O analfabetismo geográfico

Imagem: Ylanite Koppens
image_pdf

Por FRANCISCO FERNANDES LADEIRA*

Em plena era da comunicação e informação instantâneas ainda há carência de conhecimentos geográficos entre a população

Nos anos 1970, foi criada nos Estados Unidos a expressão “analfabetismo geográfico” (geographic iliteracy) para designar a carência de conhecimentos geográficos presente entre a população em geral, e em estudantes secundaristas, em particular. Isso significa que, na época, um percentual considerável dos estadunidenses desconhecia conceitos básicos da geografia, como a localização geográfica, o idioma ou a capital de outros países importantes do cenário geopolítico global, como, por exemplo, o Brasil. Nesse sentido, são emblemáticos os casos de pessoas da terra do Tio Sam que acham que Buenos Aires é a capital brasileira ou que nós, brasileiros, falamos espanhol.

Décadas depois, em plena era da comunicação e informação instantâneas, nem mesmo um ex-presidente da maior potência econômica do planeta está imune ao analfabetismo geográfico. Donald Trump é um fervoroso crítico do “aquecimento global”, hipótese científica que parte do princípio de que algumas atividades humanas seriam responsáveis por modificar o clima planetário.

Evidentemente, desde que tenha argumentos plausíveis, Donald Trump, como todo cidadão, tem o direito de questionar o conhecimento científico. No entanto, em uma postagem no Twitter, o ex-presidente estadunidense, ao comentar o frio intenso que faz no meio-oeste do país durante o inverno, questionou: “onde está o aquecimento global?”.

Ora, como qualquer aluno de sexto ano sabe, “tempo” – estado momentâneo da atmosfera – e “clima” – sucessão habitual dos tipos de tempo – são conceitos diferentes. Portanto, não há como utilizar um dia frio (relacionado ao “tempo”) como justificativa para negar mudanças climáticas. Nessa mesma linha de pensamento, não é raro nos depararmos com afirmações como “o clima hoje está chuvoso” ou “o clima de São Paulo deve alterar no final de semana”.

Além de Trump, outro exemplo de analfabetismo geográfico de uma pessoa pública estadunidense foi protagonizado por Joey Ramone, vocalista da banda Ramones. No mês de dezembro, em entrevista por telefone para uma revista brasileira, Joey Ramone perguntou ao entrevistador se no Rio de Janeiro também estava fazendo frio como em Nova York.

Mais uma vez, recorrendo às aulas do sexto ano, sabemos que, devido ao movimento de translação da Terra e à inclinação de nosso planeta em relação ao seu eixo, no último mês do ano, enquanto no Hemisfério Norte (onde fica Nova York) é inverno, no Hemisfério Sul (onde está localizada a capital fluminense) é verão.

Ao longo dos anos, jogadores de futebol também protagonizaram casos inusitados de analfabetismo geográfico. Claudiomiro, ex-Internacional de Porto Alegre, ao chegar a Belém, capital paraense, para disputar uma partida contra o Paysandu, pelo Campeonato Brasileiro de 1972, declarou: “Tenho o maior orgulho de jogar na terra onde Jesus Cristo nasceu”.

Em um programa do SporTv, Denílson, campeão do mundo em 2002 pelo Brasil, contou que, quando jogava no São Paulo, seus colegas de clube sugeriram que, nas férias, todos viajassem para Cancún, famoso destino turístico do litoral mexicano. Prontamente, Denílson retrucou seus companheiros: “Pô, fazer o que em Cancún? Eu quero praia”.

Por sua vez, o ex-jogador da seleção brasileira, Amaral, ao ser questionado durante uma aparição ao vivo no Jornal Nacional sobre o problema do Apartheid na África do Sul, respondeu: “se ele [Apartheid] é um jogador perigoso, vou fazer a marcação dele”.

Em conclusão, é possível afirmar que os exemplos anteriormente citados demonstram que as aulas de Geografia na educação básica podem não ser responsáveis por formar geógrafos ou consideradas “chatas” por alguns alunos. Mas, certamente, são importantes para, no futuro, pelo menos evitar constrangimentos em entrevistas, em rede nacional ou em postagens na internet.

*Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em geografia pela Universidade estadual de Campinas (Unicamp). Autor, entre outros livros, de A ideologia dos noticiários internacionais (ed. CRV).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
3
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
4
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
5
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
11
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
12
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
13
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
14
A voz da saga
30 Nov 2025 Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO: Prefácio do livro “Melhores contos”, de João Guimarães Rosa
15
Por que a Inteligência artificial não faz justiça? – 2
29 Nov 2025 Por ARI MARCELO SOLON & ALAN BRAGANÇA WINTHER: Os fundamentos da ciência da computação e da filosofia do direito mostram que a Inteligência Artificial é estruturalmente incapaz de realizar justiça, pois esta exige historicidade, interpretação contextual e uma "variável caótica" humana que transcende a mera racionalidade algorítmica
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES