No coração da terra

Marcelo Guimarães Lima, Noite Púrpura, pintura digital, 2023.
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Por HENRI ACSELRAD & KARINE L. NARAHARA*

Apresentação do livro recém-lançado de Bianca Dieile da Silva

Na esteira da 12a rodada de licitações pela Agência Nacional de Petróleo (ANP), um novo horizonte de preocupações surgiu com os impactos da indústria petroleira. Em paralelo à oferta de “novas fronteiras” de exploração, alertas foram feitos sobre os riscos de uma tecnologia particularmente perigosa: o fraturamento hidráulico de alta pressão para a extração de gás e petróleo, mais conhecido como fracking.

Os riscos para a saúde pública justificaram o alarme. A famosa cena da água saindo da torneira em chamas, retirada do documentário Gasland, de Josh Fox, se espalhou pelas redes sociais na mesma velocidade em que a indústria do fracking expandia-se por diferentes paisagens norte-americanas.

O livro No coração da terra, resultante da pesquisa que obteve menção honrosa no Prêmio Capes de Teses de 2024, revê em profundidade as discussões sobre o uso do fracking no Brasil. Tendo por base a literatura sobre construção social dos riscos, a autora discute o modo como são traçados os limites para a aceitação de práticas técnicas que lançam substâncias poluentes no solo, na atmosfera, nos cursos d´água e nos organismos vivos. O trabalho é parte dos esforços recentes de tratar as controvérsias científicas como objeto específico da história e da sociologia da vida intelectual.

Pesquisas inovadoras como a de Bianca Dieile têm avançado na análise do modo como os enunciados científicos são elaborados, como se dá a construção dos fatos em estudo, se configura a apresentação de provas e se resolvem os conflitos. A “escolha das armas” se dá, neste campo, pela definição de uma problemática e de uma conceitualização. Embora a ciência se alimente da controvérsia, no caso das tecnologias de grande impacto, diferentes arenas são atravessadas pela produção discursiva de cientistas, mas também de divulgadores científicos, jornalistas, ambientalistas, representantes de movimentos sociais ou de think tanks empresariais.

Estratégias argumentativas legitimam ou deslegitimam sujeitos, articulam as escalas dos processos em pauta, dramatizam ou desdramatizam efeitos. Há sempre um público pressuposto que é tomado como testemunha, mas também visto como um recurso a ser mobilizado na discussão. As controvérsias científicas por vezes mudam sua forma quando extravasam para outras arenas, envolvendo interesses de grupos sociais mais amplos e governos. São, então, postas em questão as fronteiras entre as diferentes arenas e a própria definição do espaço apropriado à resolução dos conflitos.

A controvérsia é parte de uma sequência de interações na trama da produção científica e intelectual em conjunturas específicas que integram as condições históricas de expressão da atividade intelectual. Ela pode ser dar através de processos dialógicos por regras aceitas por todos, com objetivos comuns que valorizam a dimensão institucional e pacífica dos saberes. Mas pode também adquirir um caráter querelante que inclui uma dimensão competitiva em que os atores das trocas científicas se dão crédito e se desacreditam mutuamente.

Ao mostrar como novas tecnologias petroleiras avançam – ou, no presente caso, tentam avançar, já que o uso do fracking nunca se efetivou no país – Bianca Dieile nos mostra como antigas estratégias se atualizam ou se transformam para tentar neutralizar o debate e a contestação social. Considerando as peculiaridades do mercado de “gás natural”, a autora mapeia o avanço desta “nova fronteira”, mostrando como este debate se insere num cenário global de controvérsias e acaloradas discussões quanto aos perigos associados ao uso da técnica.

Uma das grandes contribuições do livro é a análise de como acadêmicos se inserem nessas controvérsias; uma extensa rede de pesquisadores de diversas instituições se estabeleceu no país, com o apoio institucional e financeiro tanto do Estado quanto das próprias empresas. Entrecruzando os fios desta rede, a autora apresenta uma descrição minuciosa, com tons etnográficos, de como opera um mecanismo de “porta giratória” entre indústria e órgãos reguladores, e de como o discurso sobre imparcialidade foi articulado à ideia de racionalidade na elaboração de argumentos favoráveis ao fracking, expresso em especial na construção de uma distinção entre “leigos” e “especialistas”.

Esses aspectos fazem da obra uma leitura fundamental não apenas para aqueles interessados nas novas fronteiras de hidrocarbonetos ao redor do mundo, mas para qualquer leitor que busque entender o modo como, por vezes, indústrias tecem alianças com alas da ciência para reduzir a força das contestações. Combinando seu treinamento nas “ciências duras” com um olhar analítico desde uma Ecologia Política crítica, a autora deste livro convida à possibilidade de novos diálogos que cruzam as fronteiras entre humanidades e ciências naturais, cada vez mais necessários em tempos de acirramento de violências perpetradas por grandes projetos extrativistas.

No debate ambiental contemporâneo, metáforas têm sido utilizadas para apontar o uso imprudente e a potência destrutiva de determinadas tecnologias. Desde as metáforas do filósofo Walter Benjamin, formuladas já nos anos 1940, ouvem-se alertas sobre necessidade de se ouvir “o alarme de incêndio” e de se cortar “o pavio que queima” em direção ao desastre. A ideologia do progresso a qualquer custo poderia nos levar, é o que preveniu este autor em suas Teses sobre a filosofia da história, a uma espécie de “tempestade, que deixa a seus pés ruínas sobre ruínas”.

Para que fins, afinal, nos apropriamos do planeta e produzimos desastres planejados, em projetos que deslocam montanhas, rios, flora, fauna e comunidades?

Esta é a inadiável questão discutida pela presente obra. Ela nos leva a reflexões que alcançam o campo filosófico a partir da descrição da materialidade crua de uma tecnologia que penetra as profundezas da Terra de forma inédita, com suas imponderáveis consequências. A controvérsia em torno a seu uso e seus efeitos é nela tratada de forma fundamentada e sistematizada, levantando problemas que são correntemente desconsiderados ou varridos para debaixo do tapete para atender a grandes blocos de interesses.

Em um movimento contrário, a autora nos convoca a questionar a insensatez de ações cujo alcance – no coração da Terra – não deixa de evocar as imagens de Joseph Conrad, para quem, em sua obra Coração das Trevas, o projeto colonial sobre os territórios dos povos do hemisfério Sul associara violência, ambição e devastação. Com os instrumentos da sociologia da controvérsia científica e, ao mesmo tempo, com um bom senso cidadão, a autora exerce o direito à palavra contrária e dá um recado que a sociedade precisa ouvir, sobre ele meditar e, a partir dele, agir.

*Henri Acselrad é professor titular aposentado do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ).

*Karine L. Narahara é professora da University of North Texas.

Referência

Bianca Dieile da Silva. No coração da terra: a controvérsia do fracking no Brasil. Rio de Janeiro, IPPUR/UFRJ.


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