Neoliberalismo e autoritarismo

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Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE*

Considerações sobre a crise continuada e estrutural do capitalismo.

Nos últimos 40 anos o capitalismo em escala global, assume um formato com uma configuração histórica centrada na retirada de direitos sociais, com menor regulação social do Estado e crescente financeirização econômica. Esse formato do capitalismo é o que se convencionou denominar de neoliberalismo. Em dois termos podemos definir as últimas décadas: o mundo está a venda, o mundo é uma mercadora.

Aspecto central na permanente convulsão esquizofrênica capitalista, refere-se à condição autoritária do neoliberalismo. Assim, não é um acaso a atual conjuntura de forte perda de direitos sociais e desmonte democrático no Brasil, o autoritarismo é a interface de regime político do neoliberalismo nas sociedades periféricas, porém funcionando conforme movimentos cíclicos integrados a capacidade de luta de classes nacionais.

Os pontos característicos do neoliberalismo enquanto época histórica do sistema mundial capitalista são componentes de uma crise continua, que não se resolve, somente posterga para frente seus novos ingredientes, criando crescentes incertezas para humanidade. Seguindo os passos, entre outros de Steeeck (2018) e Harvey (2016), temos a crise continuada e estrutural do capitalismo desde os movimentos de queda tendencial da taxa de lucro, somados a outros processos que foram desenvolvidos a partir dos anos de 1970, como a expansão financeira e a formação sucessiva e permanente de bolhas especulativas, além dos movimentos de agravamento de crises localizadas, seja geograficamente, seja setorialmente no capitalismo.

A maior intervenção financeirizada do Estado, com elevação do esforço fiscal para fazer frente à crescente dívida pública, dentro de uma lógica de transferir riquezas públicas para os 1% controladores de toda a riqueza social, levou a um padrão assemelhado aos anos 20 do século passado. Nas sociedades periféricas, como a brasileira, esse modelo alcançou os limites do paroxismo, assim a burguesia subserviente brasileira impôs uma Emenda Constitucional (95/16), estabelecendo a mais estúpida e autoritária regra de controle fiscal da história do capitalismo como parte das regras deste capitalismo rentista mundial.

O reforço ao discurso do “territorialismo” e a noção de desenvolvimento baseado nas regras do século XIX inglês com o enésimo empoderamento das vantagens comparativas e de que políticas de desenvolvimento devam ser somente pontuais e locais, como negação a políticas nacionais e de afirmação de capacidades soberanas de desenvolvimento. Aspecto que reforçou a disputa interna a cada nação pelo fluxo de investimento, minando a capacidade fiscal local em favorecimento aos capitais empresariais e desorganizando às relações federativas. No caso brasileiro isso passa pela definição de que cabe ao país ser somente produtor de grãos e minérios nesta ordem internacional.

Na continuidade do século XXI se observa a recomposição da OMC (Organização Mundial do Comércio), com normas tarifárias e para-tarifárias que sufragam os “princípios concorrenciais” desiguais e fortemente assimétricos, diminuindo a capacidade de negociação dos países periféricos e reforçando os circuitos comerciais norte-norte. A diminuição de barreiras tarifárias associadas a acordos multilaterais realizados no âmbito da OMC e à proliferação de acordos regionais favoreceu uma segunda e terceira ondas da globalização de processos produtivos, reforçando formas de subcontratação e a crescente externalização produtiva em diversos setores.

A elevação dos desequilíbrios financeiros e comerciais, se processa tanto pelo reforço do caráter rentista da estrutura econômica, compreendendo a expansão da massa de capital fictício no sistema de crédito, como pela flexibilidade cambial e liberalização da conta de capital com consequente instabilidade das transações correntes e balanço de pagamentos das economias periféricas e, nos últimos anos das próprias economias centrais, a fuga para frente já está em seu terceiro momento nas economias centrais, especialmente os EUA tentam, sem desmontar a lógica financeira e rentista, estabelecer agora sob os auspícios de Joe Biden uma nova rota liberal-keynesiana.

O desmonte das políticas sociais, flexibilização dos mercados de trabalho e destruição da seguridade social, parecem, porém, algo que une as fórmulas novas e velhas de continuidade desta rota liberal-keynesiana, mesmo que alguns festejem com antecedência algumas alterações, mesmo que superficiais no programa de Biden. No Brasil já temos mais de 47 milhões de pessoas que são desempregadas e subempregadas constituindo parte desta enorme massa de pessoas não servíveis ao capitalismo.

A disputa social colocada no Brasil, envolvendo, de um lado, a grande indefinição em torno do centro da burguesia brasileira, diga-se que nunca teve um vínculo propriamente nacional, cuja capacidade de estabelecer qualquer projeto que inclua minimamente os duzentos milhões de brasileiros é risível desde meado do século XX; por outro os diversos projetos reformistas e de parcial soberania nacional, historicamente foram políticas suaves de inclusão social, inclusive o último ciclo petista (2003/2015), porém sem riscos para os segmentos financeiros e com baixa capacidade de confronto direto com os interesses mais conspícuos da burguesia agrária-minero-colonial brasileira.

A evolução da conjuntura nos leva a alguns possíveis cenários a serem visualizados. Neste momento três estão em disputa direta, porém outros dois podem ser elencados no esforço de análise, sendo que a depender da luta de classes e da disputa nas ruas teremos o estabelecimento de um ou outro modelo:

(1) aquela que se encontra no controle do Estado brasileiro neste momento, estabelece a condição de aprofundamento radical da dependência e neocolonização brasileira, determinando a intensificação da superexploração dos trabalhadores, a marginalização da fronteira tecnológica e a completa espoliação dos recursos naturais brasileiros. Vale notar que esse projeto inclui não somente os setores neofascistas, bases seguras do bolsonarismo, mas também parcela considerável dos estamentos militares e de fração dos financistas (parte dos banqueiros agrupados nas maiores siglas nacionais: Bradesco e Itaú, convém observar que os financistas estão divididos mesmo dentro de suas siglas). Esse projeto, portanto, não é negligenciável ou somente furor do homem da “casa de vidros”.

(2) um segundo modelo neoliberal, convencionado em torno de parte considerável da burguesia “civilizada”, tanto rentista (parcela dos banqueiros também agrupados nas principais siglas nacionais: Bradesco e Itaú, também estão aqui presentes). Ponto de dificuldade refere-se ao problema de como manter a dependência agrária-minero-exportadora e algum grau de democratismo no sistema de regime político. Convém observar que parcela do aparelho militar-burocrático também está aqui presente.

(3) o terceiro modelo é um híbrido do programa reformista petista e de certa conveniência histórica de segmentos da burguesia, inclusive do agrário-minero negócio e de segmentos dos banqueiros. Esse modelo não é propriamente neoliberal, porém apresenta vários consentimentos ao projeto neoliberal de longo prazo, sendo que sua possível consolidação é fruto da derrota imposta pela Covid-19 aos projetos 1 e 2. Vale notar que a não consolidação desse projeto abre possibilidade de uma solução “bonapartista”.

(4) o quarto modelo possível é uma variante do terceiro, porém com duas diferenciações substanciais: a preponderância dos setores de esquerda (democráticos e populares) estabelecendo um uso mais forte do fundo público (receitas fiscais) para distribuição de renda e políticas de organização da sociedade e uso de reforma tributária para taxação da burguesia, diminuição da regressividade e destinação dos recursos para políticas públicas.

(5) a quinta possibilidade seria a ruptura social necessária, pelo menos até aqui, com a construção histórica brasileira. Esse projeto teria que envolver oito movimentos, em grande medida difíceis, mas necessários para se pensar a “civilização brasileira”, vamos somente elenca-los, em próximo artigo entregamos o desenvolvimento dos mesmos: (a) ruptura total com o regime fiscal-dependente dos últimos trinta anos, inclusive com adequações financeiras do Estado brasileiro com formas de securitização de sua dívida pública; (b) ampla reforma tributária progressiva: taxação de grandes fortunas, reestabelecimento da taxação sobre o lucro empresarial e novo imposto de renda progressivo; (c) reestatização das principais empresas do setor energético e mineral: Companhia Vale do Rio Doce e Petrobras, estabelecendo um amplo projeto de investimento de ambas; (d) reconstrução do Sistema de Inovação Nacional, com recondicionamento do CNPQ e CAPES para um programa de políticas agrárias, ambientais, médicas para os próximos quinze anos, considerando a soberania alimentar e soberania de saúde pública; (e) projeto de soberania produtiva, com base em cinco setores: bens básicos (construção civil, confecções, calçados, alimentos e bebidas); (f) projeto de completitude tecnológica (aeroespacial; indústria farmacêutica; indústria de informática e microchips; (g) assembleia constituinte exclusiva com critérios de paridade de gênero; (h) repactuação federativa.

A alternativa à barbárie imperialista expresso nos modelos de continuidade neoliberal é o estabelecimento de uma agenda de desenvolvimento nacional que rompa com a dependência, se aproxime da fronteira tecnológica e defina novas regras de poder geopolítico, essa perspectiva somente se abrirá com uma crescente radicalidade social e democrática brasileira. Os movimentos próximos da sociedade brasileira, organizada e desorganizada mostrarão nosso futuro ou nosso não-futuro.

José Raimundo Trindade é professor do Programa de Pós-graduação em Economia da UFPA. Autor, entre outros livros, de Crítica da Economia Política da Dívida Pública e do Sistema de Crédito Capitalista: uma abordagem marxista (CRV).

Referências


Wolfgang Streeck. Tempo comprado: a crise adiada. São Paulo: Boitempo, 2018.

David Harvey. 17 Contradições e o fim do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2016.

Daniel Bensaïd. “O arquipélago dos mil (e um) marxismos”. Disponível no site A Terra é Redonda: https://aterraeredonda.com.br/tag/daniel-bensaid/.

 

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