Harsíese

Leão do portão de Ishtar, Babilônia (tijolos vidrados), Museu Arqueológico, Istambul, Turquia
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por EDUARDO SINKEVISQUE*

Considerações sobre o livro de Jacyntho Lins Brandão

A múmia queimada pelo incêndio do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista renasce como fênix na poesia de Jacyntho Lins Brandão, que não a repõe, nem a recria em seu mais recente livro de poemas vencedor do Prêmio Alphonsus de Guimaraens da Fundação Biblioteca Nacional.

Em Harsíese, Jacyntho Lins Brandão faz voar a fênix, a desloca de lugares, que são Ouro Preto, Belo Horizonte, entre outros Orientes e horizontes.

Em seu recém-lançado livro de poemas, Jacyntho Brandão faz a múmia falar.

A poesia de Harsíese vem de um não-lugar ou do lugar-da-morte e se desenha aos olhos e ouvidos (internos) do leitor. É maravilha, espanto, precipício, memória, ruína, sítio, Babilônia, Cartago, Pérsia. É poesia da enargeia, da evidentia. História, escavação.

Quero dizer que li os poemas que compõem Harsíase seguindo sua disposição de partes. Li-os como um leitor não obediente, mas aderente às escolhas que o poeta fez. Ou seja, li sequencialmente “Brancor” e seus poemas; “Dialética Disléxica” e seus poemas; “Ouro Preto: Raízes”, e seus poemas e “Errâncias” e seus poemas. E os li devagar. E os li adiando o fim.

Em “Brancor” vi um tom melancólico, por vezes, um resquício de Carlos Drummond em “Casa dos Lodi”. E senti o ritmo lindo do poema. Anotei: maravilha! Maravilhoso!!! E vi o poeta fazer perguntas retóricas que prescindem de respostas. Vi graça em “Delira, Marília”, aquela dama cantada desde o século XVIII, mas que carrega consigo tantos lugares antigos de mulher, tantas camadas de lirismo. Ouvi a cantiga, a canção com refrão de Jacyntho nesse poema-modinha.

E ouvi também a cantiga de “Me equilibro em corda tensa”, a musicalidade do poema, a graça, a leveza. Me ri na epígrafe de “Nada Dizer”, vi o estimado Luciano na “Ilha da utopia”. Me diverti em “Ode ao fumo”, encontrando mais uma vez Drummond em Jacyntho Brandão em “Palavra em ponto de bala”. Vi emulação. Vi Jacyntho vencer o (suposto) modelo.

Em “Dialética Disléxica”, de que não vou me ater à agudeza que nomeia esta parte de Harsíese, eu comecei por grafar uma exclamação logo ao ler a epígrafe.

Aliás, as epígrafes do livro são todas ótimas e saborosas, compondo uma leitura paralela para além de cumprirem sua função de complementar, ilustrar de alguma maneira os textos. Aliás, as epígrafes podem funcionar como inscrições lapidares, lápides.

Se minha hipótese de leitura, de que o poeta faz o morto falar, faz a ruína falar, as epígrafes de Harsíese são lápides.

Mas voltando à “Dialética Disléxica”, reconheci em Jacyntho Lins Brandão um homem de seu tempo, de muitos tempos, de todos os tempos.

Sublinhei muitos versos, desenhei muitas exclamações, derramei afecções sobre as afecções propostas.

“Ouro Preto: Raízes” foi a parte em que menos me comovi, a parte que menos me moveu. Entendo-a como uma espécie de cancioneiro, assim meio que à maneira de Cecília Meirelles. Um cancioneiro ouro-pretense, que imagino em homenagem à cidade, um dos amores de Jacyntho Brandão.

Mesmo assim grafei exclamações indicando ter sido atingido por um ou outro poema da série, que anotei lindíssimo. Vi nesta partícula de Harsíase mote/glosa de si mesmo nos anos, como no poema de 1955 (p. 69), as variações elocutivas.

Em “Errâncias”, para ser “breve e leve”, e não ser amplificativo condenso o comentário ao dizer que vi Drummond novamente. Vi emulação de Drummond em “Não há mais bondes para as pernas”.

Harsíese termina em Ítaca. Como só poderia. Inicia-se com o “traço que corrompe” e termina o percurso, a diegese, em Ítaca!

A poesia de Jacyntho deste livro está posta sob égide de Harsíese, alto funcionário egípcio que o fascismo brasileiro fez e deixou queimar.

Trata-se de poesia da dissolução. Pode como uma rima ser apenas uma solução, mas não. Tendo (e às vezes tem) ou não rima é mais do que solução, soluço grande. É poesia grande, que está sob a dissolução.

*Eduardo Sinkevisque é pós-doutor em teoria literária pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Referência


Jacyntho Lins Brandão. Harsíese. São Paulo, Patuá, 2023. [https://amzn.to/3R4bP82]

A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Ronaldo Tadeu de Souza Bruno Machado Eduardo Borges Paulo Capel Narvai Vinício Carrilho Martinez Leonardo Sacramento Gilberto Lopes Elias Jabbour Eliziário Andrade Osvaldo Coggiola Annateresa Fabris Lucas Fiaschetti Estevez Liszt Vieira Luiz Renato Martins Rodrigo de Faria Milton Pinheiro Chico Whitaker Heraldo Campos Dênis de Moraes Ronald León Núñez Celso Favaretto Daniel Brazil Igor Felippe Santos Ricardo Antunes João Lanari Bo Jorge Branco José Machado Moita Neto Luiz Werneck Vianna Francisco de Oliveira Barros Júnior José Raimundo Trindade Michael Roberts Walnice Nogueira Galvão João Carlos Salles Bruno Fabricio Alcebino da Silva Bento Prado Jr. Alexandre de Lima Castro Tranjan Samuel Kilsztajn Carla Teixeira Valerio Arcary João Feres Júnior Caio Bugiato Julian Rodrigues Leonardo Boff Mariarosaria Fabris André Márcio Neves Soares Paulo Sérgio Pinheiro Paulo Martins Alexandre Aragão de Albuquerque Francisco Pereira de Farias Fábio Konder Comparato Renato Dagnino Plínio de Arruda Sampaio Jr. Chico Alencar Slavoj Žižek Rafael R. Ioris Lorenzo Vitral João Paulo Ayub Fonseca Denilson Cordeiro Manchetômetro Eleutério F. S. Prado Andrew Korybko Manuel Domingos Neto Vanderlei Tenório Paulo Fernandes Silveira Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Antonino Infranca Érico Andrade João Carlos Loebens Gabriel Cohn Ronald Rocha Antonio Martins Flávio R. Kothe Sandra Bitencourt Thomas Piketty Ari Marcelo Solon Boaventura de Sousa Santos Dennis Oliveira Afrânio Catani Otaviano Helene Andrés del Río Eleonora Albano Luis Felipe Miguel Jorge Luiz Souto Maior Kátia Gerab Baggio Ricardo Abramovay Daniel Costa Mário Maestri Michael Löwy Marcelo Guimarães Lima Everaldo de Oliveira Andrade Ricardo Musse Tadeu Valadares Marcos Silva Benicio Viero Schmidt José Costa Júnior Alysson Leandro Mascaro Luiz Bernardo Pericás Henri Acselrad José Micaelson Lacerda Morais Luiz Roberto Alves Rubens Pinto Lyra Gilberto Maringoni Paulo Nogueira Batista Jr Tarso Genro Vladimir Safatle Claudio Katz Tales Ab'Sáber Maria Rita Kehl Marjorie C. Marona Ladislau Dowbor Antônio Sales Rios Neto Eugênio Trivinho Valerio Arcary Atilio A. Boron Carlos Tautz João Adolfo Hansen Ricardo Fabbrini Jean Pierre Chauvin Luiz Eduardo Soares Fernando Nogueira da Costa Yuri Martins-Fontes Francisco Fernandes Ladeira Henry Burnett Alexandre de Freitas Barbosa Marilia Pacheco Fiorillo Marcelo Módolo Luiz Marques Priscila Figueiredo Marcus Ianoni José Luís Fiori Luiz Carlos Bresser-Pereira Remy José Fontana Sergio Amadeu da Silveira Celso Frederico Anselm Jappe Luís Fernando Vitagliano Michel Goulart da Silva Marilena Chauí Luciano Nascimento Bernardo Ricupero Salem Nasser José Geraldo Couto José Dirceu Leonardo Avritzer Matheus Silveira de Souza Daniel Afonso da Silva Gerson Almeida Berenice Bento Flávio Aguiar Eugênio Bucci Jean Marc Von Der Weid Leda Maria Paulani Lincoln Secco Armando Boito João Sette Whitaker Ferreira Fernão Pessoa Ramos André Singer Marcos Aurélio da Silva Airton Paschoa Juarez Guimarães

NOVAS PUBLICAÇÕES