Interesses escusos

Imagem: Igor Kishi
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por HERALDO CAMPOS*

O golpe nos direitos indígenas e no povo brasileiro depois da aprovação na Câmara do Deputados do projeto de lei do marco temporal

“Luís Inácio falou, Luís Inácio avisou / São trezentos picaretas com anel de doutor / Luís Inácio falou, Luís Inácio avisou / Luís Inácio falou, Luís Inácio avisou / São trezentos picaretas com anel de doutor / Luís Inácio falou, Luís Inácio avisou / Eles ficaram ofendidos com a afirmação / Que reflete na verdade o sentimento da nação / É lobby, é conchavo, é propina e jeton / Variações do mesmo tema sem sair do tom”.

Esse trecho da letra da canção “Luis Inácio (300 picaretas)” de autoria de Herbert Vianna do Paralamas do Sucesso e composta no ano de 1995, se fosse relançada nos dias de hoje, depois da aprovação pela Câmara dos Deputados em 30 de maio de 2023 do projeto de lei do marco temporal para a demarcação de terras indígenas, estaria bem atualizada.

Esse golpe nos direitos indígenas e no povo brasileiro, limitando a demarcação dos povos originários, visando interesses escusos, abre a porteira para a passagem da boiada em vários setores da nossa frágil sociedade uma vez que a demarcação dos territórios indígenas somente pode ser reconhecida até a data da promulgação da Constituição Federal em 05 de outubro de 1988.

“Para os índios Guarani, a terra sem males não é um sonho distante, mas uma realidade conquistada a cada amanhecer. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) realiza todo ano, no período da quaresma, a Campanha da Fraternidade. O lema da campanha em 2002 – Por uma terra sem males -, em comemoração à Semana dos Povos Indígenas, foi e continuará sendo um convite para refletirmos sobre o amor desses povos para com a terra”.[1]

Precisamos ficar a atentos para que essa “terra sem males”, com essas aprovações na Câmara dos Deputados, não se torne um sonho cada vez mais distante e destruindo um dos nossos bens mais preciosos que é a água, superficial e subterrânea, existente no território brasileiro porque, como vemos, tem gente nessa casa legislativa interessada em deixar passar a boiada nas águas.

Vale ressaltar “[…] que toda água a ser retirada, superficial ou subterrânea, com exceção de volumes pequenos, necessita de uma outorga de direito de uso de recursos hídricos, concedida pelo poder público, mediante o atendimento de condições que assegurem o interesse da população no uso das águas. Além disso, ressalta-se que o seu uso não deve causar impacto de qualquer natureza como, por exemplo, a contaminação dos solos e das águas por elementos, compostos ou organismos que possam prejudicar a saúde do homem ou de animais. O impacto pela contaminação, tanto no meio urbano ou rural, dever ser uma das grandes preocupações do poder público e dos usuários públicos ou privados.

A água é um direito da população e o governo tem que garantir que nenhum cidadão fique à margem desse bem público. Ela deve ser fraternalmente compartilhada e não utilizada como mercadoria. Qualquer Projeto de Lei que ameace os interesses da população no uso das águas, incluindo as águas subterrâneas do Aquífero Guarani, merece uma atenção e um acompanhamento especial da sociedade civil organizada, para que seja barrada no Congresso Nacional uma possível iniciativa nesse sentido”.[2]

“Nunca é demais lembrar que a remediação dos solos e das águas é complexa e pode custar caro, como por exemplo, as extensas áreas contaminadas por mercúrio pela atividade predatória, ilegal e criminosa, como vem ocorrendo na Amazônia e invadindo território Yanomani. Então, como devemos proceder diante dessa agressão ao meio ambiente? Espera-se que esses invasores da Amazônia que há tempos vêm desmatando, queimando, grilando, garimpando e contaminando seus solos e águas sejam devidamente identificados, responsabilizados e punidos de acordo com a lei”.[3]

O estrago já foi feito. “Um estudo inédito identificou que peixes consumidos pela população em seis estados da Amazônia brasileira têm contaminação por mercúrio com concentração do metal 21,3% acima do permitido”, como noticiou o portal G1 em 30/05/2023. No estudo foram incluídos dados dos estados do Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia e Roraima.[4]

No encerramento de uma recente entrevista para a revista Mais 60 do Sesc, Ailton Krenak, líder indígena, ambientalista, escritor e jornalista, citou um pequeno poema, com a seguinte consideração:

“Cantando, dançando, passando sobre o fogo / Seguimos nos rastros dos nossos ancestrais / No contínuo da tradição

Cantando, dançando, passando sobre o fogo, quer dizer, passar sobre o fogo é a experiência radical de estar vivo. É quando a gente é testado. Quando tem os embates da vida. Quando nós somos desafiados a ser, a cada tempo, aquilo que o tempo em que estamos vivendo nos exige”.[5]

Estamos sendo testados por essa aprovação e com outras, possivelmente, engatilhadas na Câmara do Deputados. Até quando vamos aguentar? “Revolto-me, logo existo” (Albert Camus).

*Heraldo Campos, geólogo, é pós-doutorado pelo Departamento de Hidráulica e Saneamento da Escola de Engenharia de São Carlos-USP.

Notas


[1] O Guarani das águas e dos índios

https://cienciahoje.org.br/wp-content/uploads/2003/02/190.pdf

[2] A boiada nas águas

https://www.ihu.unisinos.br/categorias/615767-a-boiada-nas-aguas

[3] Mercúrio que mata
https://aterraeredonda.com.br/mercurio-que-mata/

[4] Peixes consumidos pela população em 6 estados da Amazônia têm contaminação por mercúrio, indica estudo

https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2023/05/30/peixes-consumidos-pela-populacao-em-6-estados-da-amazonia-tem-contaminacao-por-mercurio-indica-estudo.ghtml

[5] Entrevista com Ailton Krenak

https://www.sescsp.org.br/ed-84-entrevista-com-ailton-krenak/


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Berenice Bento João Carlos Loebens Lorenzo Vitral Daniel Brazil Julian Rodrigues Luiz Eduardo Soares João Feres Júnior Chico Whitaker Valerio Arcary José Luís Fiori Luiz Renato Martins José Costa Júnior Eugênio Trivinho Vladimir Safatle Tarso Genro Celso Favaretto Michel Goulart da Silva Bruno Machado Dennis Oliveira José Machado Moita Neto Rafael R. Ioris Luciano Nascimento Jorge Branco Paulo Sérgio Pinheiro Osvaldo Coggiola Andrés del Río Priscila Figueiredo Andrew Korybko Celso Frederico Ronald Rocha Paulo Capel Narvai Matheus Silveira de Souza Daniel Afonso da Silva João Lanari Bo Atilio A. Boron Leonardo Sacramento Gilberto Lopes Ricardo Fabbrini Rodrigo de Faria João Sette Whitaker Ferreira Luís Fernando Vitagliano Paulo Martins Sergio Amadeu da Silveira Afrânio Catani Jean Marc Von Der Weid Michael Roberts Igor Felippe Santos Airton Paschoa Gilberto Maringoni Lucas Fiaschetti Estevez João Adolfo Hansen Tales Ab'Sáber Henri Acselrad Boaventura de Sousa Santos Fernando Nogueira da Costa Leda Maria Paulani Eleonora Albano Luis Felipe Miguel Henry Burnett Francisco de Oliveira Barros Júnior Marilena Chauí André Singer Fábio Konder Comparato Plínio de Arruda Sampaio Jr. João Carlos Salles Mariarosaria Fabris Fernão Pessoa Ramos Marcelo Módolo Paulo Fernandes Silveira Marilia Pacheco Fiorillo Luiz Bernardo Pericás José Raimundo Trindade Ronaldo Tadeu de Souza André Márcio Neves Soares Elias Jabbour Dênis de Moraes Antonino Infranca Gabriel Cohn Manchetômetro Walnice Nogueira Galvão Juarez Guimarães Ricardo Antunes Alysson Leandro Mascaro Jean Pierre Chauvin Ricardo Musse Paulo Nogueira Batista Jr Marcelo Guimarães Lima João Paulo Ayub Fonseca Ari Marcelo Solon Luiz Carlos Bresser-Pereira Francisco Fernandes Ladeira Marcus Ianoni Flávio Aguiar Kátia Gerab Baggio Bruno Fabricio Alcebino da Silva Carlos Tautz Daniel Costa Leonardo Avritzer Marcos Aurélio da Silva Sandra Bitencourt Antônio Sales Rios Neto Jorge Luiz Souto Maior Francisco Pereira de Farias José Geraldo Couto Ronald León Núñez Valerio Arcary Salem Nasser Eugênio Bucci Vinício Carrilho Martinez Maria Rita Kehl Luiz Roberto Alves Flávio R. Kothe Samuel Kilsztajn Vanderlei Tenório Eleutério F. S. Prado Alexandre de Freitas Barbosa Otaviano Helene Mário Maestri Remy José Fontana Bernardo Ricupero Yuri Martins-Fontes Manuel Domingos Neto Armando Boito José Micaelson Lacerda Morais Milton Pinheiro Bento Prado Jr. Alexandre Aragão de Albuquerque Slavoj Žižek Gerson Almeida Leonardo Boff Carla Teixeira Liszt Vieira Annateresa Fabris Marjorie C. Marona Anselm Jappe Alexandre de Lima Castro Tranjan Ricardo Abramovay Luiz Marques Marcos Silva Everaldo de Oliveira Andrade Caio Bugiato Rubens Pinto Lyra José Dirceu Denilson Cordeiro Eduardo Borges Thomas Piketty Lincoln Secco Chico Alencar Antonio Martins Eliziário Andrade Luiz Werneck Vianna Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Heraldo Campos Michael Löwy Tadeu Valadares Érico Andrade Renato Dagnino Claudio Katz Benicio Viero Schmidt Ladislau Dowbor

NOVAS PUBLICAÇÕES