As faces do Mao

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LINCOLN SECCO*

Comentário sobre o filme de Dellani Lima & Lucas Barbi

Ele é o cara mais punk que eu já conheci. Costumo brincar com o Mao que este será o título da biografia dele que eu vou escrever. O filme de Dellani Lima e Lucas Barbi exibido na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo revela as diversas frentes de atuação de José Rodrigues Mao Junior: o punk do ABC paulista, o vocalista dos Garotos podres, o professor da rede pública, o sindicalista, o historiador, o militante e muito mais.

É difícil encontrar sob suas faces públicas a essência do personagem. O crítico de O Globo, Mauro Ferreira, o definiu muito bem como “o eterno garoto punk da periferia do ABC Paulista”. No entanto, o filme vai além e deixa que o rosto dele se forme aos poucos nos nossos olhos, quase como um quadro pontilhista, feito de trechos de aulas e debates, comícios e protestos, encontros e rachas políticos, fotogramas esmaecidos pelo tempo e a irrupção de uma cena punk nova, com meninas subindo ao palco e jovens sambando com rock. Um mérito da montagem de Dellani Lima.

Os diretores recordaram a força visual da banda, o impacto do som no público, o abuso do backing vocal e a performance humorística do Mao. Mas também expuseram o aggiornamento do punk rock no registro de falas dos novos integrantes da banda, ex fãs que adentraram definitivamente a história dos Garotos podres: Deedy (guitarrista), Uel (baixista) e Tony Karpa (baterista). A fixação da câmera no dedilhar das cordas e a fala final do baterista são pontos altos do filme.

As faces do Mao estão misturadas tanto quanto a cultura e a região onde ele surgiu. O ABC tem uma tradição comunista, trabalhista e petista; sua classe operária é um encontro de italianos e nordestinos. Os shows nunca tiveram uma total separação entre público e palco; o professor Mao da sala de aula nunca deixou de dar lições históricas sobre as letras que cantaria em seguida nos shows; e a opção solitária do vocalista por uma militância de esquerda não é um ponto fora da curva nos meios da sua cultura musical, seja aqui no Brasil, seja na Europa com os Skinheads Against Racial Prejudice (Sharp).

O que confere unidade ao filme é a militância antifascista que se inicia na ditadura, questionando a censura, tocando para o fundo de greve e apoiando as campanhas do PT e da CUT, algo que o restante da velha formação da banda nunca compartilhou. E este o motivo pelo qual eles foram esquecidos.

O filme também expõe a rede de relações política e a interlocução científica de um personagem que combina a sala de aula, o ativismo militante e a pesquisa acadêmica. Mao defendeu uma tese na Universidade de São Paulo intitulada A Revolução Cubana e a questão nacional. Uma obra pioneira que seguramente é a melhor exposição do tema publicada no Brasil. Ele expõe o processo histórico tomando o nacionalismo revolucionário como um elemento de longa duração, de tal forma que a revolução não se inicia em 1956, mas no século XIX. E continua até hoje.

Mao tem sólidos conhecimentos de história militar, o que o singulariza entre os estudiosos das revoluções. É difícil sustentar com ele um debate sobre as Guerras Napoleônicas ou acerca do papel da União Soviética na Guerra Civil Espanhola.

Escrevemos juntos nos anos 1990 A Revolução Chinesa: até onde vai a força do dragão? Registre-se que a pergunta do subtítulo foi feita numa época em que a economia brasileira poderia ser uma rival da chinesa. A China ainda estava decolando. O livro mostrou que o Partido Comunista Chinês nunca foi monolítico e isso se revelou na sua estratégia militar e na variedade de suas políticas econômicas; ele herdou uma tradição de revoltas camponesas milenar.

São muitas faces que desenham um único rosto: o de uma personalidade que particulariza em sua trajetória de vida os processos gerais de nossa história recente. Nele, o universal se expressa através da música e dos livros, nas lutas e nas aulas, mas sobretudo na intransigência dos princípios. Em qualquer conjuntura, ele é um socialista do início ao fim. Perante o fascismo não transige nem negocia. Não se verga, nem recua. Eis o Mao que vi nos confrontos com a polícia, nas assembleias, em solidariedade a colegas presos, em tantos debates, brigas, correrias e nas greves de professores. Foram conversas demais, com vinho demais. Mas sempre com esperança. Este é o personagem a que se pode assistir nesse indispensável filme biográfico.

*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê Editorial).

Referência


As faces do Mao
Brasil, 2021, documentário, 77 minutos.
Direção, roteiro e fotografia: Dellani Lima & Lucas Barbi.
Montagem: Dellani Lima.

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES