O aroma do tempo

James Rosenquist, Poeira do Tempo, 1992
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Por PIERO DETONI*

Considerações sobre o livro de Byung-Chul Han

“Logo, entre as correções que necessitamos fazer no caráter da humanidade está fortalecer em grande medida o elemento contemplativo” (Friedrich Nietzsche).

1.

Byung-Chul Han é, certamente, daqueles que enfrentam o tempo. Esse enfretamento no sentido de um “pensar contemporâneo”, como sugerido por Giorgio Agamben. Uma reflexão que se mostra como uma sentinela e direcionada ao seu próprio tempo, mas que também dele se distancia com a disposição de tornar visíveis fatos, situações e problemas que são obscuros para a maioria (AGAMBEN, 2009). Os seus ensaios conseguem chamar a atenção para como certa temporalidade de tipo ocidental tem sito experimentada atualmente, percebida por ele em estado de crise.

Essa reflexão ganhou forma através do ensaio O aroma do tempo. Um ensaio filosófico sobre a arte da demora, publicado na Alemanha em 2007. A tese de Byung-Chul Han, muito inspirada na filosofia de Martin Heidegger, autor também tocado por uma temporalidade em crise, é a de que, contrariando os diagnósticos majoritários no campo dos estudos sobre o tempo, a atualidade é atravessada não por uma aceleração do tempo, própria da modernidade, mas por um fenômeno compreendido como “dissincronia”.

Em linhas gerais, essa composição das temporalidades é apreendida pela sua condição de atomização, não havendo direção, ordenamento de sentido ou uma conclusão. Isso o encaminha, por conseguinte, a refletir sobre a duração do tempo. A sua hipótese central é, dessa maneira, que aquilo que torna o tempo atual efêmero, não duradouro, não é a velocidade em si, mas a dimensão da desorientação, ou dispersão, temporal. Na introdução do seu livro citado encontramos este diagnóstico: “O sentimento de que a vida se acelera tem, na realidade, origem na percepção de que o tempo anda aos tropeções sem qualquer rumo” (HAN, 2016, p. 9).

É significativo, antes de discorremos sobre o pensamento em si de Byung-Chul Han, dizer sobre a sua escolha pela ensaística. Concordando com Theodor Adorno (2003), a dimensão de autonomia e de liberdade oferecida pelo gênero oferece a oportunidade de se tatear assuntos diversos, sem a obrigação de se fixar em apenas um, mesmo que o anseio seja por correlações (im)possíveis. Isso é perceptível na escrita deste filósofo, tanto a partir da escolha variada de interlocutores quanto em um sentido de abordar as suas temáticas pela ótica da complexidade. Enquanto ensaísta, vemos um escritor experimentando e compreendendo os aspectos daquilo que se propõe investigar a partir de composições plurais – amparando-se num jogo dinâmico de aproximações e de recusas.

Um jeito de assimilarmos a ensaística do filósofo sul-coreano seria colocá-lo diante de Michel de Montaigne, tido como um mestre da ensaística e considerado o seu fundador em termos de forma e maneira de pensar. Conforme salientado por Jean Starobinski (2011, p. 21), o escrever para ele, e isso talvez também sirva para Han, “(…) é ainda uma vez ensaiar, com forças sempre renovadas, num impulso sempre inaugural e espontâneo de tocar o leitor no ponto mais sensível, de forçá-lo a pensar e a sentir mais intensamente”.

O problema investigado, ou “pesado” se lembrarmos da antiga definição latina de ensaio como exagium, é a “dissincronia”, que seria a responsável pelo sentimento atual de aceleração do tempo, pela sensação de fugacidade e de efemeridade. Encontramo-nos, segundo pensa, destituídos de estruturas ordenadoras do tempo, coordenadas possíveis que ofereçam esteio para a duração. Tornamo-nos, assim, passageiros.

Essa condição leva, acompanhando a sua reflexão, para além da atomização do tempo, mas para atomização da própria identidade, resultando na perda das noções de tempo, de espaço e, mesmo, de ser-com-outrem. Nada mais restaria para as pessoas do que o seu frágil corpo em uma busca desenfreada por saúde, num sentido que nos leva a preferi-lo antes mesmo que os deuses. Apenas a morte perduraria. Encontramos, assim, esta constatação em seus escritos: “As pessoas envelhecem sem se tornarem maiores” (HAN, 2016, p. 10).

As alianças realizadas por Byung-Chul Han, que oferecem fundo teórico para a sua reflexão, são com Nietzsche e com Heidegger. O filósofo sul-coreano percebe algo de atual naquilo que Nietzsche concebera como o “último homem”. Este seria, de maneira sucinta, aquele que expira e não o que morre. Além disso, se entrega ao hedonismo através de prazeres fugazes, tendo nostalgia e descontentamento crônico. Disso emergiria uma concepção agenciada pelo autor: “destempo”. É um não saber morrer, que amparado em sua leitura de Nietzsche teria a ver com a falta de sentido, de decisão ante a dissincronia. É um chamamento para um problema de existência: a incapacidade vital de tornar a trajetória humana minimante estável, organizada, com um ritmo e com um arranjo possível.

Dessa maneira, o que ocorre são trajetórias encerradas em “destempo”. Essa condição, em termos de experimentação temporal ocidental, indicaria a incapacidade de conclusão. O fluxo do tempo estaria desarranjado, como diques temporais que transbordam. “Quando o tempo perde o ritmo, quando flui no aberto sem se deter sem rumo algum, desaparece também qualquer tempo apropriado ou bom” (HAN, 2016, p. 14).

As sociedades, os seres humanos, estariam cedendo ao destempo, em contraponto com aquilo que o Zaratustra nietzschiano apregoava: “Morre a tempo”! Dito de outra forma, parece ser impossível, atualmente, uma morte como consumação, dado que não se desgarra da vida. Aqui entra o aporte de Heidegger: o de ser livre para a morte como disposição afirmativa. Os dois filósofos ensinam para Byung-Chul Han que esse modo de compreensão da morte, em tempo adequado, imprime uma espécie de gravitação temporal capaz de assegurar que passado e que futuro abarquem o presente. Estaríamos, para Byung-Chul Han, desorientados temporalmente, incapazes de decisão, quer dizer, de concluir algo como meta e como sentido. A orientação temporal, ou a equalização e a sintonização, apareceria como modo de oportunizar o ser no tempo. A fragmentação e a atomização do tempo levam ao perecer, pois não existe duração. O presente está, pois, fora da gravidade.

A experiência do tempo refletida pelo filósofo traz consigo a sensação de que as coisas são passageiras, ou melhor, que há um processo acelerado de tornar as coisas passadas. Segundo as suas palavras, “Hoje em dia, as coisas ligadas à temporalidade envelhecem muito mais rapidamente do que antes. Tornam-se instantaneamente em passado e, assim, deixam de captar a atenção. O presente reduz-se a picos de atualidade. Já não dura” (HAN, 2016, p. 17).

Após essa constatação, e se fundamentar em Nietzsche e em Heidegger, chegamos a um ponto decisivo da argumentação do sul-coreano: o sentimento de perenidade experienciado atualmente não estaria, como se aponta com mais frequência, relacionado com a aceleração do tempo em si. Isso por conta de uma explicação um tanto quanto lógica: a aceleração só seria possível quando o tempo é entendido como flexa e unidimensionalmente. O que estaríamos assistindo seria, noutra direção, uma precipitação, uma disposição em que não há aporte, ou esteio, que impeça a falta de direção. Daí a situação desenfreada, desorientada, ser percebida como aceleração.

 Dimensões importante em Nietzsche e em Heidegger, isto é, as imagens conceituais da “meta” e do “herdeiro”, no primeiro, e do “legado” e da “transmissão”, no segundo, parecem, hoje, rarear. Paralelo a isso, uma situação de homogeneização e des-diferenciação freando formas sociais independentes e contraditórias. O que está em jogo ante esse cenário, conforme Byung-Chul Han, é a perda da possibilidade das dialéticas do tempo. Explicando: “O motor dialético surge da tensão temporal entre um já e um ainda não, entre o acontecido e o futuro. Num processo dialético, o presente é rico em tensões, enquanto hoje falta ao presente qualquer tipo de tensão” (HAN, 2016, 19).

O presente transforma-se, na visão do escritor, em picos de atualidade, resultado do processo de atomização somado à dissincronia. O resumo é, em suma, este: não há estabilização ou equalização temporal disponível, o que seria uma solução possível para a preservação do futuro. O curto prazo, a perenidade subjetivada, levaria, pois, a desdobramentos psicológicos, tais como a angústia e a inquietação. Isso seria resultado da incessante destemporalização do mundo da vida, “pobre de experiências” para recobrarmos uma antiga formulação de Walter Benjamin.

A descontinuidade absoluta e a atomização seriam, nesse sentido, inimigas da duração e da experiência. Assim, e reiterando que a aceleração temporal não é um problema em si, o que estaria posto não seria outra coisa do que o seguinte: a vida teria perdido a sua dimensão de conclusão com sentido (sinnvoll). “Tal é a origem do movimento agitado e do nervosismo que caracterizam a vida atual” (HAN, 2016, p. 23). Há a perda do plano experiencial, resultando na impossibilidade de sentidos capazes de preencher a vida, de torná-la durável e estabilizada. Assim, a atomização da vida denota inquietação, confusão, desorientação temporal, o que tende a nos enganar com relação ao tempo em estado de aceleração. “As pessoas tendem, antes, a apressar-se de um presente para o outro” (HAN, 2016, p. 24).

Talvez Byung-Chul Han assinale um estado de apressamento do futuro, uma inquietação para a tomada de decisão ante um universo temporal estilhaçado, decorrente da dissincronia. Essa perspectiva traz consigo um paradoxo subjacente: ao mesmo tempo em que é tudo (presente ampliado), também é nada, posto que sob a égide do imediato tende à efemeridade. Essa condição resultaria em um profundo desequilíbrio da dinâmica temporal, que é relacional e dialética. Daquilo que o historiador alemão Reinhardt Koselleck (2006) chama de “espaço de experiência” e de “horizonte de expectativa”, ou que Edmund Husserl (1994), em sua fenomenologia, descreve como “retenção e protensão”.

2.

Byung-Chul Han adverte que, para além do destempo, haveria, na contemporaneidade, um tempo sem aroma. Porém, antes de adentrarmos ao significado que imprime a essa imagem do tempo, podemos recorrer a diferenciação que faz entre uma temporalidade ordenada, que estaria no plano mítico, e a linearizada (com continuidades e com descontinuidades), propriamente histórica. Após essas diferenciações, Byung-Chul Han poderá acenar para o que compreende como as características do tempo na atualidade.

Na temporalidade mítica o que se tem é o sentido, a ordem, a narrativa organizada dos acontecimentos que imprimem e que criam o mundo. Nesse âmbito, os acontecimentos são organizados por um franco esteio de sentido. O presente perdura. Já o tempo histórico não traz consigo essa dimensão de acabamento, de imutabilidade, aproximando-se do eterno. Seu signo é a mudança e não o eterno retorno do mesmo. Há nele, de todo modo, uma sintaxe, que se deriva de uma dimensão processual. O presente é, no tempo histórico, transitório, onde verifica-se as distinções entre o “nada é” e o “tudo pode”. Mas a mudança, contudo, não implica em desordem, na medida em que encontra uma estrutura, isto é, uma linearidade.

Há duas formas significativas de compreensão temporal, conforme Byung-Chul Han: o tempo escatológico e o tempo das luzes. O primeiro é o tempo do fim, não havendo ação; tudo é movimentado pela providência. Já o tempo das luzes, que poderíamos chamar de moderno, é diferente, quer dizer, ele admite um lançar-se em aberto ao futuro, onde não há um fim, como nas escatologias, mas a emergência do novo. Aqui, explica o filósofo, há um duplo processo: desfactização e desnaturalização.

Estamos, portanto, no âmbito da liberdade de agir. É o tempo da razão, não mais amparada pelo destino, ou mesmo pela providência, ou por um eterno retorno do mesmo, mas do traçado almejado – eis o devir revolucionário. “Nas Luzes, a revolução refere-se a um tempo desfactizado. Livre de todo ser/estar lançado, de qualquer forma natural ou teológica, o mundo, como um colosso a vapor, solta-se em direção ao futuro, onde espera encontrar a salvação” (HAN, 2016, p. 29). Seria outra forma de história salvífica. Com uma meta de futuro, retornando à discussão, a experiência do tempo se acelera. É a passagem, assim, do tempo de Deus para o tempo dos homens. O sentido do tempo histórico passa a ser a própria aceleração.

Então, em termos esquemáticos, haveria, ao menos no Ocidente, duas temporalidades majoritárias. A que se apresenta como imagem, que é própria do tempo mítico; além da que se mostra como linha que avança. Assim chegamos ao tempo da atualidade, conforme Byung-Chul Han, em que existe a perda da tensão narrativo-teleológica, o que gera a sua decomposição em pontos, ou atomizações, desorientados. É o mundo das informações e não mais o terreno da história: “A história ilumina, seleciona e canaliza a trama dos acontecimentos, impõe-lhe uma trajetória narrativa e linear. Se esta desaparece, forma-se um amalgama de informações e de acontecimentos que tropeça sem direção. As informações não tem aroma. Nisso, diferem da história” (HAN, 2016, p. 30).

Poderíamos recobrar, aqui, o apontamento de Walter Benjamin (1986, p. 195) sobre a perda da experiência decorrente da incapacidade de narrar, de comunicar histórias, algo que corrobora com o diagnóstico de Byung-Chul Han sobre o mundo da infocracia que nos enreda.

Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas.

O tempo na atualidade de Byung-Chul Han é formado por pontos. O que há entre os pontos? Vazio. Onde prevalece o nada há a propensão ao profundo tédio. O tempo mítico e o tempo histórico, de outra maneira, urdem o tempo e impedem a sua desagregação. Esses intervalos levam ao tédio, havendo a necessidade acelerada de que alguma novidade possa emergir. Também é a causa do sentimento de insegurança crônica, pois onde nada acontece está a morte.

O tempo dos pontos, experienciado atualmente de acordo com Byung-Chul Han, impele a uma disposição de encurtamento dos vazios, o que seria o verdadeiro motivador da sensação de aceleração contemporânea. O resultado disso é uma situação na qual se evidencia a emergência de acontecimentos sempre novos, de novidades incessantes e sem duração, o que também traz à tona os radicalismos. As descontinuidades são cada vez mais imediatas, derivando na impossibilidade de avançar pela experiência e pela narrativa. Violências surgem. As instituições não fazem mais sentido ou estabilizam as ações sociais. O tempo mítico e o tempo histórico oferecem sentido narrativo e compreensão ao que se passa. Enredam-se na duração e na experiência. Ao contrário da atomização, do isolamento e da descontinuidade frenética, marcas da atualidade. A narrativa seria esse aroma do tempo, e isso só seria possível na duração.

3.

O sentimento de aceleração contemporâneo, que está relacionado com o tempo dos pontos, distancia o ser humano da capacidade contemplativa. Na contemplação existe não outra coisa do que a demora. “A incapacidade de demora na contemplação pode dar lugar à força motora que conduzirá a uma pressa e a uma dispersão generalizadas” (HAN, 2016, p. 87). Esse fenômeno estaria relacionado com perda das coordenadas temporais e espaciais, ou seja, não há factualização e enraizamento, o que implica na perda da duração.

A vida contemplativa está, nesse sentido, relacionada com o demorar-se, o que oferece elementos para a duração. A questão de Byung-Chul Han é esta: como demorar-se em algo, contemplar ou meditar algo, em um mundo marcado pela sucessão desenfreada de momentos rápidos, de acontecimentos fugidios ou de imagens?

É, de outra maneira, uma constatação sobre o tempo do uso e do consumo, que amparados pela lógica neoliberal requerem que as coisas não durem, que já sejam obsoletas. Essa sucessão acelerada de fragmentos e de acontecimentos leva ao estado de desestabilização temporal, que nada mais seria do que a falta da possibilidade de demorar-se junto às coisas do mundo da vida, o que levaria à duração, que é a condição para algo permanecer; a possibilidade da elaboração de uma identidade autêntica. É interessante como Byung-Chul Han, na esteira da filosofia de Martin Heidegger, estabelece que o “ser” relaciona-se com a temporalidade. Porque o “ser” significava, em sua antiga acepção, justamente o demorar-se e o perdurar-se.

Tendo isso em vista, parece ser preciso entender a reabilitação que Byung-Chul Han faz da “vida contemplativa”. Para isso o retorno à filosofia de Aristóteles. O meditar, o filosofar, o theorein como condição para o ócio, a skholé. O ócio grego não estaria ligado à acepção atual de tempo livre. “É um estado de liberdade, alheio a determinação e à necessidade, que não gera esforço, nem preocupações” (HAN, 2016, p. 103-104). O trabalho subtrai, nessa direção, a liberdade, posto que está voltado para as necessidades imediatas. É por essa razão que ele impele à intranquilidade e à falta de serenidade, respostas de Martin Heidegger dadas em seu tempo.

O ócio é, de outro modo, o espaço onde não existe preocupações – uma condição de liberdade que transcende as necessidades da vida ativa. Interessante Byung-Chul Han dizer que a felicidade provinha, retomando a reflexão do estagirita, do demorar-se contemplativo na beleza, que tinha o significado, justamente, de theoria. Se o sentido temporal é, pois, a duração, então, a felicidade aristotélica estaria posicionada no ocupar-se com coisas eternas e imutáveis que repousariam sobre si próprias.

Parece difícil compreender esse significado na atualidade, em que os seres humanos estão profundamente ligados ao trabalho, onde o labor maquínico é subjetivado e considerado a forma majoritária do agir humano. Em um mundo marcado pelo produtivismo, pela competição, pela novidade incessante, pela eficiência, falar do ócio grego, de marca aristotélica, seria, no mínimo, cair na incompreensão. O ócio não implica na dualidade trabalho e inatividade, como concebido hoje em dia. Também não é derivado da desconexão ou do relaxamento. O ócio autêntico significa, de acordo com Byung-Chul Han, um meditar sobre as verdades, o que dá a ele um sentido de reunião, de apaziguamento da dispersão. “O demorar-se requer uma recolecção de sentido” (HAN, 2016, p. 106).

A vida conduzida pelo trabalho, que reportaria a uma leitura de certo protestantismo e do capitalismo, bem ao gosto de Max Weber, retira dos sujeitos a vida contemplativa, o que faz deles algo de animal laborans. A vida passa, assim sendo, a equivaler-se ao processo das máquinas. O que existe, nessa situação, são intervalos, que teriam uma função de desligamento e de desconexão, mas que, no limite, não significaria outra coisa do que apenas uma pausa para a realização de um trabalho mais eficiente.

Em resumo, está distante do ócio grego e mais próximo da sociedade do tempo livre e do consumo da atualidade. É uma proposta, de uma maneira ou de outra, diferente daquela leitura de Hannah Arendt, que, em sua conjuntura, falou da recuperação da “vida ativa” como um modo de libertar as pessoas das suas necessidades ordinárias. Isso porque a sociedade do consumo, na qual vivemos com intensidades variadas, aparta o trabalho das necessidades da vida em si, tornando-se, assim, um fim em si mesmo, interditando outras maneiras de existência. Daí que a sociedade do consumo se combine com a sociedade do tempo livre.

Mas o que se produz é, de qualquer modo, o “destempo”, dado que esse tempo que sobra, aparentemente livre, não seria mais do que momentos fugazes, que acabam logo, não sendo portadores, então, de durabilidade. É, de certa forma, uma lógica simples de ser entendida: consumo e duração não são compatíveis, pois os bens, na lógica capitalista, não duram. Se subjetiva, com implicações na maneira com concebemos a temporalidade, a própria lógica produtiva do capital: “O ciclo de aparecimento e desaparecimento das coisas é cada vez mais breve. O imperativo capitalista do crescimento implica que as coisas se produzam e se consumam num lapso de tempo cada vez mais breve” (HAN, 2016, p. 111-112). Há, então, a perpetuação da caducidade, da efemeridade, da fugacidade, daquilo, em suma, que não dura ou que acaba logo.

Na sociedade do consumo não há espaço para o se demorar e para o estado contemplativo. O tempo livre é transformado em vivências rápidas, pontos de parada que em si já seriam lembranças do presente. O que produz é destempo e dissincronia. O consumo suprime a possibilidade de permanecer junto às coisas, condição, em uma leitura heideggeriana, para o próprio ser. O que se depreende é que o tempo do trabalho sob a lógica capitalista interdita a duração, movimento subjetivado e reproduzido pelas pessoas em seus modos de experimentação temporal. “A perdurabilidade e o sossego recusam o uso e o consumo. Criam uma duração. A vita contemplativa é uma práxis da duração. Gera outro tempo, interrompendo o tempo do trabalho” (HAN, 2016, p. 112).

Para se compreender o significado dado por Byung-Chul Han para a experiência contemplativa se faz fundamental captar o seu diálogo com Hannah Arendt, que em A condição humana (1958) mostrou-se desfavorável a essa perspectiva. A sua posição, contrária à tradição contemplativa de matriz greco-cristã, seria a da vida ativa resoluta, esteio para o agir. O diagnóstico de Arendt, dito de outra maneira, é que o primado da contemplação mortifica a ação.

Byung-Chul Han, em contraturno, discorda do posicionamento da filósofa, sobretudo o seu entendimento da vida contemplativa como uma passividade, como uma espécie de paralisia, estando sem movimento. Retomando Aristóteles para confrontar Hannah Arendt, o pensador sul-coreano compreende que a vida contemplativa não é destituída de ação, evidenciando que o bios theoretikos se lançaria em um “estar em obra”, mobilizando grande energia nessa experiência.

Hannah Arendt traz consigo, em sua visão, uma disposição heroica, beirando até mesmo certo messianismo em sua tentativa de recuperação da ação como condição para a emergência do novo. A sua tentativa é de revitalizar a ação como forma de retirar as pessoas da situação de animal laborans, do funcionamento automático. Mas o que é destacado é que que essa passividade do animal laborans não é contrária à vida ativa, mas a sua contraface. “Quem não é capaz de deter-se não tem acesso a alguma coisa de verdadeiramente diferente. As experiências transformam. Interrompem a repetição do sempre igual. Não é estando cada vez mais ativo que alguém se torna sensível às experiências” (HAN, 2016, p. 125). A suposta passividade é, assim, uma ação, porque senão ela tornar-se apenas trabalho e ocupação; não mais contemplando, duvidando, reunindo, meditando a ação, tornada absoluta.

4.

A inquietação generalizada impede a contemplação. O pensamento deixa de conter profundidade, impedindo algo originalmente outro. O pensamento perde o compasso do tempo, apresentando-se, noutra via, ditado por este. Essa disposição de espírito é própria da efemeridade e distante do duradouro. A vida ativa se move, se tornada absoluta, como ação irrefletida, impedindo os desvios, o indireto e o diferencial. A vida humana torna-se pobre em formas, em que perdemos as nuances, o contraditório, o discreto, o irresolúvel.

O tempo perde a sua melodia, o seu aroma, transformando-se em cálculo. A perda da contemplação significaria não outra coisa do que a sua redução ao trabalho e ao pensamento como cálculo. A retenção contemplativa teria algo de amabilidade, de poder enxergar a beleza das coisas que duram, que são passiveis de demorar-se. A vida sempre ocupada leva, em outra direção, à destruição e à irreflexão, quando não à alienação. O tempo passa, e isso em uma projeção de subjetivação do capitalismo, a ser consumido. Não é incomum a expressão “matar o tempo”, que seria decorrente da compulsão gerada pelo trabalho. Enquanto isso a demora contemplativa concede tempo, amplia o tempo, que é algo diferente de estar sempre ativo e ocupado. “Quando recupera a capacidade contemplativa, a vida ganha tempo e espaço, duração e amplidão” (HAN, 2016, p. 135).

O resultado da maximização da vida ativa é a hiperatividade. A falta de tranquilidade, de serenidade no agir. A possibilidade das ações ordenadas e cheias de tempo. Não é a tentativa da eliminação da vida ativa a partir de uma passividade irrefletida. Mas tornar a ação cheia de contemplação. Interessante Byung-Chul Han falando que a abertura para a vida contemplativa oferece espaço para a respiração, ou para o otium: uma respiração pausada.

Daí uma profícua analogia: a que percebe pneuma tanto como respiração quanto como espírito. Por isso, e esta é a conclusão da sua meditação sobre o tempo na atualidade, a democratização do trabalho deve levar em consideração, não restam dúvidas, a democratização desse otium, pois caso contrário haveria não outra coisa do que a escravidão de todos pelas dinâmicas do capitalismo neoliberal.

*Piero Detoni é doutor em História Social pela USP.

Referência


HAN, Byung-Chul. O aroma do tempo. Um ensaio filosófico sobre a arte da demora. Lisboa: Relógio d’Água, 2016, 144 págs. [https://amzn.to/3tZxh6z]

Bibliografia


ADORNO, Theodor W. O ensaio como forma. Sociologia. São Paulo: Ática, 2003.

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.

BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1986.

HUSSERL, Edmund. Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo. Lisboa: Impresa Nacional-Casa da Moeda, 1994.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.

STAROBINSKI, Jean. É possível definir o ensaio? Remate de Males, Campinas, Jan/dez, 2011.


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