Nota sobre o financiamento da educação

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Por PENILDON SILVA FILHO*

O Brasil vive seu último boom demográfico, uma janela de oportunidade irrepetível. Investir maciçamente da creche à pós-graduação, excluindo tais gastos do teto fiscal, é a condição para transformar a potência ambiental em desenvolvimento soberano e evitar o congelamento definitivo na periferia do sistema global

1.

O Brasil volta a debater temas estratégicos e uma retomada do papel do Estado como planejador e implementador de um projeto de nação, agora de forma impulsionada pela necessidade de salvaguarda da soberania nacional e redesenho das relações geopolíticas.

O Governo Federal avança no debate da Estratégia Brasil 2050 (EB 2050) e da COP 30, e nesse contexto um eixo estruturante para esses debates e iniciativas, com potencial para impactar a estratégia geral de desenvolvimento do Brasil, é o financiamento da educação, com ênfase na priorização da educação integral na educação básica, na recuperação dos investimentos nas universidades e no debate de um projeto da educação superior e da universidade brasileira, como parte de um projeto de nação. Esse projeto de nação também envolve a Nova Indústria Brasil (NIB), o aprimoramento da democracia, a defesa da soberania, uma transição socioecológica e uma reforma do Estado nacional que supere o neoliberalismo.

Devemos considerar que há uma transformação em curso na geopolítica global, marcada pelo fortalecimento do Sul Global e pela intensificação dos laços do Brasil com os BRICS, com a América Latina e com a África – movimentos complementares entre si. Essa reorientação deve permitir que o Brasil deixe de ser meramente exportador de produtos de baixo valor agregado e passe a integrar as cadeias globais de produção com alto valor agregado de seus produtos e serviços, de forma soberana, aproveitando suas potencialidades ambientais, sociais e econômicas.

Por exemplo: não apenas exportar terras raras, mas precisamos desenvolver um projeto de longo prazo para estabelecer cadeias produtivas que beneficiem esses recursos em território nacional, combinando capital nacional, estrangeiro e a participação estatal. Não apenas produzir energia limpa e exportá-la como commodity para outros países, mas instalar grandes parques eólicos, solares e produzir hidrogênio para adensar indústrias locais.

Isso exige impulsionar a Nova Indústria Brasil (NIB), além de investimentos em educação em todos os níveis (da creche à pós-graduação), em Ciência e Tecnologia e em Inovação, fortalecendo a relação entre universidades, centros de pesquisa e indústrias. Essa relação deve ser compreendida em sentido amplo, abrangendo áreas como Tecnologia da Informação/Inteligência Artificial, transição energética e os demais setores indicados na NIB, como o complexo industrial da Saúde, industrial aeroespacial e da defesa.

2.

O Brasil debate atualmente o novo Plano Nacional de Educação (PNE). O principal desafio reside no financiamento do futuro PNE, uma vez que o plano anterior (2014-2024) possuía uma proposta consistente de financiamento, cuja implementação foi inviabilizada pelo golpe contra a presidenta Dilma Rousseff e pela eleição de Jair Bolsonaro.

Atualmente, esse financiamento precisa ser excluído do arcabouço fiscal para viabilizar o salto necessário rumo a um país educado, com alto desenvolvimento científico e tecnológico e capacidade de inserção nas cadeias globais de produção.

Essa exclusão do arcabouço fiscal se justifica pois vivemos o último boom demográfico do Brasil, posteriormente em 2050 a maior parte da população será idosa ou próxima dessa fase. Se almejamos alcançar o desenvolvimento por meio de um projeto de reindustrialização verde, com o Brasil inserido no Sul Global não apenas como exportador de commodities agrícolas e minerais, os investimentos em educação (insistimos, da creche à pós-graduação), em Ciência e Tecnologia, em Inovação e nas indústrias da Quarta Revolução Industrial devem ser realizados agora.

Esses investimentos não devem estar constrangidos pelos limites da política fiscal ou pelos interesses orientados para o ganho do capital financeiro improdutivo, que não tem compromisso de longo prazo com o país.

É necessário promover um consenso social para viabilizar os investimentos necessários em educação, ciência, tecnologia, cultura e inovação, permitindo que o Brasil atinja um novo patamar de desenvolvimento e prosperidade compartilhada, tal como alcançado por outras nações.

Historicamente, países que combinaram investimentos em todos os níveis educacionais (não apenas nas séries iniciais da educação básica) durante períodos de boom demográfico – quando crianças e jovens representavam a maioria da população – conseguiram formar uma força de trabalho capaz de impulsionar uma fase de maior riqueza e prosperidade, com ganhos de produtividade baseados em avanços tecnológicos, melhores condições de vida e enriquecimento cultural da população.

Essa estratégia deve ser implementada sem perder de vista os elementos contemporâneos, como uma revolução tecnológica acelerada, o avanço das tecnologias limpas, atransição energética e a integração cultural, científica e tecnológica global, que coexistem com uma crise ambiental urgente.

Há precedentes bem-sucedidos em nossa história para o financiamento responsável da Educação: a aprovação do PNE 2014-2024, que estabeleceu a meta de investir 10% do PIB em Educação, foi conseguida com a quase unanimidade no Congresso Nacional. Da mesma forma, em 2020, o Novo Fundeb foi aprovado com amplo consenso parlamentar, superando a resistência do então governo de Jair Bolsonaro.

Esses exemplos demonstram que é possível construir uma agenda abrangente na sociedade e realizar uma concertação que transcenda as limitações impostas pela responsabilidade fiscal – seja por meio de fontes específicas de financiamento (como os royalties do pré-sal, em 2014), seja pela exclusão de gastos educacionais do teto de despesas, como também já ocorreu com o Fundo Constitucional do Distrito Federal (FCDF) e o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) no Novo Arcabouço Fiscal em 2023.

Propomos também indicar as fontes específicas de financiamento para as metas do PNE, inicialmente indicamos os recursos do fundo dos royalties do Pré-Sal, mas o debate sobre a reforma tributária para diminuir a taxação sobre a classe trabalhadora e aumentar um pouco a contribuição dos mais ricos para ao desenvolvimento nacional será importante, além de rever as imensas isenções tributárias para setores econômicos poderosos que não precisam dessas benesses.

3.

Inserido nesse eixo estruturante, é fundamental debater qual projeto de Universidade o Brasil defende, articulado a um projeto de nação e a relações geopolíticas soberanas com o “Sul Global”. Nesse sentido, é importante envolver não apenas as universidades, mas atores da comunidade científica em geral, a educação básica, os gestores públicos, as empresas, os movimentos sociais, para dialogar e construirmos esse projeto de universidade.

Podem ser protagonistas desse diálogo a ANDIFES e a ABRUEM, o governo federal com o MEC, o MCTI, o MINC, o Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentado da Presidência da República, a SBPC, a Academia Brasileira de Ciências, e as entidades representativas dos demais segmentos indicados, dos trabalhadores, empresariais e diversos movimentos sociais.

Entendemos que essa priorização da Educação, Ciência Tecnologia e Inovação é uma iniciativa que pode aliançar desde os movimentos sociais até os setores empresariais com um projeto desenvolvimentista de nação, e assim contribuir para superar desafios estruturais sérios do Brasil e ajudar a novos trilhar caminho.

Dentre os desafios estruturais podemos citar três. O primeiro é a fragilidade do Estado Nacional como uma instância de planejamento de longo prazo, de indução de um projeto de desenvolvimento nacional que combine inclusão social, sustentabilidade ambiental, desenvolvimento científico e tecnológico e a soberania nacional. A fragilidade do Estado também abre espaço para o crime organizado, a destruição ambiental e a anomia social.

O segundo desafio é a dificuldade de criar uma hegemonia clara de setores sociais que redirecione as riquezas nacionais hoje capturadas pelo capital financeiro/rentista. Uma aliança que conjugue os diferentes setores dos trabalhadores e diversos setores empresariais comprometidos com a produção real, visando uma sociedade em que a educação, a ciência e a tecnologia são as principais forças motrizes.

Uma incapacidade de ter uma nova hegemonia clara e forte dificulta um projeto articulado de universidades e centros de pesquisa, especialmente no conceito de reindustrialização verde. Essa falta de hegemonia clara é o que provoca uma instabilidade política e institucional para os projetos de longo prazo. Um projeto de nação de longo prazo precisa de uma hegemonia social, essencial para uma estabilidade duradoura.

4.

O terceiro desafio é processo de desindustrialização que ocorreu com a reprimarização da produção e da exportação brasileiras. Uma economia tornada cada vez mais agroexportadora e minério-exportadora torna o Brasil mais frágil e exposto no cenário econômico mundial, com uma destruição ambiental muito acelerada de todos os biomas, comprometendo o futuro e a soberania nacionais.

Esse processo de reprimarização joga o Brasil para a periferia da economia mundial num momento histórico de aceleração brutal do desenvolvimento científico e tecnológico, o que têm aumentado o atraso relativo do país em relação a outros países.

Por outro lado, o fortalecimento dessa iniciativa de priorização da educação, da ciência e tecnologia e inovação pode contribuir para o Brasil se tornar a nova “potência ambiental”, pela sociobiodiversidade, potencial de energias renováveis, biomas que podem ser regenerados para propiciar captura de carbono e fortalecimento dos ciclos naturais.

Essas políticas não são um obstáculo para o desenvolvimento, mas uma chance histórica para impulsionar um novo paradigma de desenvolvimento humano, desde que se invista fortemente em ciência, tecnologia, cultura e inovação e se envolvam as populações com a produção de riquezas sustentáveis e de maior valor agregado, o que demanda uma população mais educada e valorizada em suas regiões. O Nordeste é grande produtor de energias solar, eólica e hidráulica, e devem estar articuladas com um projeto de industrialização verde e justa.

A educação no Brasil pode contribuir para sua política externa altiva e ativa, consolidar sua posição de “player” internacional pela construção de uma nova governança global, pela paz, pela construção de relações econômicas, sociais e culturais do “Sul Global”. Isso gera oportunidades de fortalecimento de seu Estado nacional e de se beneficiar de fluxos de investimento pela desagregação da velha ordem mundial, tendo o Brasil como articulador de alianças globais que substituam relações imperialistas por modelos de cooperação.

Brasil, um país que constrói sua soberania com um novo paradigma de desenvolvimento sustentável, como potência ambiental, educacional e energética global e que contribui com o protagonismo do Sul Global e uma ordem mundial pacífica e pós-imperialista.

*Penildon Silva Filho é professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA).


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