As “margens indomáveis” da democracia

Imagem: Ciro Saurius
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Por ANDRÉ RODRIGUES & ANDRÉS DEL RÍO*

Olhando o cenário eleitoral com a régua menos ajustada para as proporções brutas dos resultados eleitorais, vemos avanços importantes das “margens indomáveis” como anúncio de novos horizontes para a democracia

A antropóloga Anna Tsing, professora da Universidade da Califórnia, em um artigo[i] muito interessante fala de uma zona da experiência humana que se situa nas margens do império, na fronteira entre a floresta e o latifúndio monocultor. Onde o plantio ostensivo termina e começa a floresta se configura, segundo a autora, um contexto no qual deixam de vigir os parâmetros do patriarcado, da supremacia branca, do imperialismo capitalista e do excepcionalismo humano (a crença de que a humanidade é uma espécie excepcional, ao invés de ser uma entre outras). Estas estruturas são suspensas e se abrem horizontes para outras possibilidades da vida social. São essas margens que não se deixam domesticar, habitadas por fungos, espécies companheiras e inimigas da monocultura. Não se trata de uma zona estritamente espacial. Essas margens expressam também experiências sócio-políticas. Podem estar no coração de grandes centros urbanos, onde cresce a insubmissão, a negação das hierarquias, a possibilidade de existências sem império.

Essas insurgências raramente se apresentam de forma triunfalista. Elas se manifestam pela duração, por suas capacidades de seguir existindo a despeito das forças aniquiladoras. As recentes eleições municipais no Brasil chamaram a atenção para o avanço dos setores da direita tradicional e das elites. Mas nas margens das estruturas de poder dominantes, também cresceram forças efetivamente democráticas. Foram passos minoritários na direção do poder institucional, mas que expressam processos de mobilização e organização muito mais amplos do que traduzem os resultados eleitorais. A corrente do esforço humano (para usarmos a belíssima imagem criada por Raduan Nassar[ii]) necessária para eleger uma vereadora negra em nada se compara com a reprodução preguiçosa do poder promovida pela acumulação de capital. É necessário, portanto, calibrar melhor os instrumentos de análise política para avaliar de modo mais preciso as verdadeiras dinâmicas do poder. Não é só de WhatsApp e pão com leite condensado que é feita a política, mesmo em tempos estranhos nos quais o fascismo bate à porta. Olhando o cenário eleitoral com a régua menos ajustada para as proporções brutas dos resultados eleitorais, vemos avanços importantes das “margens indomáveis” como anúncio de novos horizontes para a democracia.

A Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental nº 738[iii] estabeleceu que o pleito de 2020 deveria implantar cotas para pretos e pardos como forma de corrigir a escandalosa distorção de nosso sistema representativo[iv]. O Supremo Tribunal Federal determinou, assim, a aplicação das cotas nas eleições municipais deste ano, como um incentivo às candidaturas de pessoas negras. Obviamente, essas cotas não modificam o perfil do poder de uma só vez e não pretendemos analisar os impactos dessa medida aqui. Talvez haja, entretanto, dois efeitos imediatos mais significativos que não se traduzem imediatamente em resultado eleitoral: a promoção do debate público sobre o tema, em primeiro lugar, e o constrangimento às estruturas de poder, em segundo.

O perfil médio dos prefeitos eleitos no 1º turno, entretanto, seguiu, os padrões dominantes: homem, branco, casado, com ensino superior e acima de 49 anos[v]. Os partidos de direita e centro direita são os que mais concentram poder nessas eleições. Mas quando se trata de vereadores, teremos casas legislativas municipais com maior presença de pessoas negras. Segundo o Gênero Números (2020), somando as cadeiras de todas as 25 capitais que elegeram suas câmaras, 44% serão ocupadas por pessoas negras.

Mais de cinquenta quilombolas se elegeram no Brasil, entre prefeitos, vice-prefeitos e vereadores[vi]. O Brasil teve 2.205 candidatos indígenas nas eleições de 2020 considerando todos os cargos. Um aumento de 29% em comparação às eleições anteriores. A maioria deles estava na Região Norte (927), seguida pela pelas regiões Nordeste (507), Centro-Oeste (366), Sul (239) e Sudeste (167). E, foram oito indígenas que se elegeram para prefeituras no 1º turno. Neste sentido, o número de indígenas eleitos para as prefeituras aumentou em comparação às eleições de 2016, mas o resultado ainda representa o comando de apenas 0,14% do total de cidades brasileiras. Muito falta por fazer. Tanto no caso dos indígenas quanto dos quilombolas os resultados não devem ser considerados apenas do ponto de vista do sucesso eleitoral, mas por uma perspectiva de longo prazo. É significativo que no contexto de avanço do autoritarismo e de estabilidade do poder da direita tradicional, o campo das disputas por parte das povos tradicionais não tenha se retraído.

As mulheres avançaram na conquista de espaços institucionais nas eleições municipais de 2020, mas enfrentaram dificuldades maiores do que os homens no processo. Neste sentido, além da cota de 30% de candidaturas femininas, foi a primeira vez que entraram em vigor as novas regras da reserva de, no mínimo, 30% dos fundos eleitoral e partidário e a aplicação do mesmo percentual ao tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão para as mulheres, com a obrigatoriedade dos partidos de fazer a divulgação dessas candidaturas. Um dos problemas foi o fato de os partidos não terem destinado esses 30% do fundo eleitoral para candidaturas femininas.

Segundo agência Senado, houve um registro recorde de candidaturas femininas em 2020 na disputa pelas prefeituras e câmaras municipais. O total de mulheres eleitas e reeleitas também cresceu. Os dados oficiais mostram que 12,2% das prefeituras foram eleitas mulheres. Na eleição de 2016 esse número foi de 11,57%. De acordo com a Justiça Eleitoral, no pleito deste ano as mulheres representam 33,6% do total de 557.389 candidaturas, superando o maior índice das três últimas eleições, que não passou de 32%[vii].

Mas existem especificidades importantes de salientar. Por um lado, a questão territorial e, por outro, o tipo de cargo disputado. Nesse sentido, em termos territoriais, por exemplo, a representação feminina na Câmara Municipal de Belo Horizonte passou de quatro vereadoras para onze, mas elas ainda serão apenas 26,83% da composição da casa – o percentual mais que dobrou em relação à atual legislatura (2017-2020), na qual elas eram 9,76% da composição. Porto Alegre será a capital com a maior representatividade feminina na Câmara de Vereadores: 11 das 36 vagas serão ocupadas por mulheres (30,55%). Na outra ponta do ranking está João Pessoa, com apenas 1 das 27 cadeiras que será ocupada por uma mulher, o que representa 3,7% do total. Outro exemplo foi o de Florianópolis, Santa Catarina. Nas palavras da ativista Lola Aronovich que celebrou a votação em pela conquista inédita nas eleições: “Importante: em 300 anos de história de Floripa, apenas sete mulheres foram eleitas. Mas agora em 2020, cinco vereadoras foram eleitas! Histórico! Duas são assumidamente feministas, anticapitalistas e antirracistas. A Coletiva Bemviver (Psol), com negra e indígena, se elegeu!”.

Com relação ao cargo em disputa, a situação muda. Em apenas seis capitais (Aracaju, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Recife e Rio Branco), as mulheres ficaram em primeiro lugar entre os vereadores eleitos.

Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral mais de 900 cidades do país (16% do total) não elegeram nenhuma vereadora nas eleições deste ano e, portanto, não terão nenhuma mulher ocupando vaga nas Câmaras Municipais a partir de 2021. Já em outras mais de 1800 mil cidades (32% do total), apenas uma mulher foi eleita[viii]. Lembremos, a partir da exigência legislativa dos partidos terem um terço de mulheres nas chapas, outro dado é preocupante e deve ser analisado. Nas últimas eleições mais de 5 mil candidatos não recebem nem um voto sequer[ix]. De todas essas candidaturas zeradas, as mulheres representam dois terços do total. Assim, as mulheres respondem por 65% do total de candidaturas ‘zeradas’, podendo se tratar de candidaturas laranjas, ou alinhadas com outras ilegalidades, ou simplesmente candidaturas sem repasse de verbas para preencher a exigência legal.

Há, ainda, dimensões importantes a salientar nessas eleições. Uma importantíssima: a viúva de Marielle Franco, Mônica Benício foi eleita vereadora no Rio pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) com de 22919 votos. O retrocesso dos Bolsonaro(s) no Rio foi acompanhado da ótima eleição de candidatas e candidatos defensores da pauta da Marielle. No Rio, 3 partidos alcançaram, cada um, 7 vereadores: Democratas, PSOL e Republicanos, sendo os que terão as maiores bancadas. Talvez um sinal interessante é que no Rio, o vereador mais votado foi Tarcísio Motta, do PSOL. Um partido que tem um histórico de combater as milícias e que recebeu votação expressiva mesmo com esses grupos criminosos dominando grande parte do território da cidade[x].

As eleições municipais de 2020, além disso, entraram para a história dos movimentos LGBT+ do Brasil. O país bateu recorde de pré-candidatos que se declaram pertencentes à comunidade. São ao menos 435 nomes LGBT+ que disputaram o pleito em novembro, segundo levantamento da Aliança Nacional LGBT+. Levantamento preliminar feito por entidades LGBTI+ aponta que pelo menos 25 candidatos que se identificam como transexuais, bissexuais, gays ou lésbicas se elegeram vereadores[xi]. Primeira trans a se eleger para a Câmara Municipal de Aracaju, Linda Brasil (PSOL) foi a mais votada entre todos os eleitos na capital sergipana. A professora trans Duda Salabert (PDT) se elegeu vereadora em Belo Horizonte. Outras três mulheres trans também conquistaram uma vaga na Câmara Municipal: Benny Briolli (PSOL), em Niterói (RJ), Lins Roballo (PT), em São Borja (RS), e Regininha (PT), em Rio Grande. Pelo menos quatro trans serão suplentes.

A presença de negros e negras, pessoas LGBT+, quilombolas e indígenas nessas eleições municipais é uma dimensão fundamental da demonstração do poder de mobilização de forças populares. Setenta e quatro anos depois da curitibana Enedina Alves Marques, uma mulher negra, ter se formado a primeira mulher engenheira civil do Brasil, a cidade elegeu sua primeira vereadora negra da história, com 8.407 votos. Carol Dartora (PT) foi a terceira candidata mais votada da capital do Paraná: “Elegemos a primeira vereadora negra em Curitiba, uma cidade que rejeita sua negritude e que agora irá escurecer sua Câmara!”, em palavras da própria Carol[xii]. Já em de São Paulo, a mulher mais votada para a Câmara de vereadores é transexual: Erika Hilton (PSOL) obteve 50.447 votos. No Twitter, ela comemorou o sexto lugar entre os dez primeiros colocados da capital paulista: “Mulher preta e trans eleita a vereadora mais votada da cidade! Feminista, antirracista, LGBT e do PSOL. A primeira da história! Com mais de 50 mil votos. Obrigada!”.

Avaliamos que seja importante considerarmos esses avanços tendo como parâmetro não a comparação com o desempenho das forças hegemônicas, mas como anúncio do que virá, das margens. Os símbolos são fonte de utopias e caminhos. E os símbolos de resistência das últimas eleições, existem, são muitos, e se estendem no cenário nacional.

*André Rodrigues é professor de ciência política na Universidade Federal Fluminense (UFF).

*Andrés Del Río é professor de ciência política na Universidade Federal Fluminense (UFF).

 

Notas


[i]https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/download/2175-8034.2015v17n1p177/30606/0.

[ii] NASSAR, Raduan. (2016), Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras. p. 399.

[iii] Instrumento no qual a sociedade civil pode indagar o Supremo Tribunal Eleitoral, através do Congresso, sobre o descumprimento de parâmetro constitucional pelos poderes, exigindo medidas a respeito.

[iv] Ver https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-546X2000000200001; e https://congressoemfoco.uol.com.br/upload/congresso/arquivo/balanco%20negro%20eleicoes.pdf.

[v]https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2020/eleicao-em-numeros/noticia/2020/11/17/perfil-medio-do-prefeito-eleito-no-1o-turno-no-brasil-e-homem-branco-casado-com-ensino-superior-e-49-anos.ghtml

[vi] Ver https://almapreta.com/editorias/realidade/mais-de-50-quilombolas-sao-eleitos-prefeitos-e-vereadores?fbclid=IwAR2-hp5iYBV0h2aJY8QNhWLKkQbSN_Hno2sdqgti1B_hp06PrQIghF4jsR4

[vii]https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/11/16/cresce-numero-de-mulheres-candidatas-e-eleitas-no-pleito-de-2020

[viii]https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2020/eleicao-em-numeros/noticia/2020/11/17/mais-de-900-cidades-do-pais-nao-terao-nenhuma-mulher-na-camara-municipal.ghtml

[ix]https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2020/eleicao-em-numeros/noticia/2020/11/18/mais-de-5-mil-candidatos-nao-recebem-nem-um-voto-sequer-nesta-eleicao-mulheres-representam-23-do-total.ghtml

[x]https://theintercept.com/2020/09/29/prepare-se-eleicao-mais-miliciana-historia/

[xi]https://congressoemfoco.uol.com.br/direitos-humanos/pelo-menos-25-trans-gays-lesbicas-e-bissexuais-se-elegem-vereadores/

[xii]https://www.em.com.br/app/noticia/politica/eleicoes/2020/2020/11/15/interna_politica,1205278/curitiba-elege-primeira-vereadora-negra-da-historia-da-cidade.shtml

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