Astrojildo Pereira

Imagem: Liubov Popova
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Por MARCELO RIDENTI*

Considerações sobre a reedição dos livros do fundador do PCB

Astrojildo Pereira (1890-1965) foi um homem que marcou seu tempo, apesar de vencido nas lutas políticas travadas ao longo da vida. Perdedor como anarquista, a seguir como marxista expulso do Partido Comunista (PCB) no começo dos anos 1930, após ter sido o legendário secretário-geral e um dos fundadores da organização em 1922. No período de ostracismo, dedicou-se aos negócios familiares de comércio de bananas em Rio Bonito, no interior do Rio de Janeiro, com incursões também na capital, quando produziu o essencial de sua obra.

Retornou ao PCB após a Segunda Guerra, com o custo de penosa autocrítica que não foi suficiente para guindá-lo novamente a postos de direção, mas permitiu o reconhecimento entre os camaradas, passando a atuar sobretudo como intelectual. Ainda sofreria novas derrotas, talvez a mais dolorida imposta pelo golpe de 1964, que o prendeu, agravando as condições de saúde que o levaram à morte em novembro de 1965, alguns meses depois de libertado. Um dos argumentos para soltá-lo foi a admiração do autor por Machado de Assis, unanimidade nacional, sobre quem Astrojildo Pereira escreveu textos reconhecidos pelos estudiosos. A devoção vinha da juventude, quando ele protagonizou o episódio do beijo na mão do bruxo do Cosme Velho no leito de morte.

O caso ficou célebre numa crônica de Euclides da Cunha na época, reproduzida na coleção dos cinco livros de Astrojildo, agora republicados pela editora Boitempo. Como bônus, há um volume de Martin Feijó com a biografia O revolucionário cordial. A nova edição das obras – que estavam dispersas e fora de catálogo – permite aquilatar a relevância do autor não só como político, mas também como pensador social e crítico cultural. A reedição vem nas comemorações de 100 anos do Partido Comunista e de 200 da Independência. As efemérides dão oportunidade para jogar luz sobre esse pensador indispensável para ajudar a desvendar o enigma que é o Brasil.

Por se tratar de dirigente comunista, a dimensão política é importante antes de mais nada. No livro Formação do PCB, 1922/1928, originalmente publicado em 1962, Astrojildo dá sua versão para a história dos primeiros anos do partido que dirigia, valorizando em especial a atuação no breve período de legalidade, de janeiro a agosto de 1927, logo após o fim do estado de sítio que durara até o fim do governo de Arthur Bernardes. Embora não comente seu passado anarquista, a obra é toda pontilhada de críticas àquele movimento adverso “a qualquer forma de direção unitária e centralizada”, infenso a “qualquer forma de participação em eleições e lutas parlamentares” (p. 68, 100).

Astrojildo já tinha quase 32 anos de idade quando ajudou a fundar o PCB, era um homem de extensa militância anterior, anarquista desde 1911. Os textos de Formação do PCB expressam seu desejo de se livrar dessa mácula que pairava sobre ele e outros fundadores, não raro acusados na luta interna por suas origens anarquistas. Nesse livro e nos demais, o autor faz observações gerais sobre o anarquismo como “antecedente da fundação do PCB”, mas não aborda sua própria participação como ator político de proa no movimento. Uma lacuna que é preenchida em boa parte na biografia escrita por Feijó e nos comentários de especialistas que integram a coleção, como os de Segatto para o primeiro volume, cuja orelha é de Fernando Garcia de Faria.

Eles também tendem a valorizar a experiência do PCB nos anos 1920, quando teve autonomia relativa considerável diante de Moscou, o que possibilitou por exemplo a formação de uma política de frente, criando o BOC, como era conhecido o Bloco Operário e Camponês. O BOC expressava a tentativa de aproximação também com movimentos rebeldes como o dos tenentes, de onde sairia a liderança de Luiz Carlos Prestes, cuja conversão ao comunismo teve influência de Astrojildo Pereira, que o visitou em dezembro de 1927 na Bolívia, onde estava exilado.

Astrojildo Pereira sai pela tangente quando o tema é a história do PCB no final dos anos 1920, que o levaria à perda do cargo de dirigente máximo e logo à expulsão na fase do chamado obreirismo, que gerou o expurgo de outros intelectuais como Heitor Ferreira Lima, autor da apresentação ao volume URSS, Itália, Brasil. Originalmente publicado em 1935, engloba escritos de Astrojildo Pereira sobretudo do começo dos anos 1930, quando continuava a ser comunista, embora expulso do partido. Busca analisar o avanço do fascismo na Itália, contraposto ao que lhe parecia ser o futuro da humanidade, vendo com entusiasmo a implantação do plano quinquenal na União Soviética. Tratou também da influência no Brasil dessas duas experiências antagônicas. Um tema que parecia sepultado no passado, mas ganhou atualidade inesperada no contexto político recente de avanço da extrema direita, como lembram Marly Vianna no texto introdutório inédito e Dainis Karepovs na orelha do livro.

Por sua vez, Interpretações reúne escritos de 1929 a 1944 sobre romances brasileiros – cerca de metade do volume –, história política e social, bem como o contexto da II Guerra Mundial, a impor “tarefas à inteligência”. Na apresentação, Flávio Aguiar aponta o Rio de Janeiro como personagem que atravessa todo o livro “espantosamente bom”. Como apêndice, há o artigo do jovem Florestan Fernandes comentando a primeira edição para a Folha da Manhã em 1945, irmanado com o autor na luta dos intelectuais pela democratização. Também foi incluído o longo depoimento de Nelson Werneck Sodré, de 1990, sobre a vida e a obra de seu amigo Astrojildo Pereira, além da orelha de Pedro Meira Monteiro, que ressalta a excelência da crítica do autor fluminense ao tratar da luta de classes “sem se render aos esquematismos fáceis”.

Machado de Assis é o tema principal do volume que leva seu nome e traz também “apontamentos avulsos”. A apresentação é de José Paulo Netto, com orelha de Luccas Eduardo Maldonado. Apêndices reúnem escritos na imprensa sobre Astrojildo Pereira, produzidos em diferentes momentos por Euclides da Cunha (1908), Rui Facó (1958) e Oto Maria Carpeaux (1959), para quem o autor alcançou nesse livro “o equilíbrio perfeito de tradição e revolução”.

Por fim, o volume mais alentado, com mais de 400 páginas, é Crítica impura, coletando textos sobre política e cultura produzidos entre 1930 e 1960. A apresentação inédita é de Josélia Aguiar, a orelha coube a Paulo Roberto Pires, e como apêndice consta o texto de Leandro Konder de 1990, com breve balanço sobre a contribuição do autor.

Como se vê, a coleção reuniu um conjunto de intelectuais de peso para apresentar e comentar a obra de Astrojildo, cuja densidade fala por si mesma, em linguagem clara. Vários deles observam que a melhor parte foi produzida no período em que esteve fora do PCB, embora continuasse a se identificar como seguidor de Marx e de Lênin, cujo funeral testemunhara em Moscou. Isso dá o que pensar, sugere que a militância comunista limitaria o pensamento criativo por parte de seus intelectuais, com dificuldades para se livrar dos dogmas do marxismo soviético.

Algo corroborado por teóricos que deram sua contribuição mais consistente após deixar o partido, mesmo que continuassem na trilha do materialismo histórico, caso emblemático de Jacob Gorender. Também é sabido que o pensador comunista clássico foi Caio Prado Jr. que, entretanto, sempre foi relativamente marginalizado na política partidária. Isso leva à questão: se a militância comunista tendia a entravar o pensamento original para pensar a formação social brasileira, se Astrojildo Pereira produziu o melhor de sua obra quando estava fora do PCB, por que ele voltou a suas fileiras em 1945? Por que o principal dirigente dos anos 1920 aceitou ocupar posição politicamente secundária até morrer?

Responder a essas perguntas não é simples, ainda mais no espaço restrito de uma resenha. Primeiro há que se considerar a convicção política, a fidelidade a seus ideais, a crença de que o partido seria o melhor caminho para organizar os trabalhadores em busca do socialismo. Para além desse fator, as obras dão algumas pistas que podem ser encontradas por exemplo na análise detida de Astrojildo Pereira sobre dois romancistas com os quais se identificava. Lima Barreto e Machado de Assis, como ele, eram relativamente outsiders, embora Astrojildo Pereira fosse branco e contasse com mais recursos materiais. Estudou em bons colégios particulares, mas não atingiu o ensino superior, construindo uma trajetória de autodidata. Os três tinham o desejo ambíguo de negação da ordem e de reconhecimento pela intelectualidade estabelecida. Astrojildo Pereira foi pioneiro na leitura de Machado de Assis como autor crítico da ordem constituída, e na valorização de Lima Barreto

Uma vez que Astrojildo Pereira se permitiu ler a obra de barretiana para compreender o lugar deslocado desse escritor no meio intelectual, ao propor afinidades entre seus personagens e o romancista, então não seria descabido pensar a análise que Astrojildo Pereira faz de Lima Barreto para compreender sua própria trajetória como intelectual. Ele usa o mesmo procedimento em relação a Machado de Assis, que “ainda quando procurava analisar os outros, ele acabava sempre analisando-se a si mesmo” (Machado de Assis, p. 34). A defesa ao mesmo tempo lúcida e apaixonada que Astrojildo Pereira faz de sua interpretação de Machado de Assis como autor com “instinto e consciência de nacionalidade”, cuja obra expressava fina crítica política e social, no fundo é a defesa de suas próprias posições.

Eis a hipótese para matar a charada: entre o impulso da rebeldia ao modo de Lima Barreto, que o tornava quase pária, e a acomodação com a ordem vigente sem perder a mirada crítica irônica de um Machado de Assis, Astrojildo Pereira encontrou sua síntese na militância comunista, ao mesmo tempo radical e constituinte de institucionalidade alternativa, com seus critérios específicos de legitimação e consagração. O reconhecimento intelectual, como uma espécie de prêmio de consolação na visão dos dirigentes, talvez fosse bem mais do que isso para o autor. Significaria a possibilidade de difusão de suas ideias e de obter o prestígio intelectual que seria mais difícil por outros meios, se permanecesse diluído numa posição secundária entre os dominantes.

A organização no partido dava a possibilidade de escapar do isolamento de um autor alternativo como Lima Barreto, que viveu numa época que impunha limites aos intelectuais críticos, ainda mais aos vindos de fora dos círculos intelectuais estabelecidos. Os mesmos limites que Machado de Assis tratou de contornar, participando com sua ironia e seu ceticismo do próprio sistema. O surgimento do Partido Comunista proporcionaria a alternativa institucional que Barreto e Machado não tiveram. Astrojildo Pereira encontrou nele o lugar para expressar algo que se revelava desde sua juventude, o sentimento de revolta com a situação mais geral do país, do povo e dos trabalhadores, que vinha junto com a busca de fazer ouvir a sua voz nos fechados círculos políticos e intelectuais. Uma tensão entre lutar contra a ordem e o desejo de reconhecimento institucional, no processo tortuoso de construção contra-hegemônica.

Apesar de todas as adversidades políticas, Astrojildo Pereira ficou longe de ser derrotado, a julgar pelo relançamento conjunto de sua obra, pelo fato de dar nome a uma fundação, pela admiração que lhe devotam diversos intelectuais – não só os que se consideram seus herdeiros. Ganhou o lugar almejado na galeria do pensamento social brasileiro, talvez bananas no lugar das batatas do famoso personagem-filósofo machadiano, como se cantasse certa marchinha de seu tempo: “Yes, nós temos banana”. Yes, nós temos Astrojildo.

*Marcelo Ridenti é professor titular do Departamento de Sociologia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de O fantasma da revolução brasileira (Unesp).

Publicado originalmente na revista Margem Esquerda no. 39, 2º. semestre de 2022, Boitempo.

 

Referência


Caixa Astrojildo Pereira.

Astrojildo Pereira. Formação do PCB: 1922-1928 – notas e documentos. São Paulo, Boitempo, 2022, 192 págs.

Astrojildo Pereira. URSS Itália Brasil. São Paulo, Boitempo, 2022, 184 págs.

Astrojildo Pereira. Interpretações. São Paulo, Boitempo, 2022, 280 págs.

Astrojildo Pereira. Machado de Assis: ensaios e apontamentos avulsos. São Paulo, Boitempo, 2022, 280 págs.

Astrojildo Pereira. Crítica impura. São Paulo, Boitempo, 2022, 416 págs.

Martin Cezar Feijó. O revolucionário cordial: Astrojildo Pereira e as origens de uma política cutural. São Paulo, Boitempo, 256 págs.

 

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