A África na escola brasileira

Imagem: João Nitsche
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Por LUIZ ROBERTO ALVES*

As propostas das Diretrizes que associam África e Brasil revelam uma nova proposta civilizatória

O Brasil tem débitos abismais de direito sem relação ao povo afrodescendente, às comunidades quilombolas e todo o universo social mestiço, os quais têm estado na alça de mira – simbólica e literalmente – do elitismo, do sistema capitalista de produção e do jogo perverso de classes sociais. Mas, visto que rios de tinta, falas seculares, ordenações legais e promessas de toda a espécie pouco significaram na prática cotidiana das relações sociais, o esperançamento veio no início deste século com diretrizes e normas educacionais e culturais para reverter o modo-brasileiro-de-ser-atroz nas relações étnico-raciais. Por meio de muitas consultas, debates, seminários, estudos, entrevistas e reflexões, o Conselho Nacional de Educação, órgão do Estado brasileiro ligado ao MEC, deu à luz as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.

O desejo subjacente não poderia ser outro: no lugar em que a sociedade acolhe crianças e adolescentes, a escola, e no qual se criou uma história de direitos ao acesso e à permanência qualificada poderia dar-se um movimento simbólico de valores novos, os quais cruzassem práticas de respeito, encontros, relações eu-outro, solidariedade, conhecimento, estudo e pesquisa. Nesse lugar poderia nascer um movimento crescente de empatia que galvanizasse a vida social brasileira e, em sua práxis, questionasse diretamente a injustiça cotidiana, as relações de trabalho, os atos de intolerância, os preconceitos, a violência e a morte dessa gente que de modo algum é minoritária em estatística, mas fortemente minoritária em direitos e exercício da cidadania.

Não poderia ser melhor o texto inicial do Parecer 3, de 2004, do Conselho Nacional de Educação, CNE, sob a relatoria da Conselheira Petronilha Gonçalves e Silva:

Este Parecer visa a atender os propósitos expressos na Indicação CNE/CP 06/2002, bem como regulamentar a alteração trazida à Lei 9394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, pela Lei 10639/2003 que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica. Desta forma, busca cumprir o estabelecido na Constituição Federal nos seus Art. 5º, I, Art. 210, Art. 206, I, § 1° do Art. 242, Art. 215 e Art. 216, bem como nos Art. 26, 26 A e 79 B na Lei 9.394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que asseguram o direito à igualdade de condições de vida e de cidadania, assim como garantem igual direito às histórias e culturas que compõem a nação brasileira, além do direito de acesso às diferentes fontes da cultura nacional a todos brasileiros.

Em obediência às leis maiores, as Diretrizes se dirigem às comunidades educadoras do Brasil, as escolas, que são responsáveis pelos projetos pedagógicos, pelos regimentos escolares e, principalmente, pelo coração das relações de trabalho escolar, os currículos de estudos. Por não se bastarem à condição de grades ou matrizes curriculares, os currículos plenos de construção comunitária (Base Nacional Comum + Componentes e Atividades Diversificadas)  poderiam, ao lado do regimento e do PPP  subverter a história odiosa que foi sentida e chorada na escravatura ontem e hoje é sentida e chorada no mercado, na mira dos policiais, no jogo mentiroso das balas perdidas entre a suposta ordem e a malta dos bandidos, nas relações salariais, nas oportunidades de crescimento como pessoa e mesmo em todo o sistema de educação. As diretrizes poderiam, também, negar as conversas fiadas, bravatas e mentiras comuns e seguintes às cenas dos crimes, ou seja, justificativas, detalhes para enganar juris, safadezas verbais sobre “ a não-intenção de matar” e outras joias da sociedade odiosa que se criou na ilha de vera cruz. Nesta, por sinal, as “veras” cruzes são carregadas segundo o destino já traçado, a marca histórica, o acúmulo cultural, o fado e os fardos de pele, família, origem, lugar de sobrevivência e outras marcas atrozes.

As 69 páginas das Diretrizes (DCN mais Projeto de Resolução) apresentam introdução histórica, esclarecem os sentidos das relações África-Brasil, levantam princípios para a ação educacional, se concentram no ato indispensável de todas as escolas brasileiras – públicas, privadas, federais, estaduais e municipais – efetivamente prepararem educadores, organizarem materiais curriculares, conceberem estratégias e realizarem o que se normatiza na DCN visando o que já se assinalou. Para ficar ainda mais claro, cite-se o conjunto de valores entendido como princípios e objetivos:

Parágrafo 1° – A Educação das Relações Étnico-Raciais tem por objetivo a divulgação e produção de conhecimentos, bem como de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos quanto à pluralidade étnico-racial, tornando-os capazes de interagir e de negociar objetivos comuns que garantam, a todos, respeito aos direitos legais e valorização de identidade, na busca da consolidação da democracia brasileira. § 2º O Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana tem por objetivo o reconhecimento e valorização da identidade, história e cultura dos afro-brasileiros, bem como a garantia de reconhecimento e igualdade de valorização das raízes africanas da nação brasileira, ao lado das indígenas, europeias, asiáticas. § 3º Caberá aos conselhos de Educação dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios desenvolver as Diretrizes Curriculares Nacionais instituídas por esta Resolução, dentro do regime de colaboração e da autonomia de entes federativos e seus respectivos sistemas

Esclarece-se, pois, o sentido desse campo de estudos e pesquisas no sistema educacional brasileiro, que visa recriar a esperança do país digno, capaz de memória e capaz de abandonar seus ódios explícitos e implícitos derivados do horror escravagista, não importa se dissimulados ou não:

Art. 3° A Educação das Relações Étnico-Raciais e o estudo de História e Cultura Afro Brasileira, e História e Cultura Africana será desenvolvida por meio de conteúdos, competências, atitudes e valores, a serem estabelecidos pelas Instituições de ensino e seus professores, com o apoio e supervisão dos sistemas de ensino, entidades mantenedoras e coordenações pedagógicas, atendidas as indicações, recomendações e diretrizes explicitadas no Parecer CNE/CP 003/2004.

Nada mais claro e, no entanto, nada mais escondido das milhares e milhares de escolas, dos milhões de estudantes, famílias e entornos escolares, pois essa norma, vigente desde 2004, não galvanizou a vida social brasileira na direção da grande e indispensável mudança. E assim se deu porque as DCN foram pouco divulgadas e vividas na escola brasileira, pelos mesmos motivos odiosos já conhecidos e mais alguns ligados ao conformismo e ao descaso das autoridades educacionais. Restaram algumas honrosas e bonitas exceções.

Diga-se que Diretrizes educacionais teriam importância relativa no mar da história odiosa do Brasil, visto que crianças e adolescentes não têm poder algum de espalhamento de valores no coração da sociedade dominada pelos adultos. Bem, sendo assim, a escola é entendida na sua realidade de lugar passivo, invadida por currículos impostos, com estudantes dóceis e receptivos dos valores do poder tradicional. Noutras palavras, a escola não tem qualquer importância social, o contrário do que se diz em época eleitoral. Se a escola, lugar de pretensos iguais, não é lugar capaz de originar mudanças de pessoas, grupos e, enfim, da sociedade, é, então, lugar de falsa obediência, de autoritarismo sem autoridade, de listas de matérias que não levam a qualquer aprendizado significativo para toda a vida. Aí dá-se certa homologia entre a própria escola e o processo social brasileiro, que escolhe, separa, fragmenta, julga e mata os diferentes. Nessa direção, as crianças e os adolescentes pouco importam, exceto que sejam adestrados para o trabalho no modo de produção em vigor. Ou, talvez, coerentemente, nem para isso sirva.

Voltemos às Diretrizes, sem ter saído delas.

Elas portam brilhantismo, pois, em sua análise sócio-histórica, veem os males oriundos das discriminações, das violências e dos privilégios se abaterem sobre toda a sociedade e não somente sobre os afrodescendentes. O país está a perder-se no simplório, no banal, na leniência, na irresponsabilidade de dirigentes dos três poderes, menos aqui, mais ali. Daí a reação viva no texto das Diretrizes, de cuja base se esperou a criação de novas políticas de governança por todo o Brasil:

É importante salientar que tais políticas têm como meta o direito dos negros se reconhecerem na cultura nacional, expressarem visões de mundo próprias, manifestarem com autonomia, individual e coletiva, seus pensamentos. É necessário sublinhar que tais políticas têm, também, como meta o direito dos negros, assim como de todos cidadãos brasileiros, cursarem cada um dos níveis de ensino, em escolas devidamente instaladas e equipadas, orientados por professores qualificados para o ensino das diferentes áreas de conhecimentos; com formação para lidar com as tensas relações produzidas pelo racismo e discriminações, sensíveis e capazes de conduzir a reeducação das relações entre diferentes grupos étnico-raciais, ou seja, entre descendentes de africanos, de europeus, de asiáticos, e povos indígenas. Estas condições materiais das escolas e de formação de professores são indispensáveis para uma educação de qualidade, para todos, assim como o é o reconhecimento e valorização da história, cultura e identidade dos descendentes de africanos.

As DCN para as relações raciais também tiveram – têm – palavras firmes e percucientes em relação ao Estado brasileiro. Proferidas hoje, em tempo de absoluto desgoverno, parecem demasiadas para um país de estruturas jurídicas, trabalhistas, educacionais, culturais e econômicas delirantes, fragmentadas, “flexibilizadas”, enfraquecidas e às vezes tão injustas como um jogo do vale-tudo. Mas em 2004 o legislador seguia a Constituição chamada cidadã, seguia a LDB-1996, levava a sério o ECA, Estatuto da Criança e do Adolescente, que constituía mais de 50 milhões de meninos e meninas sujeitos de sua história. Muito provavelmente hoje não mais o são, pelo que os olhos e o sentimento observam sem ad-mirar e sim a sofrer. Ora, as Diretrizes estão em vigor e estão a depender do caráter dos gestores, que vão de diretores e diretoras de escolas a todas as autoridades da República, em todas as instâncias. Por estarem em vigor (será que o governo federal as esqueceu e, por isso, não as revogou, todas!) elas clamam, segundo a:

Constituição Federal, Art. 205, que assinala o dever do Estado de garantir indistintamente, por meio da educação, iguais direitos para o pleno desenvolvimento de todos e de cada um, enquanto pessoa, cidadão ou profissional. Sem a intervenção do Estado, os postos à margem, entre eles os afro-brasileiros, dificilmente, e as estatísticas o mostram sem deixar dúvidas, romperão o sistema meritocrático que agrava desigualdades e gera injustiça, ao reger-se por critérios de exclusão, fundados em preconceitos e manutenção de privilégios para os sempre privilegiados. Políticas de reparações voltadas para a educação dos negros devem oferecer garantias a essa população de ingresso, permanência e sucesso na educação escolar, de valorização do patrimônio histórico-cultural afro-brasileiro, de aquisição das competências e dos conhecimentos tidos como indispensáveis para continuidade nos estudos, de condições para alcançar todos os requisitos,  tendo em vista a conclusão de cada um dos níveis de ensino, bem como para atuar como cidadãos responsáveis e participantes, além de desempenharem com qualificação uma profissão.

As diretrizes são intérpretes de uma sociedade decidida a distribuir os frutos dos bens, do trabalho e da riqueza com todos e todas. Seu lugar de pensamento e ação é a comunidade educadora, a escola e seu entorno, a cidade. Elas são, também, lugares de exegese do país que continuou, na República, a prestar serviços sociais e educacionais seletivos e de baixa qualidade. E dado que, em sua leitura, o país em construção de futuro depende das novas gerações, as DCN botaram esperança nas mudanças a partir da escola, da comunhão de gestores/as, educadores/as, estudantes, pessoas de apoio, famílias e colaboradores. E acreditou, a considerar Hannah Arendt, que este é um país que ama suas crianças e adolescentes. Isto é, ama e prova que ama em todas as circunstâncias, inclusive quando toda essa criançada traz novos aprendizados para dentro da família e de seus grupos sociais. E esses aprendizados levam a mudanças, levam à alegria de viver juntos, ao prazer do diálogo, ao fim das discriminações, à revolução na formação militar do Brasil, com mais diálogos sobre direitos humanos do que treinamento de tiro,a novas legislações sobre o trabalho e, de modo geral, à garantia do fim das muitas formas de corrupção, pois é essa estrutura de males que atrasa a sociedade, sufoca a memória, exalta o lucro desmedido, aprofunda as misérias e institui toda a gama de preconceitos.

Enfim, para talvez começar algo novo com novos legisladores e prefeitos nos 5568 municípios do país, as Diretrizes Nacionais não se esqueceram de ser dignas e pensar a diversidade social do Brasil, ponto de partida para todo aquele/a que quiser administrar com beleza, com poética, com dignidade e verdade sua cidade:

É importante destacar que não se trata de mudar um foco etnocêntrico marcadamente de raiz europeia por um africano, mas de ampliar o foco dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira. Nesta perspectiva, cabe às escolas incluir no contexto dos estudos e atividades, que proporciona diariamente, também as contribuições histórico-culturais dos povos indígenas e dos descendentes de asiáticos, além das de raiz africana e europeia.

Na medida em que já sabemos que um bom currículo de estudos escolares representa o Brasil dentro da escola e quer estudar, pensar e sugerir, via currículo, um Brasil muito melhor do que o que se tem hoje, as propostas das Diretrizes que associam África e Brasil revelam, no fundo, uma nova proposta civilizatória.

*Luiz Roberto Alves é professor sênior da Escola de Comunicações e Artes da USP.

 

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