Por AFRÂNIO CATANI*
Comentário sobre o livro “Sábado à noite, domingo de manhã”, de Alan Sillitoe.
Há exatamente 64 anos, em 1957, o professor inglês Richard Hoggart (1918-2014) publicou um tijolão de mais de 400 páginas, o hoje clássico The Uses of Literacy, traduzido em várias línguas (em Portugal recebeu o título de As Utilizações da Cultura e em francês La Culture du Pauvre) e com um subtítulo significativo: “Aspects of Working Class Life (with special reference to publications and entertainments)”.
Hoggart é autor de vasta obra envolvendo sociologia, literatura inglesa, estudos culturais, com ênfase na cultura popular britânica. Oriundo de uma família proveniente da classe trabalhadora das cercanias de Leeds, foi professor em várias instituições acadêmicas de prestígio e fundou, em 1964, o Center for Contemporary Cultural Studies (CCCS) na Universidade de Birmingham.
Em The Uses of Literacy estuda a cultura das classes populares inglesas ao longo de 30 ou 40 anos, ou seja, de aproximadamente 1915-1920 até meados dos anos 1950. Concentra-se, em especial, na análise de publicações de grande difusão e de seus efeitos sobre a maior parte da população, reconhecendo, entretanto, que um estudo consagrado a outras formas de lazer – tais como o cinema, a televisão ou rádio comerciais – conduziriam a conclusões semelhantes.
Hoggart explora o imaginário do “homem comum”, os mitos contraditórios do “vigor rústico” e da “doçura feminina” das pessoas do povo, bem como a “consciência de classe” das classes trabalhadoras comumente enaltecidas e idealizadas por sociólogos, jornalistas e outros intelectuais que estudam a cultura dita popular. Para ele, tais segmentos de classe consumiam uma cultura cada vez mais massificada e alienante.
Escrevi as linhas anteriores porque, entendo, encontram-se diretamente relacionadas à Sábado à noite, domingo de Manhã, de Alan Sillitoe (1928-2010), publicado na Inglaterra no outono de 1958, obtendo imediatamente enorme sucesso de público e crítica. Romance de estreia de Sillitoe – autor de 80 livros, compreendendo romances, contos, poemas, ensaios, infantis, compilações, autobiografia, peças teatrais, roteiros de cinema etc. –, retrata a vida de membros da classe operária com seu dia-a-dia sem grandes encantos e marcado por uma série de dificuldades. Arthur Seaton, o personagem central, tem 21 anos e trabalha o dia todo em um torno mecânico. À noite, em especial nos fins de semana, aproveita para se divertir tomando infindáveis canecas de cerveja e mantendo casos amorosos com duas mulheres casadas.
Escrito em 1956-57, em Maiorca, o livro foi rejeitado por quatro editoras. Apesar de não ser um romance autobiográfico, a história reflete a atmosfera na qual Sillitoe foi criado. Natural de Nottingham, deixou os estudos aos 14 anos para trabalhar em uma fábrica de bicicletas e aos 17 já era auxiliar de controle de tráfego aéreo em um aeroporto militar. Na segunda guerra mundial viajou como operador de telégrafo, tendo entre 1952 e 1956, vivido na França e na Espanha. Sábado à noite, domingo de manhã e A solidão do corredor de longa distância (1959), seus livros mais famosos, foram transformados em filmes.
Arthur, enquanto trabalha em seu torno, realizando operações padronizadas e repetitivas, sendo remunerado por peça produzida, vai “construindo seus castelos de areia” e pensando em coisas agradáveis, porque seu ofício não lhe proporciona grandes satisfações. Às vezes, imagina-se bem rico; mas geralmente não se esquece de que depois de 8 horas de trampo vai tomar um bom banho, engolir rapidamente seu jantar, colocar uma boa roupa – vestir-se bem é, para ele, ponto de honra –, entornar algumas cervejas e ter com Brenda em algum bosque ou beco escuro das redondezas. Arthur é apenas um dos vértices do quinteto, que se completa com Brenda e seu marido Jack (ferramenteiros, colega de trabalho de Arthur e apaixonado por corridas de cavalos nos fins de semana), com Winnie (irmã de Brenda) e Bill, que presta serviço militar na Alemanha.
Arthur sabe que precisa produzir bem acima da média para receber as libras adicionais e tocar sua vida. Entretanto, se exagerar na produção, os colegas vão marginalizá-lo, razão pela qual vai temperando: pela manhã rende o máximo, satisfaz ao inspetor de produção e, aos poucos, diminui o ritmo, de modo a ficar ligeiramente acima do normal. Assim, cava poucas libras a mais e se poupa fisicamente no período da tarde.
Sábado à noite, domingo de Manhã, apesar de não ter nada de excepcional, é muito bem escrito e consegue prender a atenção do leitor. Os menos exigentes vão encontrar nele as cenas clássicas, semelhantes à uma comédia de boulevard: Arthur se encontra com Brenda e, horas depois, está na aconchegante cama de Winnie; Jack, escalado para o turno da noite, chega mais cedo e obriga Brenda a uma série de contorcionismos para que Arthur saia de fininho; Bill, após dar uma “corretiva” em Winnie, sai com outro colega brutamontes à caça de Arthur.
Além disso, o bem-humorado Arthur, que mora com os pais, adora provocar seu velho, contar-lhe lorotas e distorcer as manchetes dos jornais sensacionalistas lidos pela classe operária inglesa. Por outro lado, os mais exigentes verificarão que provavelmente Richard Hoggart tinha razão quando afirmava que a maioria do operariado no capitalismo desenvolvido não desejava grande envolvimento com a política e com os sindicatos se conseguisse alcançar um patamar salarial razoável, que lhe permitisse comprar, com dificuldades, um bom aparelho de TV – não se deve esquecer que o livro de Sillitoe é de 1958.
O espaço geográfico em que os operários circulavam raramente ultrapassavam os limites do bairro. Então, os encontros entre os amantes acabavam ocorrendo sempre nas proximidades da fábrica ou da casa, em clubes ou pubs onde os jogos e a cerveja predominam, sendo frequente uma das partes resolver a situação na força bruta (Bill e o colega do Exército arrebentam Arthur à saída de uma noitada etílica); a tensão provocada pelo ritmo febril, o desgaste físico e o envelhecimento precoce já se manifestam nos homens antes dos 30 anos (Jack, aos 29, já tem o rosto constantemente carrancudo e sem brilho).
Este romance de estreia de Alan Sillitoe, cativante, destituído de heróis e de clichês, constitui um retrato fiel – um quase documentário – da classe operária inglesa dos anos 1950, em que a luta de classes está praticamente colocada em segundo plano e o bem-estar “possível”, num regime capitalista, à classe está assegurado. Marx já afirmava que a reprodução da força de trabalho é garantida pelo salário pago aos trabalhadores, e que esse salário deve ser determinado pelas necessidades de um mínimo histórico, variável em cada país, que assegure a sobrevivência dos indivíduos e de seus familiares: “É preciso não se esquecer da cerveja para os operários ingleses e do vinho para os trabalhadores franceses”. Aliás, é bom destacar, o cheiro de cervejas inglesas impregna as quase 300 páginas deste agradável Sábado à noite, domingo de manhã.
*Afrânio Catani é professor aposentado na USP e professor visitante na UFF.
Este artigo é uma versão, com algumas alterações, da resenha publicada no extinto “Caderno de Programas e Leituras” do Jornal da Tarde em 12.02.1983.
Referências
HOGGART, Richard. The Uses of Literacy: Aspects of Working Class Life (with special reference to publications and entertainments). London, Chato and Windus.
SILLITOE, Alan. Sábado à noite, domingo de manhã. Tradução: Aulydde S. Rodrigues. Rio de Janeiro: Guanabara.