Nouvelle vague

Frame de "Nouvelle Vague", filme dirigido por Richard Linklater
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Por JOÃO LANARI BO*

Comentário sobre o filme de Richard Linklater, em exibição nos cinemas

1.

Como é possível um filme se chamar simplesmente Nouvelle vague, nome de um movimento de jovens cineastas no final dos anos de 1950 na França? Pois foi a sacada esperta de Richard Linklater para filmar um making of dramatizado sobre o clássico Acossado, que Jean-Luc Godard rodou em 1960. Nessa era de compartilhamentos fugazes via redes sociais em que vivemos, alguém compartilhar uma devoção por um filme e um cineasta é algo a ser exaltado – mesmo que o próprio homenageado, conhecido pelo seu mau humor, provavelmente repudiaria a ideia.

Foi o que Jean-Luc Godard fez quando se viu na tela em O formidável, de 2017, que relata bastidores do seu A chinesa, de 1967 – uma ideia estúpida, vociferou na ocasião. À revelia do mestre – palavra que seria imediatamente rechaçada por ele – resta aos aficcionados desse modo de filmar inventado pelo franco-suíço, em sintonia com os companheiros de geração, usufruir dos bons momentos exalados pelo ingênuo, porém sincero filme-homenagem de Richard Linklater.

Uma geração e tanto: estima-se que entre 1958 e 1962 algo como 170 cineastas estrearam em longa-metragem na França, segundo lista compilada por ninguém outro que François Truffaut! Um número estonteante, dadas as condições de produção, o cinema era analógico, filmar, revelar, montar, transcrever o som…

E foi em 1958 que o jornalista Pierre Billard pressentiu o fenômeno, o qual batizou de “nouvelle vague”. Como numa narrativa mitológica, Nouvelle vague nos apresenta os personagens de maneira didática, começando por Jean-Luc Godard e seus óculos escuros (Guillaume Marbeck), François Truffaut (Adrien Rouyard), Claude Chabrol (Antoine Besson), Jacques Rivette (Jonas Marmy), Eric Rohmer (Côme Thieulin), além de figuras consolidadas como Jean Cocteau (Jean-Jacques Le Vessier), que profere a célebre sentença “arte não é um passatempo, mas um sacerdócio” – contraposta logo em seguida por Jean-Luc Godard, frasista contumaz, com a igualmente célebre “para um filme, tudo que você precisa é de uma garota e uma arma”.

É nesse clima que flui a construção do mito, com as decisões abruptas e geniais que levaram à realização de “Acossado”, dos entreveros com o impagável produtor George “Beau Beau” Beauregard (Bruno Dreyfürst), com direito a briga entre os dois com rolamentos no chão do café, aos diálogos com François Truffaut no metrô, fundamentais – foi o amigo que rascunhou o argumento do primeiro longa de Godard, baseado em um true crime de um homem durão que atira em um policial e conquista uma namorada americana.

2.

Como os jovens tinham extensa cultura cinematográfica, absorvida na Cinemateca de Henri Langlois e na convivência com Andre Bazin no Cahiers du cinema, o argumento de François Truffaut – filmado com improvisação diária de cenas e diálogos – tornou-se uma deglutição em alta voltagem, de Roberto Rossellini (Laurent Mothe), que aparece dando uma inspirada e curta palestra no Cahiers, a Samuel Fuller, referência para a sequência final da corrida (des)dramatizada de Jean-Paul Belmondo no final do filme.

Jean-Paul Belmondo (Aubry Dullin) é central em “Nouvelle Vague”, boxeur e brincalhão, assim como Jean Seberg (Zoey Deutch), a star americana que, traumatizada, acabara de atuar em Bom dia, tristeza, de Otto Preminger – e logo pula para o Champs Elysées, em Paris, vendendo New York Herald Tribune. A relação que se instala no trio, Belmondo, Seberg e Godard, é responsável pelos melhores momentos do filme de Richard Linklater.

Em Acossado estava em jogo uma busca desesperada de amor e romance, com a certeza de que os dias de um assassino de policiais estão contados: Jean-Paul Belmondo vivia essa vertigem numa premência de tempo, que destilava um ritmo de montagem inovador, para dizer o mínimo, enquanto Jean Seberg parte da indiferença para a adesão ao que se passava – ou seja, uma mise-en-scène totalmente fora dos padrões convencionais.

E o árbitro desse pandemônio, Jean-Luc, alternando ausências de insegurança com decupagens fantásticas, mau humor com apelos afetivos, dirigindo a equipe em locações externas e internas, improvisando triciclos para rodar travellings, e proferindo citações literárias e filosóficas nos intervalos. O personagem Godard é quase uma caricatura em Nouvelle vague.

Destaque também para coadjuvantes do mito, com o brilhante Raoul Coutard (Matthieu Penchinat), cameraman com experiência na cobertura de guerras, escolha inspirada para o cinema de guerrilha godardiano. E a Suzanne Schiffman (Jodie Ruth-Forest), fiel colaboradora e presente em inúmeros filmes do grupo.

Entre tragadas de cigarro, Jean-Luc Godard montou um caos produtivo único na história do cinema – e realizou um filme divisor de águas.

*João Lanari Bo é professor de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Cinema para russos, cinema para soviéticos (Bazar do Tempo) [https://amzn.to/45rHa9F]

Referência


Nouvelle vague.
França, Estado Unidos da América, 2025, 105 minutos.
Direção: Richard Linklater.
Roteiro: Holly Gent, Laetitia Masson, Vincent Palmo Jr.
Elenco: Guillaume Marbeck, Zoey Deutch, Aubry Dullin, Adrien Rouyard, Antoine Besson, Jonas Marmy, Côme Thieulin, Jean-Jacques Le Vessier, Bruno Dreyfürst, Matthieu Penchinat.


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