Ninguém disse que seria fácil

Carlos Cruz-Diez, Physichromie 1, 1959
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Por JULIAN RODRIGUES*

Considerações sobre o livro récem-lançado de Valério Arcary

“Nossos companheiros são também nossos amigos? Qual a relação entre compromisso militante e felicidade? Devemos confiar nas direções? A militância é uma cruzada moral? Não é necessário discutir a dimensão subjetiva da vida, o sofrimento psíquico?”

Forma é desde sempre conteúdo. E vice-versa. Marx e Engels fizeram o Manifesto Comunista mirando no objetivo de que o panfleto viesse a ser lido e compreendido pela massa dos trabalhadores. Algo, que, a rigor, ainda faz sentido – testemunho pessoal: 142 anos depois, aos 16 anos, ensino médio incompleto, morando no interior de Minas Gerais, estudante de escola pública, eu não só li e entendi, mas também fiz do Manifesto uma referência para toda a vida.

Ao decidir coletar e organizar dezenas de reflexões – aparentemente despretensiosas – antes publicadas em sua página do Facebook e transformá-las em capítulos de livro, Valério Arcary bateu de frente com a lógica do senhor de todas as coisas – o jovem Mark Zuckerberg. Perenizar o pensamento. Registrá-lo e formatá-lo – valorizar a fabulação, o processo intelectual. Evitar que elaborações acabassem na forma de descartável link – fadado a desaparecer nas redes sociais.

O livro tem 42 curtos capítulos (ex-posts). Podem ser lidos de frente para trás, de trás pra frente, do meio pro final, do fim para o início, etc.

A propósito, tópico recorrente, e atualíssimo: ao tratar de religiosidade, o autor enfatiza que ser socialista não tem nada a ver com aderir a uma organização de ateus/ agnósticos.

O programa socialista constitui-se na separação absoluta entre Estado e Igrejas. Não interfere na dimensão da vida privada. A fé (ou a ausência dela) é experiência individual. Entretanto, a luta política contra igrejas reacionárias é legítima e necessária.

Valério Arcary trata de muitos espinhosos temas para qualquer organização de esquerda. Generosamente – preservando sua costumeira elegância coloca o dedo e até mesmo futuca um tantão de feridas. Como os militantes devem se relacionar com as direções de seus coletivos? Como trabalhar em equipe? Quais limites separam vida privada da atuação pública ou apartam a paixão do fanatismo?

A linha geral do autor é: nem credulidade nem idealização. Nem suspeição crônica nem ingenuidade – a militância socialista é um compromisso de vida.

Vida e obra

Dirigente histórico da esquerda brasileira, Valério Arcary conta ter decidido se tornar revolucionário profissional (marxista e trotskista) aos 21 anos.

Nascido no Rio de Janeiro, estudou em Portugal e na França. Vivia em Lisboa na hora mágica na qual explodiu a Revolução dos Cravos. Ainda hoje carrega em seu falar forte acento português, chiando mais que um típico carioca – característica que somada à sua caudalosa oratória, sempre lhe conferiram destaque, um certo charme quase exótico.

De volta ao Brasil em 1978, Arcary integrou-se à Convergência Socialista, organização que ajudou a dirigir por muitos anos. Foi também, por muito tempo, sua principal figura pública.

Corrente trotskista referenciada no pensamento do argentino Nahuel Moreno a Convergência Socialista desempenhou um papel muito importante na criação do PT e da CUT. Tinha implantação significativa no Movimento estudantil e sindical desde meados dos anos 1970 até início dos 1990, formando gerações de militantes.

Em 1992, a Convergência Socialista rompeu com o PT, criando o PSTU. Giro sectário inicial, que acabou por desaguar nas posições atuais do partido, um agrupamento cada vez menor e menos relevante. São anti-Maduro, contra Evo, Cuba, Lula. O nível de sectarismo é tão agudo que se torna dificílimo classificá-los. Disputam com o PCO a posição de seita trosca mais exótica do país.

Muitos setores e quadros deixaram a velha Convergência Socialista ao longo dos anos. Alguns deles permaneceram por muito tempo no PT e depois dedicaram-se a construir o PSOL (como a CST de Babá ou o MES de Luciana Genro, por exemplo).

Valério Arcary, professor de história da rede pública paulista, ajudou a dirigir e foi um respeitado orador que vocalizou as posições da Convergência/PSTU anos a fio.

Em 2016 surgiu no interior do PSTU, o MAIS (movimento por uma alternativa independente socialista), inicialmente tendência interna que liderava forte dissidência e acabou saindo do Partido. Transcorrido alguns meses da ruptura com PSTU, o MAIS deliberou por entrar no PSOL. Valério Arcary, liderança desse agrupamento foi um dos dirigentes principais que operaram o racha (doloroso, imagino) com o PSTU e a relocalização política do coletivo rumo ao PSOL.

Desde sempre respeitado pelos dirigentes dos variados grupos da esquerda (mesmo quando tinha que reverberar atenuando ao máximo os delírios sectários do PSTU), Valério Arcary foi um dos principais impulsionadores do “Lula livre”. Na sequência, torna-se protagonista na construção da aliança PSOL-PT.

Um livro vermelho

Além dos capítulos diminutos, o autor opta também muitas vezes por frases curtinhas. Dicção formatada quase que via aforismos. Por exemplo:

“Nem todo mundo é legal. A tolerância não pode prevalecer com gente desonesta e torta”.

“As correntes políticas de esquerda não estão blindadas contra o perigo burocrático. Mas não é verdade que lideranças individuais são mais confiáveis que coletivos ou tendências”.

“Não precisamos de heróis. Tudo na vida é imperfeito. Confiança ou desconfiança absoluta é uma infantilização. A idealização política é a antessala da desilusão. Lideranças não nascem prontas, são educadas”.

“Não é possível ser socialista sem adquirir hábitos de disciplina para o estudo (..) decisão que exige compromisso permanente com a nossa autoeducação”.

Editado com o usual capricho pela Boitempo, Ninguém disse que será fácil, além de ser leitura prática, deve agradar simultaneamente tanto os ranzinzas velhos comunistas quanto entusiasmados jovens militantes.

Por óbvio ninguém disse que seria fácil. O título é pura provocação. Nos lembra Valério Arcary que a revolução nem é tão difícil assim – ainda menos impossível. O capitalismo segue sendo – dia após dia – máquina cruel e opressora. Talvez Valério Arcary queria mesmo é dizer: todas ferramentas são precárias, lideranças são bem mais ou menos e o programa nunca saberemos exatamente qual é.

O certo mesmo é que contra tudo, contra todos e contra a maioria de nós mesmos, haveremos de vencer. A propósito: quem ousou dizer que seria fácil?

*Julian Rodrigues, jornalista e professor, é ativista de Direitos Humanos e LGBTI.

Referência


Valério Arcary. Ninguém disse que seria fácil. São Paulo, Boitempo, 2022, 160 págs (https://amzn.to/3OWSRAc).

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