para a tratamento dos escravos. A servidão era vista também como uma forma de proteger os pobres, já que eles eram permitidos a vender-se como escravos para pagar suas dívidas e ter alimento e abrigo garantidos. Além disso as leis do ano sabático e do jubileu eram leis que visavam garantir que a desigualdade econômica não se tornasse crônica e que os pobres tivessem acesso a recursos suficientes para sobreviver. Essas leis entre outras também reforçavam valores éticos e morais, incentivando a compaixão, a honestidade e a equidade na economia.

Há muitos mandamentos e orientações sobre ajudar os pobres e compartilhar as riquezas com os menos afortunados. Por exemplo, há instruções para deixar alguns grãos na colheita para que os pobres possam colhê-los, e para não oprimir os pobres e os estrangeiros. Há também mandamentos para não cobrar juros exorbitantes de outros hebreus, o que seria uma forma de exploração financeira. Inclui ainda instruções sobre o uso ético do dinheiro para evitar enriquecimento injusto. Por exemplo, há proibições contra a fraude, o roubo e o enriquecimento injusto, incluindo o uso de pesos e medidas desonestos no comércio.

Grosso modo, o Antigo Testamento apresenta uma abordagem das questões econômicas enfatizando a importância da justiça, da equidade e da caridade. Ao mesmo tempo ele também reconhece a importância da atividade econômica e incentiva uma economia saudável e produtiva, mas sempre com o objetivo de proteger os mais fracos e necessitados.

No capitalismo o trabalho assalariado constitui-se numa forma de exploração e opressão dos trabalhadores e perpetuação da desigualdade e opressão econômica. O trabalho assalariado é uma forma de relação econômica baseada na exploração da força de trabalho. O trabalhador é obrigado a vender sua força de trabalho ao capitalista, que controla os meios de produção com o objetivo de obter lucro. A diferença entre o valor do trabalho produzido e o salário pago ao trabalhador é a fonte de lucro do capitalista. O trabalhador é visto como uma mercadoria, uma forma de produzir riqueza para o capitalista. A justiça econômica é vista como uma questão secundária, já que a prioridade é a acumulação de riqueza por meio da exploração do trabalho. O sistema capitalista é baseado na competição e na exploração e as leis econômicas são estruturadas para favorecer os mais ricos em detrimento dos mais pobres.

Em síntese, podemos enumerar as diferenças entre os aspectos econômicos do Antigo Testamento e do capitalismo da seguinte forma:

(i) Propriedade: No Antigo Testamento, a propriedade era vista como um dom de Deus e era regulada por leis justas e equitativas. Há muitos mandamentos que orientam sobre a proteção de propriedades, incluindo a proibição de roubo e a proteção dos direitos de propriedade dos estrangeiros. Já na economia capitalista, a propriedade é vista como um direito individual e a acumulação de riqueza é incentivada descontroladamente.

(ii) Mercado: No Antigo Testamento, o comércio era regulado por leis justas e equitativas, como a proibição de exploração dos pobres e a obrigação de tratar os estrangeiros com justiça. Já na economia capitalista, o mercado é regido pelo livre mercado e a competição, o que pode levar à exploração dos mais fracos.

(iii) Desigualdade: No Antigo Testamento havia uma preocupação com a desigualdade econômica, com a obrigação de leis justas para proteger os mais pobres e fracos. Já na economia capitalista, a desigualdade é vista como resultado natural da competição e do livre mercado.

(iv) Responsabilidade social: No Antigo Testamento, havia uma responsabilidade social para com aqueles mais necessitados, como os órfãos, viúvas e estrangeiros. O Antigo Testamento enfatiza a importância da simplicidade e da humildade, encorajando as pessoas a evitarem a ostentação e o materialismo excessivo. Ao mesmo tempo, ele também reconhece a importância da riqueza e da prosperidade, mas sempre com o objetivo de proteger os mais fracos e necessitados. O Antigo Testamento também enfatiza a importância da cooperação e da solidariedade em todas as áreas da sociedade, incluindo a economia. Há muitos ensinamentos que encorajam as pessoas a trabalhar juntas e a apoiarem uns aos outros, e muitos exemplos de comunidades que foram bem-sucedidas devido à colaboração e à unidade. Já na economia capitalista, a responsabilidade social é deixada a cargo das empresas e dos indivíduos e não é obrigatória.

É possível ver que as concepções de economia, servidão e escravidão presentes no Antigo Testamento diferem significativamente da economia capitalista, sendo o primeiro centrado em concepções de justiça econômica e proteção dos direitos dos pobres e dos escravos, enquanto o segundo é centrado na acumulação de riqueza e na exploração dos trabalhadores. Muito embora concordemos que qualquer forma de escravidão e servidão sejam formas de relações sociais socialmente reprováveis e incompatíveis com os valores de liberdade, igualdade e justiça social.

 

A crítica de Lukács

György Lukács, um filósofo e crítico social húngaro do século XX, criticou o Antigo Testamento como uma expressão da cultura bárbara da antiguidade, que se caracterizava por uma mentalidade objetivista e instrumentalista, incapaz de compreender a dialética da vida humana. Nesse sentido, o Antigo Testamento reflete uma sociedade escravocrata, que valoriza a propriedade e a acumulação de riqueza, enquanto nega a dignidade humana e a liberdade individual. Ele também criticou a moralidade da lei mosaica que valoriza a submissão à autoridade divina e se concentra em questões formais, como o cumprimento de cerimônias religiosas e o pagamento de impostos, em vez de questões éticas e sociais.

Conforme Lukács o Antigo Testamento foi usado como um instrumento de opressão pelos líderes da época que usavam a fé religiosa para controlar a população e manter sua posição de poder. Destaca, dessa forma, a relação entre a moralidade da lei mosaica e a escravidão, a opressão e a desigualdade social. Ele desenvolveu sua crítica ao Antigo Testamento em várias obras, incluindo História e Consciência de Classe e Para uma ontologia do ser social. Em sua análise o Antigo Testamento é parte de uma tradição cultural que se concentra em questões formais, como o cumprimento de cerimônias religiosas, e que nega a dignidade humana e a liberdade individual. Ainda podemos observar essa tradição cultural como parte de um projeto mais amplo de opressão, que foi perpetuado pela Igreja cristã e pela sociedade feudal, e que é parte da herança cultural da Europa moderna.

Lukács, em Para uma ontologia do ser social II (1986), afirma que “[…] todas as formas idealísticas ou religiosas de teleologia natural, nas quais a natureza é criação de Deus, são projeções metafísicas desse único modelo real”, a realidade humana. A criação do homem, por exemplo, reflete Deus como um trabalhador do mundo real: “[…] Deus não só – como o sujeito humano do trabalho – revisa continuamente o que faz, mas, além disso, exatamente como o homem, tendo terminado o trabalho, vai descansar. Também não é difícil reconhecer o modelo humano do trabalho em outros mitos da criação, ainda que tenham recebido uma forma aparentemente filosófica; lembre-se uma vez mais do mundo como um mecanismo de relógio posto em movimento por Deus”.

A questão central de Lukács em relação ao Antigo Testamento, ainda em sua obra citada no parágrafo acima, está em demonstrar que o mesmo impede de ver que o homem constrói a si mesmo com o seu trabalho. Pois, nele o homem “deve ver a si mesmo como um produto posto a serviço de potências transcendentes, do qual se deriva necessariamente que toda ação independente fundada no próprio homem, na sua socialidade, encerra em si uma transgressão contra as potências superiores”.

A crítica marxista de Lukács se faz necessária para entender a importância e o impacto do Antigo Testamento na cultura e na história europeia. Pois, a compreensão crítica da moralidade formalista presente no Antigo Testamento é importante para compreender a história da opressão e da luta pela liberdade na Europa.

Em sua obra História e Consciência de Classe (1923), Lukács escreve sobre a importância da conscientização histórica para a luta contra a opressão e a exploração. A consciência de classe é uma ferramenta poderosa para compreender e combater as forças opressivas e de exploração existentes na sociedade moderna (sintetizadas no capital).

 

Entre o Deus do Antigo Testamento e o deus do capitalismo

Algumas passagens do Antigo Testamento são frequentemente criticadas por sua suposta defesa da violência, da opressão e da desumanidade. Por exemplo, há relatos de guerras sangrentas, escravidão, punição severa para certos comportamentos considerados pecaminosos e a discriminação de mulheres, estrangeiros e outros grupos marginalizados.

Essas passagens são problemáticas porque aparentemente justificam a violência e a opressão, e negam a dignidade e os direitos humanos a certos grupos, com implicações negativas para a sociedade, ao perpetuar a discriminação e a exclusão. Além disso, podem ser utilizadas para justificar comportamentos violentos e opressivos ou para negar direitos e liberdades a determinados grupos.

Em Êxodo, 32:27-28, pode-se ler “Então disse Moisés: Assim diz o Senhor, Deus de Israel: cada um de vós ponha a mão sobre a sua espada; e andareis pelo acampamento, de um a outro, e matareis cada um a seu irmão, e a seu amigo, e a seu parente”. Em Números, 31:17-18, assim está escrito “Mataram a todos os varões de guerra entre os que habitavam naquele país, mas deixaram a vida às mulheres e aos pequeninos”. Já em Deuteronômio, 20:10-16, “E, chegando vós perto de uma cidade para combater contra ela, oferece-lhe a paz. E, se ela responder a paz, e abrir-vos as suas portas, todo o povo que nela se achar será posto a trabalhos forçados, e servir-vos-á.” Também em Josué, 6:21, ficamos chocados ao ler que “mataram a todos os habitantes da cidade, com as espadas, a homens, mulheres, velhos e moços, bezerros e ovelhas e jumentos”.

Essas passagens apresentam um retrato de violência, opressão e crueldade, o que pode ser visto como uma forma de desumanidade. Apesar do contexto histórico e cultural é importante reconhecer e condenar qualquer forma de violência, opressão e desumanidade, seja ela retratada em livros sagrados ou em outros contextos. Mais algumas ilustrações que retratam discriminação e opressão, necessários para o argumento que colocaremos em seguida:

(1) Levítico 25:44-46 – “Vossos servos e vossas servas, que vós tiverdes, serão da nação estrangeira; dos que estão ao vosso redor os comprareis, e dos seus filhos que tiverem nascido no vosso país, e vos serão por propriedade”. Levítico 20:13 – “Se alguém homem se deitar com homem, como se deita com mulher, ambos fizeram coisa abominável; certamente morrerão; o seu sangue sobre eles”. Levítico 19:33-34 – “Se alguém peregrinar entre vós da nação estrangeira, e quiser celebrar a páscoa do Senhor, circuncidai primeiro o seu coração, e então a celebrará como hóspede. Assim farão todos os vossos filhos, e todos os estrangeiros que peregrinarem entre vós”.

(2) Deuteronômio 22:20-21 – “Se a mulher for desonrada, e não haja testemunha contra ela, mas for apanhada na própria maldade, então, conduzir-lhe-eis à porta da casa de seu pai, e apedrejá-la-ão os homens da sua cidade com pedras, e morrerá, porquanto fez vileza na Israel; assim eliminarás o mal do meio de vós”. Deuteronômio 23:1-3 – “Não entrará na assembleia do Senhor, nem a um seu ofício, nem a um seu cargo, nem a um seu sacerdócio, qualquer homem com deformidade na sua mão, nem pé coxo, nem qualquer coisa detestável. O amonita e o moabita não entrarão na assembleia do Senhor, nem a um seu ofício, nem a um seu cargo, nem a um seu sacerdócio, para sempre”.

(3) Números 31:17-18 – “Mataram a todos os varões de guerra entre os que habitavam naquele país, mas deixaram a vida às mulheres e aos pequeninos” (4) Êxodo 21:7-11 – “Se alguém vendeu sua filha como serva, ela não sairá como os homens servos saem”. (5) Gênesis 34:13-29 – A história de Diná é uma narrativa de violência sexual e discriminação contra as mulheres. Essas passagens apresentam um retrato de escravidão de mulheres, discriminação de estrangeiros e pessoas com deficiência, e violência sexual, que podem ser vistos como formas de opressão e desumanidade.

Todavia, há também no Antigo Testamento também há vários exemplos de pessoas que foram punidas por seu comportamento desonesto na arena econômica: (a) Achan – em Josué 7, Achan é descrito como tendo roubado objetos sagrados da conquista de Jericó, o que causou a ira de Deus e a derrota dos israelitas em uma batalha subsequente; (b) Ananias e Safira – em Atos 5, Ananias e Safira são descritos como tendo vendido propriedades e mentido sobre o montante obtido, o que resultou em sua morte imediata; (c) Balaão – em Números 22-24, Balaão é descrito como tendo aceitado suborno para amaldiçoar Israel, o que resultou em sua morte na mão de Moisés.

Estes exemplos mostram que o Antigo Testamento condena fortemente a desonestidade e a fraude nas transações comerciais e que aqueles que agem de maneira inadequada enfrentarão consequências graves. Todavia, o que queremos argumentar a partir do contraste entre atos desumanos e/ou desonestos, de forma geral, e punições através de leis ou outros meios, é que esse é um balanço que não fecha. Nenhuma sociedade pode apresentar níveis elevados e equilibrados de justiça, equidade e liberdade enquanto os atos humanos forem justificados por “potências transcendentes”. No Antigo Testamento, Deus, como na crítica de Lukács e, no capitalismo, o capital, conforme Karl Marx, autor de uma obra seminal sobre o capitalismo do século XIX intitulado O capital: crítica da economia política.

O Antigo Testamento ensina que Deus é o único juiz e que o mal será punido em sua devida hora. Nele o mal é resultado da escolha humana de desobedecer a Deus e agir contra sua vontade. A desobediência é vista como uma quebra da harmonia e do equilíbrio que Deus estabeleceu no mundo. Isso leva à corrupção moral e à desordem social, como a opressão dos pobres, a injustiça e a exploração. Outra fonte do mal está relacionada a prática da idolatria que é vista como uma quebra da aliança com Deus, já que a adoração de outros deuses é vista como uma forma de traição e descrença. Por último, existe também o mal originado de “um espírito maligno vindo do Senhor”, como descrito no livro de I Samuel, capítulo 16: “E o Espírito do Senhor se retirou de Saul, e atormentava-o um espírito mau da parte do Senhor”.

No Antigo Testamento há relatos de crimes e atrocidades cometidos em nome de Deus ou em nome da sua religião. A conquista da Terra Prometida pelos Israelitas, por exemplo, é descrita como um ato de guerra ordenado por Deus. Embora seja vista como uma vitória para o povo de Deus, também há relatos de massacres e destruição de cidades e nações inimigas. Outro exemplo refere-se a guerra santa, guerra que é ordenada por Deus contra nações inimigas e povos idólatras. Embora seja justificada como uma defesa da fé e do povo de Deus, também há relatos de atrocidades cometidas contra os inimigos, incluindo o massacre de mulheres e crianças. Algumas punições divinas, como o dilúvio e a destruição de cidades, são descritas como respostas ao pecado e à desobediência. Embora essas punições sejam justificadas como ações divinas para restaurar a ordem e a justiça também há relatos de morte e destruição em massa.

Por sua vez, segundo Karl Marx, o capitalismo é uma sociedade na qual o dinheiro na forma de capital (que consiste na relação social entre proprietários dos meios de produção e subsistência e proprietários exclusivamente da sua força de trabalho, em uma sociedade fundamentada tão somente em relações monetárias, ou seja, na qual todos os aspectos necessários à vida são transformados em mercadorias, inclusive o próprio trabalho humano), é elevado a um poder supremo, sendo adorado como um “deus”. De acordo com ele o capital é o “deus” da sociedade capitalista porque controla todos os aspectos da vida econômica e social e é o fator determinante do valor das coisas.

O capital é adorado como um “deus” porque é visto como uma força misteriosa e inerentemente boa que é capaz de promover o progresso e a prosperidade. No entanto, para Marx o capital é na verdade uma força opressora que explora os trabalhadores e perpetua a desigualdade social. Uma forma de dominação social onde a classe dos capitalistas controla e explora a classe dos trabalhadores reproduzindo de forma ampliada e indefinida o capital (produção de capitalistas, de um lado, e de trabalhadores assalariados de outra). A adoração do capital como um “deus” é vista por Marx como uma forma de ilusão (fetiche) que esconde a realidade opressiva da sociedade capitalista.

Para Marx, a emancipação humana é o objetivo final da luta de classes e da história da humanidade. A sociedade capitalista, na qual a maioria da população é explorada por uma minoria de proprietários de meios de produção, é vista por Marx como uma forma opressora e alienante. A emancipação humana, portanto, implica na superação desse sistema e na instauração de uma sociedade socialista ou comunista, na qual a propriedade dos meios de produção é coletiva e a divisão social do trabalho desaparece.

Nessa nova sociedade as pessoas seriam capazes de desenvolver suas potencialidades e de trabalhar de forma livre e autônoma, sem serem oprimidas pela exploração. A liberdade humana seria ampliada e as relações sociais seriam baseadas na cooperação e no respeito mutuo, ao invés da exploração e da competição. Em suma, a emancipação humana é uma condição de liberdade e igualdade social e econômica, na qual as pessoas são capazes de desenvolver suas potencialidades e viver sem opressão.

Nessa nova sociedade como a medida do homem é o próprio homem, e não uma potência exterior, como “Deus” ou o capital, desapareceriam as justificativas espúrias ou alienantes para apropriação privada do trabalho social. De acordo com Lukács, o ser social é o resultado da atividade humana e o ser humano só pode ser compreendido a partir de sua existência social, ou seja, a compreensão do ser humano só é possível a partir da compreensão da sociedade em que vive. Sem essa compreensão do homem e da sociedade se torna impossível transformar a realidade da sociedade capitalista, nos termos de sua superação.

Nem o capitalismo e tampouco os socialismos implantados ao longo do século XX se mostraram suficientes para implantar essa nova sociedade. Pois, consciência social na formação da realidade social em ambos ainda se fundamenta na sobrevivência dos mais aptos (capitalistas proprietários dos meios de produção e poder discricionário dos dirigentes socialistas), como ocorre na natureza selvagem, e não numa consciência social formada a partir do ser social como meio e fim das relações sociais.

Por fim, o capitalismo adquiriu ao longo de seu desenvolvimento e, em especial, com o desenvolvimento das novas tecnologias da Revolução Tecnológica e Informacional, entre as quais destaca-se a computação, automação e robótica, inteligência artificial, biotecnologia, internet das coisas, blockchain, entre tantas outras, uma força avassaladora pondo em risco a existência da vida humana no planeta.

Resta saber se as novas inteligências (inteligência artificial e aprendizado de máquina, por exemplo), podem contribuir para elevar nossa consciência da condição de luta individual pela sobrevivência, do “humano demasiadamente humano”, de Nietzsche, no qual a natureza humana ainda é guiada pelos instintos animais e paixões; ou se pelo contrário continuarão contribuindo para perpetuar um sistema econômico fadado a destruir a vida humana e não humana no planeta.

A emancipação humana, nos termos de Marx, não é uma visão idealista de uma sociedade. Pelo contrário, é uma necessidade e uma urgência para a continuação da própria existência humana.

*José Micaelson Lacerda Morais é professor do Departamento de Economia da URCA. Autor, entre outros livros, de O capitalismo e a revolução do valor: apogeu e aniquilação.

Este artigo faz parte do livro do mesmo autor intitulado Aspectos Econômicos do Antigo Testamento, Independently Published, 2023.

 

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