As estratégias de Joe Biden

Imagem: Tom Fisk
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Por GREY ANDERSON*

A ascensão da China acabou revelando um conflito americano com a nostalgia do laissez-faire globalista

Houve um debate animado na esquerda americana sobre a estratégia industrial do governo Biden. A discussão centrou-se nas perspectivas abertas pelo estímulo maciço, o qual totalizou cerca de US$ 4 trilhões. Nesse montante foram considerados os recursos destinados ao Plano de Resgate Americano (American Rescue Plan), à Lei de Infraestrutura (Bipartisan Infrastructure Law), à Lei do CHIPS e da ciência (CHIPS and Science Act), à Lei de redução da inflação (Inflation Reduction Act – IRA). Essa estratégia visa desde o treinamento de “tecnocratas progressistas” até a reforma (retrofit) de edifícios, assim como uma “descarbonização” liderada pelo Estado capitalista em condições de excesso de capacidade global e queda do crescimento econômico.

Até agora, as avaliações têm variado, oscilando entre os qualificativos de “bom, ruim e feio”, embora haja uma ênfase na primeira opção. O impulso ao emprego e as boas obras “verdes” prometidas pela Lei de redução da inflação não podem ser desconsideradas; há, entretanto, várias deficiências: falta de financiamento para habitação e para o transporte público, melhores normas regulatórias no setor elétrico, contratos de arrendamento que dão aos produtores de petróleo e gás acesso a terras públicas. “A Lei de redução da inflação ” – avaliou um comentarista na revista Jacobin – “é ao mesmo tempo uma enorme trava na indústria de combustíveis fósseis, um investimento histórico, mas um pouco inadequado, em energia limpa, ou seja, uma contribuição para a nossa melhor esperança para o fim de evitar uma catástrofe planetária”.

Em outras palavras, se a crítica da esquerda foi além do “bom”, ela afirmou que “não foi grande o suficiente” – mas talvez não muito longe do que seria adequado. Quase totalmente ausente nessas discussões está a lógica geoestratégica que alimenta essa campanha de investimento nacional, a qual reposiciona a produção de certos bens no continente americano, procura acesso às minas de lítio e patrocina a construção de fábricas de microchips, numa tentativa militarizada de flanquear a China.

Vista dos corredores do poder, a orientação anti-China da política industrial dos EUA não é bem um subproduto infeliz da “transição verde”, mas sobretudo o seu propósito motivador. Para os seus idealizadores, a lógica que rege a nova era de gastos com infraestrutura é fundamentalmente geopolítica; o seu precedente deve ser buscado não no New Deal, mas no keynesianismo militar da Guerra Fria. Este era visto pelos “sábios” que o implementaram como uma condição para a vitória na luta dos Estados Unidos contra a União Soviética.

Hoje, como depois de 1945, os formuladores de políticas se encontram em um “ponto de inflexão”. “A história” – escreveu o futuro conselheiro de Segurança Nacional Jake Sullivan, ainda durante a campanha presidencial de 2020 – “está novamente batendo em nossa porta”: “A crescente competição com a China e as mudanças na ordem política e econômica internacional devem provocar uma motivação semelhante no establishment que produz a política externa contemporânea. Os especialistas em segurança nacional de hoje precisam ir além da filosofia econômica neoliberal predominante dos últimos quarenta anos… A comunidade de segurança nacional dos EUA está justamente começando a insistir nos investimentos em infraestrutura, tecnologia, inovação e educação que determinarão a competitividade de longo prazo dos Estados Unidos em relação à China”.

Detalhada em um relatório para a Fundação Carnegie, sob a assinatura de Sullivan e de uma camarilha de outros conselheiros de Biden, a “política externa supostamente voltada para a classe média” procura, de fato, derrubar as distinções factícias entre a segurança nacional e o planejamento econômico. As esperanças de que o “doux commerce” globalizado pudesse induzir permanentemente outras potências a aceitar a hegemonia dos EUA foram enganosas.  

Outra abordagem fez-se necessária. “Não deve haver mais uma linha bem distinta entre a política externa e a política interna” – declarou Biden em seu discurso inaugural sobre a política externa. “Em todas as ações que tomarmos no exterior, deveremos ter sempre as famílias trabalhadoras americanas em mente.” A vitória de Donald Trump, forjada no coração desindustrializado dos EUA, na crise dos opioides e na “carnificina americana”, abalou o establishment democrata. O que é bom para o Goldman Sachs já não é, ao que parece, necessariamente bom para os Estados Unidos.

A motivação global para essa ruptura com a ortodoxia não tem muito mistério. A China, como martelou o secretário de Estado Antony Blinken, em maio de 2022, “é o único país do mundo com a capacidade de remodelar a ordem internacional e, por isso, cada vez mais, está construindo um poder econômico, diplomático, militar e tecnológico para fazê-lo”. Pior ainda, “a visão de Pequim vai nos afastar dos valores universais que sustentaram grande parte do progresso mundial nos últimos setenta e cinco anos”. Felizmente, porém, o fiador dos referidos valores estava preparado para reagir.

“O governo Biden está fazendo investimentos de longo alcance em nossas principais fontes de poder nacional – começando com uma estratégia industrial moderna para sustentar e expandir nossa influência econômica e tecnológica, tornar nossa economia e cadeias de suprimentos mais resilientes, aumentar nossa vantagem competitiva.” A concorrência, acrescentou Blinken, não precisa implicar em conflitos. Mas a Casa Branca, tendo identificado a China como o seu “desafio constante”, não recuaria da possibilidade de guerra, começando por “deslocar nossos investimentos militares de plataformas que foram projetadas para os conflitos do século XX para sistemas assimétricos que são de longo alcance, mais difíceis de localizar, mais fáceis de mover”.

Três meses depois, a aprovação das leis acima referidas (IRA e CHIPS) tornou-se tangível a “profunda integração da política interna e da política externa”. As restrições à exportação de componentes cruciais de Inteligência artificial (IA) e de semicondutores para a China, anunciadas em setembro e certificadas no mês seguinte, confirmaram o impulso para monopolizar tecnologias marcadas por um “ponto de estrangulamento”, uma verdadeira declaração de guerra econômica.

“Essas ações” – concluiu uma análise do CSIS – “demonstram um grau sem precedentes de intervenção do governo dos EUA para não apenas preservar o controle da capacidade de intervir, mas também para iniciar uma nova política de estrangular ativamente grandes segmentos da indústria de tecnologia chinesa – com a intenção evidente de matá-la “.

Ameaçadoramente, Sullivan invocou então o Projeto Manhattan. Se, por muito tempo, esse projeto sustentou a busca de apenas uma vantagem “relativa” para os EUA em campos sensíveis de alta tecnologia, doravante se “manterá uma vantagem tão grande quanto possível”. As restrições tecnológicas contra Moscou impostas após a invasão da Ucrânia demonstraram que “os controles de exportação podem ser mais do que apenas uma ferramenta preventiva”. A interdição da cadeia de suprimentos, no jargão da defesa, é um exemplo-chave da fungibilidade dos ativos econômicos e estratégicos.

Em Washington, a música tocada são marchas militares. Semanas antes de o Congresso votar o IRA, a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, chegou a Taipé a bordo de um jato da Força Aérea, escoltada por uma dúzia de F-15, assim como por grupo de porta-aviões de ataque (algo que foi considerado “totalmente imprudente, perigoso e irresponsável” por Thomas Friedman do The New York Times; “uma grande provocação política”, segundo o Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês). Mas o aumento da ameaça militar dos EUA começou logo no início do governo Biden – que, longe de conter a fanfarronice de Trump, construiu sobre ele, apenas parando para ressoldar os aliados descontentes da Otan e do SEATO ao projeto.

Desde a revivificação da aliança QUAD (entre EUA, Japão, Austrália e Índia), no início de 2021, logo reforçada pelo pacto AUKUS (de segurança entre Australia, Grã-Bretanha e EUA, anunciado em 15 de setembro de 2021), os Estados Unidos ampliaram o seu já vasto arquipélago de bases, investindo em forças móveis rapidamente implantáveis, capacidades de ataque profundo e sistemas não tripulados.

O objetivo, segundo Ely Ratner, superintendente de assuntos asiáticos do Departamento de Defesa, é estabelecer “uma presença mais resiliente, móvel e letal na região do Indo-Pacífico”. A intensificação dos exercícios navais conjuntos EUA-Japão, no outono de 2022, sinalizou uma mudança importante em Tóquio, delineada por meio de uma nova Estratégia de Segurança Nacional orientada para a ameaça “sem precedentes” representada pela China.

No início de 2023, o pânico relacionado ao aparecimento de balões não identificados coincidiu com o vazamento de um memorando do chefe do Comando de Mobilidade Aérea dos EUA, cujo “intestino” lhe dissera que os EUA estariam em guerra com a China até 2025. Em fevereiro, o Pentágono anunciou planos para quadruplicar as forças destacadas para Taiwan, juntamente com um aumento nas vendas de armas para esse país. Ademais, as autoridades agora cogitam publicamente na ideia de explodir as instalações de fabricação de semicondutores da ilha no caso de uma invasão chinesa.

Rompendo abertamente com a fórmula diplomática conhecida de longa data pela expressão “uma só China” (reivindicada tanto por Pequim quanto por Taipé, a qual fora formalmente reconhecida por Washington no Comunicado de Xangai em 1972), Joe Biden afirmou repetidamente a sua intenção de usar a força em tal eventualidade. O abandono da “ambiguidade estratégica” pelo governo norte-americano foi confirmado pela diretora de Inteligência Nacional, Avril Haines, em depoimento no Senado em março deste ano. Declarações periódicas sobre um possível “degelo” da relação sino-americana só ressaltam uma tendência à escalada.

Se a esquerda americana tinha alguma incerteza persistente quanto às implicações internacionais da política econômica conhecida por Bidenomics, ela deveria ter sido dissipada por Sullivan no final de abril, em um discurso em que falava da renovação da liderança econômica norte-americana, o qual foi proferido na Brookings Institution. Para aqueles surpresos com o fato de que o tema ventilado fora confiado ao Conselheiro de Segurança Nacional, Sullivan se mostrou enfático: voltou a insistir na prioridade da preocupação com o poder político em relação ao fundamentalismo panglossiano de mercado.

A ascensão da China acabou revelando um conflito americano com a nostalgia do laissez-faire globalista. As “ambições militares” chinesas, as “práticas econômicas não mercantis” e a falta de “valores ocidentais” – para não falar do controle de Pequim sobre o lítio, o cobalto e outros “minerais críticos” – exigiram, agora, uma resposta firme da potência hegemônica.

O investimento na produção de veículos elétricos e microchips foi um primeiro passo nessa direção, juntamente com a Parceria para infraestrutura e investimento global (Partnership for global infrastructure and investment), um cartel comercial anti-China concebido como uma resposta à Iniciativa do cinturão e da rota (Belt and road initiative). Nessa perspectiva, Sullivan reafirmou: “vamos seguir sem remorso nossa estratégia industrial em casa; contudo, nós estamos também, inequivocamente, comprometidos em não deixar nossos amigos para trás”.

Para avaliar a extensão desse novo Consenso de Washington, bastou ouvir na semana anterior o discurso da secretária do Tesouro, Janet Yellen, na Escola Johns Hopkins de Estudos Internacionais Avançados (Johns Hopkins School of Advanced International Studies). Yellen, supostamente uma “pomba” diante do “falcão” Sullivan, abriu seus comentários fazendo referência a “decisão da China de se afastar das reformas de mercado em direção a uma política mais orientada pelo Estado”. Segundo ela, “isso vai prejudicar os seus vizinhos e os demais países em todo o mundo”. “Isso ocorre” – continuou – “porque a China está adotando uma postura mais confrontadora em relação aos Estados Unidos e aos nossos aliados e parceiros – não apenas no Indo-Pacífico, mas também na Europa e em outras regiões”.

Diante dessa conjuntura tensa, a política econômica dos EUA obedece agora a quatro objetivos: primeiro, visa garantir os “interesses de segurança nacional” de Washington e de seus aliados; em segundo lugar, busca continuar a “utilizar as nossas ferramentas para perturbar e dissuadir as violações dos direitos humanos onde quer que ocorram em todo o mundo”; terceiro, intenciona manter uma “concorrência saudável” com a China, condicionada à reversão das suas “práticas econômicas desleais”, assim como ao cumprimento da “ordem econômica global baseada em regras”; quarto, procura “cooperar em questões como a do clima e da crise das dívidas”. Segurança nacional, policiamento global, competição, cooperação: a hierarquia constante nesses objetivos é bem clara.

Retoricamente, a Casa Branca tem insistido que seu objetivo não vem a ser chegar a um “desacoplamento” econômico em relação a China, mas sim reduzir o risco – ou seja, “desarriscar” segundo uma trouvaille dita por Ursula von der Leyen, dita presidente da UE, que costuma reunir os europeus para marchar ao som de Washington. Mas as políticas de Biden deixaram margem para dúvidas sobre o destino reservado aos “amigos” em suas últimas falas.

Décadas de protelamento dos EUA quanto ao cumprimento das metas climáticas, acompanhadas de hosanas à santidade do livre comércio, encontraram a Alemanha e a França despreparadas para aceitar o retorno das tarifas, os controles de capital e os subsídios nacionais para a indústria. A proposta conhecida como “Next Generation EU”, que forma o núcleo do “acordo verde” (Green Deal), o qual fora apresentado por Von der Leyen em janeiro de 2023, oferecia cerca de 720 mil milhões de euros em subvenções e empréstimos aos governos europeus, um montante comparável ao IRA; no entanto, como observam Kate Mackenzie e Tim Sahay, os países da União Europeia desembolsaram quase tanto quanto esse montante no ano passado em subsídios para compensar a crise energética resultante da guerra por procuração na Ucrânia.

Mesmo com as visitas de Scholz e Macron a Pequim, a União Europeia tem mostrado apenas pouco apetite a mais para desafiar, na Ásia, o seu protetor da Otan do que para uma ação independente na Europa. Josep Borrell, companheiro de von der Leyen em Bruxelas, foi visto pedindo – pela última vez – aos estados-membros que enviassem navios de guerra para patrulhar o Mar do Sul da China.

Embargos tecnológicos, sanções e políticas de alianças fazem parte agora de uma perspectiva estratégica mais ampla, que é classificada pelos planejadores de guerra do Pentágono como uma política de “negação”. Ostensivamente, essas medidas visam defender as posições americanas nas fronteiras da China, começando pelo “ouriço militar” – modo pelo qual conceituam Taiwan. Que o governo norte-americano deve se preparar para “negar” as ambições chinesas na região goza de amplo consentimento do establishment, desde o Instituto Quincy, conhecido por defender a “contenção”, até a Heritage Foundation e o Center for a New American Security, apesar das discordâncias que têm sobre certos detalhes.

Assim como a antecessora “estratégia de contenção”, a “estratégia de negação” é um conceito lábil. Enquanto para uns, implica numa ênfase na contraposição ao mero controle, ou primazia – a ideia de que o poder americano deve ser suficientemente impressionante para dissipar qualquer pensamento de desafiá-lo – para outros, inspirados pela teoria da dissuasão, significa estabelecer uma distinção entre “punição”, ou seja, uma ameaça post facto de infligir danos inaceitáveis ao adversário, e uma postura militar ativista, destinada a tornar um certo território inconquistável.

De qualquer forma, Washington deve conciliar o imperativo de impedir que qualquer Estado, que não ele próprio, domine os grandes centros de poder mundial (seja na Ásia, Europa ou no Golfo Pérsico) com a evidente indisposição provável de seus cidadãos em apoiar uma grande guerra internacional no exterior. Após vinte anos de intermináveis aventuras militares, o povo norte-americano está alerta quanto a essa possibilidade. No pensamento de Elbridge Colby, o seu teórico mais influente, uma “estratégia de negação” responde a ambos os critérios: ela cria recursos ao mesmo tempo em que lança as bases para mobilizar a opinião pública.

Nesse contexto, o foco obscuro da esquerda americana no impacto doméstico da Bidenomics ressoa o “imperialismo social” da belle époque europeia. Então, os Webbs e os Bernsteins celebravam que uma parcela crescente do bolo estava destinada à classe trabalhadora nativa, à medida mesmo em que rivalidades interimperiais e depredações coloniais aceleravam as coisas em direção à catástrofe.

Idealmente, é claro, Washington prefere que a sofisticação do hardware americano e a força de sua coalizão “anti-hegemônica” na Ásia dissuadam Pequim de levar a frente quaisquer projetos que possa ter sobre Taiwan ou as Filipinas. No entanto, como alertou o contra-almirante Michael Studeman, diretor de Inteligência Naval, “tudo pode ficar tarde demais”. Se for esse o caso, o essencial é que a China seja obrigada a abrir hostilidades. A analogia histórica relevante é o Japão Imperial em 1941 que, levado pelo embargo petrolífero americano, lançou um ataque calamitoso a Pearl Harbor, fato este que despertou uma população (norte-americana) até então estava relutante em relação à guerra.

“Em circunstâncias em que uma mera defesa por “negação” muito provavelmente falharia” – escreve Colby –, “o objetivo estratégico dos Estados Unidos deveria ser forçar a China a fazer o que o Japão fez voluntariamente: procurando manter as suas ambições territoriais, a China teria que se comportar de uma maneira tal que estimulasse e endurecesse a determinação dos povos da coalizão de intervir; assim os envolvidos ampliariam e intensificariam a guerra a tal nível que chegariam a uma vitória”. Os planos deveriam ser feitos em conformidade. “Perdemos já a chance de adotar uma estratégia de defesa mais matizada” – lamentou Colby – “e agora vamos ter que fazer coisas que parecem muito extremas”.

Negar consiste usualmente em desautorizar, reter ou abjurar. Contudo, Verleugnung, na linguagem freudiana, tem um outro sentido, já que descreve a incapacidade ou falta de vontade de reconhecer uma realidade desagradável ou traumática. O termo também está ligado à perversão – quando aquilo desejado está ausente, a atenção pode se fixar em um substituto presente ou num fetiche. O quadragésimo sexto presidente não pode estar estranho a esse tipo de sentimento.

Mas o autoengano está em toda parte. Quando Pelosi encenou o seu espetáculo jingoísta em Taiwan, os aparatchiks democratas minimizaram as consequências. Para Matt Duss, ex-conselheiro de política externa de Sanders, assim como para a ativista progressista Tobita Chow, o perigo real era menos a turnê de Pelosi do que aqueles estavam alarmados com o fato, já que os seus alertas eram um exemplo do que se chama de “ameaça inflacionária”.

Mais frequentemente, a negação assume a forma do silêncio. Mesmo críticas um pouco mais conscientes – tal como se viu no recente simpósio promovido pela revista Dissent, What’s Next for the Climate Left? – mal consideram a relação lógica entre a expansão dos gastos domésticos e uma política cada vez mais agressiva no Pacífico. Ora, trata-se de algo que foi muito reiterado em discurso após discurso por autoridades associadas a Joe Biden.

Essa crítica também se aplica ao debate que a New Left Review tem feito sobre as “sete teses sobre a política americana”, título de artigo de Dylan Riley e Robert Brenner. (Note-se, porém, que a revista tem atacado o caráter social-imperial da Bidenomics em outros lugares). Esse ponto crucial foi registrado em uma contribuição do economista J. W. Mason, que arriscou um endosso qualificado ao programa de gastos de Joe Biden, pois ele reconheceu que “a retórica anti-China assustadora está onipresente na proposta de investimento público” do governo Biden. “A guerra é diferente da política industrial” – observou Mason. Será, entretanto, que os radicais americanos percebem a distinção?

Ultimamente, a imprensa financeira tem estado à frente da esquerda ecossocialista nesse ponto, já que começa a expressar desconforto com a postura agressiva de Biden e Sullivan. A revista The Economist e o Financial Times distanciaram-se dos voos mais “encantadores” da administração Joe Biden; indicaram a necessidade de arrefecer a retórica entusiasta (gung-ho rhetoric) antes que ela se torne de fato uma realidade, como diria Rumsfeld. O Financial Times publicou um forte artigo de opinião de Adam Tooze pedindo uma estratégia de acomodação à ascensão da China – uma proposta passível de ser julgada como “traiçoeira ou mesmo de fora deste planeta” pela atual Casa Branca.

Quando as autoridades chinesas anunciaram a proibição do uso de microchips fabricados pela Micron Technology, com sede em Boise, a Secretária de Comércio, Gina Raimondo, declarou que os EUA “não tolerarão” essa decisão. “Vemos nisso uma pura e simples ação de coerção econômica”. Trata-se aqui de coerção ou prudência? Do que se trata quando se usa expressões como “preservar nossa vantagem em ciência e tecnologia” ou “modernizar nossa corrente mortífera”, “se opor às práticas de distorção do mercado” ou mesmo quando se fala em apoiar o “trabalhador americano”, em preservar a “justiça ambiental” ou ainda se preparar para “confronto atômico no Estreito de Taiwan? As avaliações críticas da Bidenomics deveriam se certificar melhor do que ela representa afinal.

*Grey Anderson é doutor em história pela Universidade de Yale. Autor de La Guerre civile en France, 1958-62: Du coup d’état gaulliste à la fin de l’OAS (La Fabrique).

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

Publicado originalmente no blog Sidecar da New Left Review.

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