A consciência branca

Claud Lovat Fraser, o mercado de escravos, 1912–13
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Por LEONARDO SACRAMENTO*

A classe dominante republicana era a classe dominante escravocrata

O que é escondido no tráfico transatlântico de africanos?

Um dos grandes mitos sobre o escravismo brasileiro consiste na ideia segundo a qual teria sido benéfico ou menos pior comparado ao escravismo norte-americano. O debate é uma falácia representativa do ideário racista impregnado em que o faz, seja por tentar comparar escravismos e, portanto, genocídios, objetivando abrandar o escravismo nacional, seja por literalmente se utilizar de um subterfúgio patético para apontar benignidade no escravismo do qual é herdeiro.

Mesmo procurando radicalizar a defesa do escravismo benéfico, porque teria sido civilizador sobre os selvagens africanos e criador de uma civilização supostamente nova, algo replicado por autores como Gilberto Freyre, Katia Matoso, Mary Del Priore e toda a direita e extrema direita brasileira, como Olavo de Carvalho, Antônio Risério e Aldo Rebelo, os dados não ornam, ou melhor, desmontam o argumento pueril. E desmontam porque o argumento sempre se baseou no solapamento dos dados mais simples.

Iniciemos pelos dados demográficos. Dados do tráfico de africanos compilados pela Universidade de Emory (EUA) registram que, de 1826 a 1850 (24 anos), chegaram aos portos brasileiros 1.299.969 africanos, enquanto aos portos norte-americanos, de 1626 a 1875 (249 anos), 305.326 africanos. O próprio Robert Conrad, em Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888, sem os atuais bancos de dados, registrou que o Brasil traficou entre 1800 e 1850 aproximadamente 1.600.000 africanos e registrou 1.540.829 africanos escravizados em 1871, enquanto o vizinho do norte teria comprado 700 mil africanos e registrou, em 1860, algo em torno de 4.000.000 de descendentes de africanos. Sobre o Brasil, o dado correto, segundo David Eltis, pesquisador da Universidade de Emory, foram 2.300.000 africanos traficados para o Brasil entre 1800 e 1850, sendo 775.000 crianças. O dado de Conrad está subestimado, com 700 mil a menos para o Brasil e 400 mil a mais para os EUA, o que faz a mortalidade no Brasil incrivelmente maior.

Se se levar em consideração a proporção de traficados por ano, os EUA importaram 1.226 africanos por ano, enquanto o Brasil traficou 54.126 por ano. Se os EUA tivessem traficado a sua média nos 24 anos que o Brasil chegou a esse impressionante dado, teriam sido 29.424 africanos no total. Se o Brasil tivesse traficado a sua média nos 249 anos do período norte-americano, teria trazido ao país impressionantes 13.487.085 africanos. Ou seja, para cada africano trazido à força nos EUA, nos prazos comparados, o Brasil trouxe 44.

Quadro comparativo entre EUA e Brasil no tráfico transatlântico de africanos

Fonte: formulada a partir de dados Universidade de Emory, disponível em http://slavevoyages.org/assessment/estimates. In: SACRAMENTO, Leonardo. O Nascimento da Nação: como o liberalismo produziu o protofascismo brasileiro.

Demograficamente, a população negra dos EUA aumentou 1.310%; já a população preta brasileira, ante a quantidade de africanos trazidos, diminuiu 62%. Se se aplicar a projeção de crescimento populacional dos negros dos EUA sobre a quantidade inicial brasileira, em 1871 chegaríamos ao dado de 52.400.000 de negros no país. Se feito o contrário, aplicar a projeção brasileira sobre a quantidade inicial norte-americana, os negros norte-americanos teriam diminuído para 116.023.

Evidencia-se no Censo de 1872 que havia 1,9 milhão de pretos para 1,5 milhão de escravizados, logo pouco menos que apenas 400 mil pretos livres. Também é importante lembrar que o recenseamento foi realizado por chefes de famílias. Como havia quase uma universalização da adulteração de matrículas, por exemplo, em virtude da Lei Regente Feijó, a fim de negar a liberdade ao africano vindo ao Brasil a partir de 1831, pode-se estimar que os dados devem ser piores, sobretudo aos pardos, que representavam 38,3% da população, dois décimos a mais do que os brancos. Uma diferença enorme de natalidade e mortalidade, na qual o Brasil registrou retração demográfica de africanos e seus descendentes.

Quadro comparativo de crescimento demográfico de pretos entre Eua e Brasil

Cálculo sobre 4.000.000, aproximação sobre dado sistematizado a partir de documentos oficiais da Universidade de Emory (EUA). Cálculo realizado sobre 2.300.000, conforme dado produzido pela Universidade de Emory (EUA).

O Brasil foi o maior protagonista no tráfico transatlântico de africanos nos seus quatrocentos anos. Manolo Florentino estima, com base em dados dos traficantes de africanos do porto do Rio de Janeiro, que a cota direta de traficantes portugueses foi mínima comparada à cota direta de traficantes brasileiros. Segundo o autor, os traficantes portugueses são responsáveis “pela maior parte dos cerca de 600 mil escravos importados pelo Brasil entre 1550 e 1700, e talvez uns 200 ou 300 mil depois desse último” (600 mil em 150 anos e 200 ou 300 mil em 122 anos), o que significa que, “diante dos 4 milhões de africanos desembarcados no país, representa algo em torno de 20% ou 23%”.[i] Ou seja, os traficantes brasileiros foram responsáveis por aproximadamente 80% da quantidade de africanos sequestrados e enviados ao país.

Não é possível explicar o modelo empresarial brasileiro no século XIX por meio da transmissão colonial. O Brasil inovou no tráfico de africanos e no escravismo mercantil. A inovação brasileira consistiu em uma acumulação primitiva significativa de capitais, dando protagonismo a famílias proprietárias de escravizados e mercadoras atualmente bem posicionadas na classe dominante brasileira. Quase todos os banqueiros atuais possuem sua origem no tráfico e trabalho escravizado de africanos, desde todas as famílias do Itaú a ministros e candidatos a presidente que conclamam por menos Estado.

É o caso de Pedro Guimarães, afastado por denúncias de assédio moral e assédio sexual. É casado com Manuella Pinheiro Guimarães, filha de José Adelmário Pinheiro Filho, o Léo Pinheiro da OAS. Pertencem à família Pinheiro Machado, dona de um escritório com sede no Rio de Janeiro e em São Paulo para emissão de títulos e valores mobiliários (ações). Segundo Manolo Florentino, a família Pinheiro Guimarães foi a quinta maior família traficante de africanos escravizados do Brasil, sobretudo entre 1811 e 1830, com fortíssima atuação em Luanda. Apenas da data especificada, a família realizou 45 viagens, com contabilidade oficial de mortalidade de 7.084 africanos e 101 mortos a cada 1.000 africanos traficados da África Central Atlântica.

Outro é Luiz Felipe d’Avila, candidato a presidente pelo falido Novo e faria limer. É filho de Aluízio D’Avila e de Maria Christina Pacheco Chaves. Seu pai é dono de uma grande empreiteira que cresceu na ditadura civil-militar e sua mãe possuidora de quantidade infindável de terras. É casado com Ana Maria Beatriz, filha de Abílio Diniz, presidente do Conselho de Administração da Península Participações, do Conselho de Administração da BRF e membro dos Conselhos de Administração do Grupo Carrefour e Carrefour Brasil. Por parte de mãe, é trineto de Elias Antônio Pacheco e Chaves, escravocrata e senador (vitalício). O escravocrata casou-se com Adélia da Silva Prado, filha de Martinho e Veridiana da Silva Prado, uma das famílias que mais possuíam africanos escravizados no século XIX do país e que, por tal concentração, conseguiu diversificar o capital cafeeiro em redes bancária e comercial, sobretudo na República Velha.

Mesmo juntando indiscriminadamente pretos com todos os pardos no Censo de 1872, resultando em um contingente de 5.760.077 habitantes, o crescimento populacional teria sido de apenas 15% sobre o total (traficantes portugueses e brasileiros) e 19% sobre a quantidade de africanos trazidos por traficantes brasileiros, ambos muito distantes dos 1.310% do caso norte-americano. Nem sempre a estatística é a arte de provar o que quer com os números. Não à toa, não se vê conservadores se utilizando de números para provar que o escravagismo teria sido harmonioso. Costuma ser somente com a retórica vazia e superestimação de dados específicos e isolados produzidos por uma metodologia historiográfica pós-moderna, como a Escola de Annales. O Brasil matou muito mais africanos do que os EUA em virtude da especificidade do modelo empresarial da produção econômica e social do escravizado, e essa matança trouxe implicações distintas nas leis populacionais de cada país, como mostram Jacob Gorender[ii] e Clóvis Moura.[iii]

A lei populacional escravista brasileira foi distinta da norte-americana, a qual deu prioridade para a reprodução interna de escravizados, inclusive com grandes experiências de fazendas de reprodução – no Brasil mais comuns em poucas regiões e fazendas na segunda metade do século XIX com os escravizados reprodutores. Essa distinção trouxe uma grande diferença levantada pelos teóricos e defensores da democracia racial: a miscigenação. Domenico Losurdo[iv] expõe a suposta contradição entre liberdade, ideologia e leis norte-americanas sobre a vida privada, inclusive dos livres, em que uma dessas leis que regulamentavam a vida privada foi a lei anti-miscegenation.

Normalmente, a existência dessa lei nos EUA e a inexistência no Brasil, bem como a miscigenação brasileira, fazem parte de um bastião da brasilidade para o campo conservador, cuja idealização se baseia nas supostas peculiaridades do latino português e do anglo-saxão e, respectivamente, das religiões católica e protestante, como se fossem a única virtude (ou desvirtude) do português, herdada pelos brasileiros brancos. Ocorre que essa diferença foi estabelecida como elemento fundante pelas relações econômicas para a produção social do escravizado e pela lei populacional correspondente, na qual traz uma verdade inconveniente aos defensores da democracia racial.

A produção social do escravizado no Brasil estavam dadas pela importação de africanos e a transformação de africanos em negros escravizados sob o pujante comércio de aprisionamento e transporte de africanos, ao passo que nos EUA a produção e a reprodução do escravizado consistiam em uma produção interna,  na qual a pureza racial se fazia fundamental, pois a miscigenação, em um contexto de baixíssima importação de africanos e proibição do tráfico extremamente precoce comparada ao caso brasileiro, importaria em uma relativização social perigosa para a produção social de escravizado e para a reprodução da “comunidade dos livres”.

Essa é a importância social da “pureza”. Havia a necessidade de garantir a pureza racial do escravizado para garantir a pureza racial da sociedade dos livres, o que já era garantindo no Brasil pelo comércio transatlântico e sua relação jurídica, abrindo espaço social e simbólico para a relação sexual baseada no estupro sobre mulheres africanas e nativas e no genocídio mensurado na altíssima mortalidade exposta. Não havia a hegemonia da produção interna de escravizados. A miscigenação brasileira foi garantida, em um primeiro momento, pela facilidade de importação da mercadoria escravizado, de modo que os africanos jogados ao mar e mortos na infância e juventude foram os garantidores estruturais da despreocupação nacional do homem branco sobre a pureza racial.

O segundo dado que garantiu a despreocupação nacional sobre miscigenação foi o estupro, uma vez que ela ocorreu basicamente por meio da relação sexual obrigatória entre homens brancos e mulheres negras e nativas, como mostra o estudo DNA do Brasil, da Universidade de São Paulo. A pesquisa constatou a predominância de 36% de populações africanas e 34% de populações nativas pela matriz materna na população brasileira, enquanto a herança masculina europeia corresponde a 75%.[v] Mas o estupro não seria generalizado sem a produção social do escravizado por meio de um amplo comércio transatlântico, do qual os traficantes brasileiros foram os principais protagonistas.

A morte de milhões de africanos no mar e em terra, em virtude da produção social e comercialização dos escravizados africanos, garantiu a possibilidade, a legalidade e a legitimação do estupro e da miscigenação, ao passo que nos EUA o estupro era coibido por algumas disposições legais, uma vez que o bastardo miscigenado se contrapunha às reproduções sociais do escravizado e do branco livre, assentados na pureza racial, o que, por óbvio, não impedia o estupro.

A pureza racial era o meio garantidor da produção norte-americana do escravizado. Posteriormente, como lembra Losurdo, foi garantidor da sociedade dos livres contra os negros, como provam a 13ª e 14ª emendas da Constituição norte-americana e as legislações estaduais em resposta à última emenda. No caso brasileiro, a pureza racial ficaria preservada pelo casamento oficial e a liberdade sexual do homem branco para o estupro. Os dois modelos mostram que as experiências supremacistas do século XX não surgiram por geração espontânea. Procurar beleza nesse processo, como fazem os arautos da democracia racial, é sadismo típico de um nazista, em que um não admitia o estupro de mulheres judias em nome da pureza ariana, enquanto o seu colega não enxergava problemas, sobretudo se o resultado ficasse longe de sua pureza ariana garantida socialmente e juridicamente com o seu casamento.

Por São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais terem concentrado praticamente 70% dos escravizados após 1850, conseguiram acumulações significativas comparados com outras regiões e províncias (estados), notadamente porque combinou produtividade com trabalho escravizado em um contexto de alta do preço do café, enquanto a queda do mercado de açúcar induziu as províncias do Nordeste a venderem os escravizados, especialmente depois do impacto da seca e da fome de 1877, como mostra Mike Davis, em Holocaustos Coloniais. Não à toa, a província mais impactada, Ceará, tornou-se a primeira a anunciar o fim da escravidão em 1884 – esquece-se que passou longe do mito da rebeldia da elite cearense, mas sim de ações de Preta Simoa, Francisco José do Nascimento e Negra Esperança sob um contexto econômico adverso. Entre 1872 e 1876, 3.186 escravizados foram exportados pelo porto de Fortaleza; entre 1877 e 1880, foram 7.677 escravizados.[vi] A abolição cearense reforçou o escravismo paulista.

Há um ponto que merece um debate mais acurado, pois se refere a um paradoxo jurídico-político da acumulação brasileira de capitais. Será chamado aqui de “Evidência de Gama”, em referência a Luiz Gama. Como se ensina nas escolas, houve uma suposta primeira tentativa em 1831 com a Lei Regente Feijó. Em seu artigo 1º, diz que “Todos os escravos, que entrarem no território ou portos do Brasil, vindos de fora, ficam livres”. Lei não é uma tentativa. A lei foi ignorada pela classe escravocrata e os mercadores de escravizados, pelo judiciário e a elite política. Portanto, cometeram uma ilegalidade. Um acordo social, em que a prova cabia ao escravizado não falante do idioma. Juridicamente, todos os africanos que chegaram depois de 1831 eram livres, escravizados ilegalmente à luz do próprio ordenamento jurídico do Império. Entraram no Brasil 568.004 africanos livres a partir de 1831, com perfil mais jovem. Eram juridicamente livres e foram escravizados ilegalmente.

Os seus filhos eram também legalmente livres, pois nasceram de livres. Segundo dados mais atuais, “no Brasil, durante a vigência da escravidão, a expectativa de vida dessa população era cinco a 10 anos menor do que a de negros norte-americanos, por exemplo, que viviam, em média, 33 anos”.[vii] Stuart Schwartz, em Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835), estima a média de vida do escravizado em 19 anos.[viii] Partindo de tal premissa, 19 anos, em 1850 a Lei Eusébio de Queiróz versava mais sobre os filhos do que sobre os pais que chegaram na primeira metade da década de 1830, grande parte mortos ou em condições ruins para a produtividade na lavoura, salvo exceções.

Da mesma forma, se a média de vida for 23 anos ou 27 anos – o que é difícil, pois se aproximava da média de vida do brasileiro médio não escravizado, incluindo brancos, em 1854 ou 1858 se esgotaria a geração de 1831, salvo exceções. Como os africanos escravizados se relacionavam sexualmente com outros escravizados sem levar em consideração se eram vindos antes ou após 1831, resta concluir que juridicamente os filhos de um livre reescravizado era livre, conforme o Art. 1º da Lei Regente Feijó. Pode-se concluir que todos os “escravizados” após 1860, salvo raríssimas exceções, eram livres, sobretudo os que trabalhavam em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. A Lei de 1850, a Lei do Ventre-Livre, a Lei do Sexagenário e a Lei da Abolição versaram sobre pessoas que legalmente já eram livres.

Portanto, a escravidão não foi apenas imoral ou maléfica, mas ilegal segundo ordenamento jurídico do Estado brasileiro, cumpre constatar, construído pela própria classe de proprietários de escravizados e a monarquia. A lógica apresentada por historiadores de que a lei não teria “pegado”, ou seria tão-somente uma lei “para inglês ver”, é um eufemismo racista e sem sentido científico e jurídico. Os africanos eram livres e foram escravizados. A dinâmica e a demanda dos movimentos negros não devem se pautar apenas no sentido da reparação, termo eufemístico que acompanha, sem reflexão, o eufemismo historiográfico, mas possuir reivindicação de fundo indenizatório.  A demanda do fundo indenizatório não deve se voltar apenas ao Estado, mas às famílias que se transformaram em burguesas simulando alguma habilidade empreendedora, ideologia liberal anticientífica e deletéria tão em voga nos dias atuais.

 

As leis abolicionistas que escravizavam mais

Charge de Angelo Agostini na revista Ilustrada (1880).

Após a Independência, um período conturbado de revoltas populares aproximou de vez os conservadores da ideia de formação de um Estado mais centralizado. Revoltas Regenciais na década de 1830 colocavam em risco, na visão dos escravocratas, o escravismo enquanto modo de produção. Nada assustou mais a elite escravocrata do que a Revolta dos Malês. Cinco meses após a Revolta, em 10 de junho de 1835, foi promulgada a Lei n. 4, instituindo a pena de morte aos escravizados. O artigo 1º evidenciava o medo dos proprietários de escravizados: “Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave ofensa física a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, a administrador, feitor e às suas mulheres, que com eles viverem”.

O risco não era apenas o desmembramento do país, como normalmente é apresentado, mas o desmembramento a partir da proibição do escravismo, como ocorria no restante do continente, provocando uma competição arriscada às províncias que manteriam o escravismo. Na visão dos escravocratas, essa competição arriscada provocaria uma fuga generalizada de africanos às províncias que tivessem abolido a escravidão, algo próximo ao que ocorreu com o Rio Grande do Sul em relação ao Uruguai, fazendo com que a elite farroupilha impusesse como condição a D. Pedro II a assinatura de acordos de extradição de africanos que fugiram. O rei que seria abolicionista para a Globo e a extrema-direita assinou cinco acordos de extradição ao longo de sua vida contra africanos livres em fuga para Peru, Uruguai e Argentina, que se tornariam (re)escravizados. Segundo Andrés Lamas, cônsul do Uruguai no Rio de Janeiro, D. Pedro II e sua elite escravocrata impuseram (esse é o termo escolhido pelo diplomata) como condição prévia para a assinatura de qualquer outro tratado de comércio.

Como lembra Vitor Nunes Leal, em Coronelismo, Enxada e Voto, o Golpe da Maioridade se deu para garantir a unidade territorial sob o escravismo. Portanto, se existe unidade territorial no país, deve-se à reação conservadora que entendia a unidade administrativa como meio para garantir o comércio e a utilização de africanos no trabalho escravizado. O escravismo foi o grande fundamento pela centralização administrativa após o Golpe da Maioridade, sendo o fio condutor da unidade territorial continental.

Em 1842, iniciaram-se os debates sobre a Lei de Terras, induzidos em grande medida pela ação militar britânica no Atlântico contra o tráfico transatlântico (Tratado Anglo-Brasileiro e Bill Aberdeen). Em nenhum momento, conforme os Anais da Câmara dos Deputados, entre 1842 e 1850, se procurou qualquer outra solução que não fosse a mão de obra europeia. Desde a década de 1830 já havia inúmeros textos nacionais alegando que não se poderia construir uma nação desenvolvida com negros, apenas com brancos. Logo após a Independência, a elite paulista criou a Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional. Em 1936, ela promoveu um concurso cujo tema era o desenvolvimento nacional.

Frederico Leopoldo Cezar Burlamaqui enviou um ensaio denominado Acerca do comércio de escravos e acerta dos males da escravidão doméstica, segundo o qual concluiu que no país predominava a “inabilidade dos negros para todo o serviço que exige a menor porção d’inteligência”, pois “todos os escravos reunidos, pondo-se em obra toda a inteligência e desteridade de que são capazes, não conseguirão fabricar um bom alfinete”.[ix] Deu como solução a imigração europeia. O embranquecimento é uma marca de nascença da Independência Oficial, que enterrou as lutas populares em nome da ligação eurocêntrica da elite com o colonizador.

A grande questão da classe dominante escravocrata era: como fazer o trabalhador não trabalhar para si em um país com tanta terra? Como fazer o trabalhador vender a sua força de trabalho? A resposta passava pelo impedimento da posse sobre a terra, expropriando a base fundiária de parte significativa da população, como propunha Wakefield e o seu “preço suficiente” para a colonização inglesa na Oceania, autor analisado por Karl Marx no último capítulo do livro I de O capital, “A Teoria Moderna da Colonização”.

A posse apenas existiria pela compra. Na mesma lei que impedia a posse, promovendo a concentração de terras entre os grandes proprietários, que tinham recebido as terras por meio de doação (sesmarias), havia a autorização para a imigração europeia e a colonização: “Art. 18. O Governo fica autorizado a mandar vir anualmente à custa do Tesouro certo número de colonos livres para serem empregados, pelo tempo que for marcado, em estabelecimentos agrícolas, ou nos trabalhos dirigidos pela Administração pública, ou na formação de colônias nos lugares em que estas mais convierem; tomando antecipadamente as medidas necessárias para que tais colonos achem emprego logo que desembarcarem”.

Impôs-se uma desigualdade estruturante para raças, em que, na formação da classe trabalhadora, uma raça foi objeto de reformas agrárias, portanto reformas agrárias raciais, e outra, objeto de escravização; uma se voltou ao trabalho assalariado e outra, à escravização; uma reivindicava melhorias trabalhistas potencialmente com greve, outra objetivava a liberdade efetivamente por meio do motim. Essa desigualdade estruturante se expressaria com mais força na República Velha, com leis segregacionistas impostas pela antiga classe de escravocratas, transformados em burgueses.

No fim da década de 1860, os conservadores retomaram a maioria no Congresso e passaram a dirigir o processo de manutenção do escravismo com o lema “lento, gradual e seguro”. O lema, usado pelos militares e pela alta burguesia que atuou na Ditadura Civil-Militar, foi inventado pelos escravocratas, sobretudo por José de Alencar, que defendia o (não) fim natural do escravismo porque o regime refletia naturalmente um período evolutivo da Nação vinculado à incapacidade cognitiva dos negros, não devendo existir qualquer lei que o infringisse, sob pena de conceder liberdade a despossuídos da Razão. A escravidão seria um ato civilizatório do bom proprietário. Assim, o lema foi parar no preambulo das famígeras leis abolicionistas, como na Lei do Sexagenário, e foi o princípio norteador dos conservadores que lutaram contra a abolição. Promover leis que mudavam o suficiente para conservar o regime escravista.

A Lei do Ventre-Livre estabelece um padrão normativo brasileiro. O artigo 1º sanciona o direito, os seguintes cominam as restrições. O artigo promulga que “os filhos da mulher escrava, que nascerem no Império desde a data desta lei, serão considerados de condição livre”. O seguinte obriga os senhores a “criá-los” até os oito anos, tornando-os escravizados; o seguinte impõe a indenização ao proprietário caso ele mesmo opte por não “criá-los” após os oito anos, e não a mãe ou a criança. Caso contrário, optaria por “criá-los” até os 21 anos, usufruindo de seus serviços.

Foi nesta lei que os congressistas escravocratas incluíram um princípio que se veria na República Velha como o principal mecanismo de controle e encarceramento de negros: o da anti-vadiagem. No Art. 6º, § 5º, lê-se: “Em geral, os escravos libertados em virtude desta Lei ficam durante cinco anos sob a inspeção do Governo. Eles são obrigados a contratar seus serviços sob pena de serem constrangidos, se viverem vadios, a trabalhar nos estabelecimentos públicos. Cessará, porém, o constrangimento do trabalho, sempre que o liberto exibir contrato de serviço”.

Portanto, o liberto era obrigado a oferecer constantemente a sua força de trabalho pelo salário e regime laboral que fossem, pois do contrário seria preso. Na prática, era escravizado. Bastava que a polícia o prendesse e o obrigasse a celebrar o contrato de trabalho, de acordo com o estabelecido pelo judiciário, o qual representava literalmente o proprietário de escravizados. Os dados de livres são escassos, o que demonstra que a lei cumpriu o seu papel: manter os africanos legalmente livres pela Lei Regente Feijó, de 1831, em regime de escravidão. São quarenta anos de diferença. Na média de vida estabelecida por Schwartz (1988), de 19 anos, seriam duas gerações completas. Na média de vida estabelecida por Queiróz (2018), de 23 a 27 anos, seriam respectivamente 1,7 a 1,4 gerações completas.

Já a Lei do Sexagenário é basicamente uma lei de indenização e financiamento de imigrantes europeus dividida em três partes. A primeira é a indenização ao proprietário: “O valor a que se refere o art. 1° será declarado pelo senhor do escravo, não excedendo o máximo regulado pela idade do matriculando conforme a seguinte tabela: Escravos menores de 30 anos, 900$000; de 30 a 40, 800$000; de 40 a 50, 600$000; de 50 a 55, 400$000; de 55 a 60, 200$000”.

Instituiu-se uma taxa adicional de 5% sobre os impostos para financiar a indenização.

A ideia difundida segundo a qual não houve indenização aos proprietários, geralmente usada para engrandecer o papel da própria elite branca na abolição por meio da suposta coragem de Isabel e da alforria voluntária fruto da bondade dos bons senhores, não passa de falsificação. Receberam indenização, muito usado pelos proprietários a partir de 1887, como mostram Viotti da Costa,[x] Jacob Gorender, Robert Conrad e Warren Dean.[xi]

A segunda parte foi usada para a mudança do regime de trabalho: “A 2a. parte será aplicada à deliberação por metade ou menos de metade de seu valor, dos escravos de lavoura e mineração cujos senhores quiserem converter em livres os estabelecimentos mantidos por escravos”. A terceira parte foi destinada a financiar a vinda de imigrantes europeus, ou seja, de embranquecer a população, ou desenegrecê-la para desafricanizá-la: “A 3ª. parte será destinada a subvencionar a colonização por meio do pagamento de transporte de colonos que forem efetivamente colocados em estabelecimentos agrícolas de qualquer natureza”. Para tanto, o Estado foi autorizado também a emitir Títulos do Tesouro: “para desenvolver os recursos empregados na transformação dos estabelecimentos agrícolas servidos por escravos em estabelecimentos livres e para auxiliar o desenvolvimento da colonização agrícola, poderá o Governo emitir os títulos de que trata o n° III deste artigo. Os juros e amortização desses títulos não poderão absorver mais dos dois terços do produto da taxa adicional consignada no n. II do mesmo artigo”.

Em termos mais explícitos, foi nesse momento que explodiram as alforrias, pois havia remuneração do Estado cujo fundo e endividamento contribuíram para o enriquecimento da própria elite escravocrata. O fundo financiava a vinda de imigrantes para os escravocratas, assim como financiava a mudança do regime de trabalho. Dessa forma, o governo emitia Títulos do Tesouro, comprados pela própria elite escravocrata, a única capaz de comprar em grande quantidade os papeis. Depois de receber as indenizações e a mão de obra, ainda receberam os dividendos dos juros dos papeis. A Lei do Sexagenário foi tão-somente um bom negócio para os escravocratas.

Mas o que fazer se o escravizado chegasse aos 60 anos? Obrigá-lo a trabalhar mais três anos em nome da recuperação dos capitais investidos, “a títulos de indenização pela sua alforria”. Mesmo se ocorresse o milagre de se chegar aos 60 anos, trabalharia mais três. Não era uma indenização, mas um plus, um lucro extraordinário. E depois dos três anos? Seguindo o preceito do liberto inválido, os escravizados continuariam “em companhia de seus ex-senhores”, os quais, em troca, continuariam “usufruindo os serviços compatíveis com as forças deles”. Deveriam os escravizados continuarem por mais cinco anos no município onde estava matriculado, podendo-se mudar somente por meio da autorização do Juiz de Órfãos – medida que já estava na Lei do Ventre-Livre.

O princípio anti-vadiagem estabelecido na Lei do Ventre-Livre fica mais explícito no Art. 2º, §17 e §18: “§17. Qualquer liberto encontrado sem ocupação será obrigado a empregar-se ou a contratar seus serviços no prazo que lhe for marcado pela polícia. §18. Terminado o prazo, sem que o liberto mostre ter cumprido a determinação da polícia, será por esta enviado ao Juiz de Órfãos, que o constrangerá a celebrar contrato de locação de serviços, sob pena de 15 dias de prisão com trabalho e de ser enviado para alguma colônia agrícola no caso de reincidência”.

A Lei do Sexagenário consagrou definitivamente o princípio anti-vadiagem para os negros, cristalizando-o de vez com as Colônias Agrícolas, as quais seriam amplamente usadas no Código Criminal de 1890 para vadios e capoeiras sob a alcunha de Colonias Correcionais. Portanto, a Lei do Sexagenário foi uma lei de substituição racial do negro pelo branco e do africano pelo europeu. Uma lei de controle policial e prisional sobre os negros, de imposição ao trabalho compulsório e ao contrato de trabalho, de maximização da exploração. Uma lei de fomento à imigração branca e europeia para eliminar o elemento negro e africano. Uma lei de reforma econômica fundamental à acumulação de capitais entre o escravismo e o assalariamento, promovendo concentração e centralização de capitais, sobretudo na província de São Paulo.

As leis abolicionistas, como visto, não permitiram nada na perspectiva do africano escravizado. Pelo contrário, o escravizado só se veria livre se tivesse 68 anos, 60 anos mais os três anos de trabalho para pagar uma alforria (plus ou lucro extraordinário), que já era paga pelo governo caso o proprietário assim quisesse, e mais cinco anos no município matriculado onde sempre foi escravizado oferecendo obrigatoriamente a sua força de trabalho para quem fosse, sob risco de prisão em Colônia Agrícola. Mas se o proprietário e o juiz entendessem que o africano escravizado era inválido, ficaria trabalhando para o resto de sua vida ao proprietário, que usufruiria dos “serviços compatíveis” com as suas forças.

Inegavelmente, as leis abolicionistas criaram o sistema punitivo contra os negros largamente utilizado na República Velha até os dias atuais. As leis abolicionistas foram reformas dos escravocratas com direcionamento segregador e repressivo contra os africanos e negros. Devem ser reconhecidas como reformas econômicas que objetivavam prolongar ao máximo o escravismo, até o século XX segundo alguns de seus defensores. Foram leis escravistas, e assim devem ser reconhecidas.

 

A República incorpora e radicaliza os princípios punitivistas do Império com segregação oficial

Todos Negros. Foto de Luiz Morier, publicada no Jornal do Brasil (1993).

O Brasil teve grande protagonismo na construção do aparato jurídico-político segregacionista que seria universalizado pelo Ocidente no século XX. A racialização empreendida pelo liberalismo no século XIX envolveu a criação de um sistema evolucionista baseado na hierarquia das raças. Os africanos eram o selvagem, os indígenas constituíam os civilizáveis por meio da cristianização e da ocidentalização, e os amarelos, a mediação evolutiva entre os africanos e os brancos, ou seja, preferíveis por serem superiores aos africanos e inferiores aos brancos em caso de escassez de imigrantes ideais. Os europeus e seus descendentes, o estágio final, eram os povos e seres que deveriam guiar e, inclusive, eliminar os mais fracos.

Desde o Congresso Agrícola de 1878, a bancada paulista defendia abertamente como Política de Estado a vinda de imigrantes europeus, brancos e cristãos para embranquecer a população brasileira. Em 1885, com a Lei do Sexagenário, a projeção paulista assume a materialidade de uma Política de Estado por intermédio do financiamento estatal e privado, como se constata com os dados imigratórios. Em 1886, entraram 16.036 imigrantes europeus em São Paulo; em 1887, chegaram 32.112, aumento de praticamente 100%. No ano seguinte, a quantidade de imigrantes pulou para 92.086, um aumento de 186% comparado com o ano anterior e 474% comparado com 1886.

Para se ter uma ideia mais precisa da efetividade da Política Imigratória Racial a partir da Lei do Sexagenário, somente em São Paulo, de 1827 a 1929, foram 2.522.337, sendo apenas 37.481 entre 1827 e 1884 (57 anos), conforme dados do Boletim da Diretoria de Terras, Colonização e Imigração, de 1937. Ou seja, foram 2.484.856 europeus apenas em 44 anos entrando no estado, a partir de 1886.

Mas o que fazer com os negros? Concomitantemente à imigração e à abolição acelerada pelas fugas e falta de controle sobre os escravizados (força de trabalho), a resposta urgia para a elite escravocrata. Com o fim da escravidão, não havia mais motivo para a centralização administrativa monárquica. A monarquia caiu porque a sua única e exclusiva função foi representar a centralização administrativa e repressora a fim de avalizar a hegemonia escravista em todas as províncias.

Sem o escravismo, a elite paulista passou a reclamar por autonomia, ou mais poder. Os escravocratas transformaram-se em republicanos. Criou-se a figura do republicano escravocrata, que perfilava a sociedade paulista em quase toda a década de 1880. O principal expoente dessa figura, além dos figurões, como a família Prado, foi o jornal A Província de São Paulo, da família Mesquita, renomeado O Estado de São Paulo após a proclamação. O jornal vivia exclusivamente de anúncios de escravizados fugidos e encampava a luta contra os quilombos.

Veio a Proclamação da República com um golpe de militares justamente para garantir a hegemonia da elite escravocrata no processo político. E a primeira tarefa dos novos republicanos foi responder às questões que os martelava: como embranquecer a população brasileira? Sem escravidão, como controlar os negros? Antes da Constituição de 1891, os congressistas e o governo correram com duas legislações que atendiam o anseio da classe dominante sobre a introdução de mecanismos de controle e coerção sobre os negros libertos: uma lei imigratória racial e um código penal.

A lei imigratória racial veio com o Decreto n. 528, de 28 de junho de 1890, que proibia a imigração de africanos e asiáticos. O artigo 1º vedava totalmente a imigração africana e asiática, ou melhor, permitia a liberdade de entrada “de indivíduos válidos e aptos ao trabalho” livres de condenações em seu país, “excetuados os indígenas da Ásia ou da África”. O estado de São Paulo, não satisfeito, fez a sua legislação própria, acompanhado por Minas Gerais, a saber, a Lei Estadual n. 356 (São Paulo), de 1895, esta lei liberava a imigração de quase todos os continentes, desde que fossem “da raça branca”.

A lei discriminava abertamente quem poderia entrar no estado de São Paulo e no porto de Santos, a principal porta de entrada de imigrantes estrangeiros no Brasil: “§ 1.º – Os imigrantes do continente europeu serão das seguintes nacionalidades: italiana, sueca, alemã, norueguesa, suíça, holandesa, dinamarquesa, inglesa, austríaca, portuguesa e espanhola, sendo os desta última exclusivamente das ilhas Canarias e das províncias denominadas Galicia, Navarra e Vascongadas. § 2.º – Os de origem americana serão canadenses da província de Québec e da ilha do Porto Rico. § 3.º – Os de origem africana serão somente das ilhas Canarias”.

Liberava de boa parte da Europa, com franca predileção por germânicos e escandinavos, enquanto no continente americano liberava apenas para “canadenses da província de Quebec” e para a “ilha de Porto Rico”, sob jurisdição espanhola e que viria a se transformar em território norte-americano três anos depois; e no continente africano apenas para as “ilhas Canárias” (Artigo 1º), um conjunto de setes minúsculas ilhas colonizadas pela Espanha, que ainda possui jurisdição sobre elas.

Para se ter uma ideia do protagonismo da formulação e aplicação da lei imigratória racial brasileira no mundo, os EUA introduziram sua lei imigratória racial inicialmente em 1917, formulando-a de fato apenas em 1924. Como lembra James Q. Whitman em Hitler’s Amarican Model: the United States and Making of Nazi Race Law, a Barred Zone Act, de 1917, impunha a proibição de imigração de indesejáveis por meio da fixação de áreas e territórios no mundo entendidos “como lar dos indesejáveis”, prontamente estendida a “homossexuais, idiotas, anarquistas e outros”. Em 1921 e 1924 foram promulgadas duas legislações que decorrem da de 1917, a Emergency Quota Act e a Immigration Act. Assim como os paulistas, sobressaiu a predileção aos “nórdicos do norte e oeste da Europa sobre ‘raças indesejáveis’ do leste e do sul da Europa”, percebidas como respectivamente orientais e africanas.

O Estado alemão apenas implantou a sua legislação racial em 1937 após o Congresso de Nuremberg e a visita de juristas nazistas aos Estados Unidos. Hitler estava interessado em saber como construir uma legislação racial para o público interno, uma vez que os europeus dominavam a legislação racial neocolonial, voltada para um público externo não nacional. O Brasil, portanto, construiu a sua legislação racial nacional voltada para o público nacional de 27 a 34 anos antes dos EUA e 47 anos antes da Alemanha. E, de quebra, teve a legislação racial mais longeva da história. O Decreto n. 528, de 1890, foi revogado apenas em 1991 (Decreto de 25 de abril), e a Lei Estadual n. 356, de 1895, apenas em 2006 (Lei nº 12.242, de 27 de janeiro de 2006). Respectivamente, 101 e 111 anos de existências.

Por isso, a imigração de povos africanos e latino-americanos não brancos, como bolivianos, inicia-se de fato na década de 1990 – até a década de 1980, não entravam em fluxos. Ou seja, o Brasil foi o primeiro país de relevância a construir uma legislação racial e o último a abandoná-lo – como aconteceu com o tráfico transatlântico de africanos e o escravismo. O que ocorreu com o congolês Moïse, espancado até a morte por brasileiros no Rio de Janeiro, representou coerentemente a política imigratória racial brasileira.

A outra legislação foi o Código Criminal de 1890. Há três dispositivos que impactaram significativamente os negros brasileiros. O primeiro dispositivo foi a redução da maioridade penal de 14 para 9 anos, conforme o artigo 27º. O artigo 30º dispõe sobre a internação em “estabelecimentos disciplinares industriais, pelo tempo que ao juiz parecer, contanto que o recolhimento não exceda a idade de 17 anos”. Assim sendo, a criança poderia ser presa aos 9 anos e sair apenas aos 17 anos, trabalhando compulsoriamente.

O segundo foi disposto no artigo 399º, o qual será reproduzido integralmente: “Deixar de exercitar profissão, ofício, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistência e domicílio certo em que habite; prover a subsistência por meio de ocupação proibida por lei, ou manifestamente ofensiva da moral e dos bons costumes: Pena – de prisão celular por quinze a trinta dias. § 1º Pela mesma sentença que condenar o infrator como vadio, ou vagabundo, será ele obrigado a assinar termo de tomar ocupação dentro de 15 dias, contados do cumprimento da pena. § 2º Os maiores de 14 anos serão recolhidos a estabelecimentos disciplinares industriais, onde poderão ser conservados até a idade de 21 anos”.

Aqui o princípio estabelecido desde a Lei do Ventre-Livre e expandido na Lei do Sexagenário foi radicalizado como um mecanismo efetivo de controle sobre os trabalhadores negros libertos, principalmente entre os jovens. Oferecia-se uma força de trabalho saída da escravidão apta a ser escravizada pela condição e o contexto impostos pela legislação e a miséria. O artigo 400º aumentava a pena para três anos caso houve reincidência e quebra do termo imposto, no qual o trabalhador era enviado a colônias penais “em ilhas marítimas, ou nas fronteiras do território nacional, podendo para esse fim ser aproveitados os presídios militares existentes”. Muitos, por óbvio, nunca voltaram.

Os dois artigos foram ampliados em 1908 por meio do Decreto n. 6.994, segundo o qual se vincula explicitamente a Colônia a vadios e capoeiras: “Art. 51. A internação na Colônia é estabelecida para os vadios, mendigos validos, capoeiras e desordeiros. Art. 52. São compreendidos nessas classes: § 1º Os indivíduos maiores de qualquer sexo que, sem meios de subsistência por fortuna própria ou profissão, arte, ofício, ocupação legal e honesta em que ganhem a vida, vagarem pela cidade na ociosidade”. O que importa aqui é a existência, não o ato. Não há criminalização de prática, mas de essência, de personagem, de figura social, de classe social e de raça.

Por fim, o artigo 157º, que versava sobre cartomancia, impôs a proibição às religiões de matriz africana: “Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade pública: Penas – de prisão celular por um a seis meses e multa de 100$ a 500$000”.

O jornal A cidade, de Ribeirão Preto, principal centro produtor de café até 1929, atentava às forças policiais contra o candomblé: “A campanha que a imprensa local vem movendo contra os feiticeiros e charlatães, secundada pela Delegacia Regional de Polícia, vem já produzindo seus benéficos resultados. Conforme foi noticiado, a polícia deu ontem uma batida em um “centro” onde se pratica, o baixo espiritismo, trancafiando no xadrez o “pai de santo” que presidia a sessão perante a multidão de humildes “crentes” embasbacados. Estamos aqui para apoiar a repressão policial na repressão a essa torpe exploração que se vem operando a tempos na cidade” (jornal A cidade, em 17 de fevereiro de 1933). Foram criadas as Delegacias de Costumes, que no Rio de Janeiro acabou se transformando, em 1934, na Seção de Tóxicos, Entorpecentes e Misticismo, a antessala da atual política antidrogas, a qual o Brasil também teve protagonismo internacional na proibição da maconha e na construção do ideário de combate total.

O Brasil, portanto, impediu a entrada de africanos e não brancos oficialmente, impôs o trabalho compulsório a vadios e capoeiras (negros) e proibiu as religiões de matriz africana. Como resposta incompleta diante da avalanche supremacista, parte significativa do movimento negro sudestino da época tornou-se monarquista – por óbvio, não escravista. Compreendia a república como uma instituição contrária aos negros, que aplicava todo o seu aparato repressor para dizimá-los. Até 1928, em São Paulo, negros morriam mais do que nasciam. Compreendiam que havia uma iniciativa estatal, sob ordens e direcionamento da classe dominante, para embranquecer, aumentando a população branca, e desenegrecer, diminuindo e dizimando a população negra. A classe dominante republicana era a classe dominante escravocrata.

Segundo Joseph Love, analisando a elite política (e em certo sentido a econômica) organizada no PRP (Partido Republicano Paulista) até 1930, 46% dos políticos haviam nascido antes de 1868, 34% entre 1869 e 1888 e apenas 20% a partir 1889, no qual o último grupo não “atingira o auge de sua carreira política em 1937”.[xii] Os que nasceram a partir de 1889 eram, logicamente, filhos dos escravocratas e, como bons filhos, herdaram todos os capitais acumulados do escravismo. Em seguida, como bons liberais, chamaram de mérito pessoal. O filho é o pai do homem.[xiii]

*Leonardo Sacramento é pedagogo no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo. Autor do livro A Universidade mercantil: um estudo sobre a Universidade pública e o capital privado (Appris).

Notas


[i] FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (Séculos XVIII e XIX). São Paulo: Editora UNESP, 2014, p. 121.

[ii] GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 4ª edição. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2010.

[iii] MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil Negro. 3ª Ed. São Paulo: Anita Garibaldi, 2020.

[iv] LOSURDO, Domenico. Contra-história do liberalismo. Tradução de Giovanni Semeraro. Aparecida (SP): Ideias e Letras, 2006. p. 347.

[v] Disponível em Estudo com 1.200 genomas mapeia diversidade da população brasileira – 23/09/2020 – Ciência – Folha (uol.com.br).

[vi] MARTINS, Paulo Henrique de Souza. Escravidão, Abolição e Pós-Abolição no Ceará: sobre histórias, memórias e narrativas dos últimos escravos e seus descendentes no Sertão cearense. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da UFF. Niterói (RJ): 2012, p. 62.

[vii] QUEIROZ, Cristina. Caminhos da liberdade. Revista Pesquisa Fapesp. Edição 267, mai. 2018. Disponível em https://revistapesquisa.fapesp.br/caminhos-da-liberdade/#:~:text=No%20Brasil%2C%20durante%20a%20vig%C3%AAncia,%2C%20em%20m%C3%A9dia%2C%2033%20anos.

[viii] SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835). São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

[ix] BURLAMAQUI, Frederico Leopoldo Cezar. Acerca do comércio de escravos e acerca dos males da escravidão doméstica. Rio de Janeiro: Typographia Commercial Fluminense, 1837, p. 141.

[x] COSTA, Emilia Viotti da. A Abolição. São Paulo: Global, 1982.

[xi] DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura (1820-1920). Tradução de Waldívia Portinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

[xii] LOVE, Joseph. A Locomotiva: São Paulo na Federação Brasileira (1889-1937). Tradução de Vera Alice Cardoso da Silva. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 224.

[xiii] O presente texto foi elaborado a partir de pesquisa realizada pelo autor e apresentada em curso de extensão do IFSP, denominado Estudos Críticos sobre o Conservadorismo Brasileiro. Os dados trabalhados, assim como o texto integral, serão publicados no livro O Nascimento da Nação: como o liberalismo produziu o protofascismo brasileiro (prelo), em dois volumes, pela Editora IFSP, não necessariamente no mesmo formato aqui apresentado.

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