O arranjo do desarranjo

Imagem: Sebastian Voortman
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Por MANFRED BACK & LUIZ GONZAGA BELLUZZO*

Em meio ao caos monetário, o fantasma de Keynes ressurge – não mais em Bancor, mas em bytes. O mBridge pode ser a ponte digital que faltava para atravessar as águas turbulentas do dólar, transformando desarranjos em um novo arranjo

“Like a bridge over troubled water” (Simon & Garfunkel)

1.

O avesso, do avesso, do avesso. Há um clamor ou desejo nostálgico para um novo Bretton Woods, ainda mais nesses tempos turbulentos desatados sobre a moeda-reserva, o dólar. (Na posteridade da segunda guerra mundial, as mentes saudosistas clamavam por um retorno ao padrão-ouro)

Os desarranjos do sistema monetário internacional invocam a possibilidade de um novo Bretton Woods. Desta vez, acreditamos numa adaptação digital do Bancor.

A ideia de John Maynard Keynes, vencida na reunião de Bretton Woods, pretendia criar uma moeda única para todos os países amparada em uma Câmara de Compensação única, a União Internacional de Compensação (UIC), cuja diretoria seria formada por representantes de todos os países.

O Bancor seria a moeda utilizada nas trocas entre os países aderentes ao sistema e o seu valor seria lastreado numa combinação de moedas mantidas pelos bancos centrais nacionais. Cada país receberia uma cota anual de ‘Bancores’ proporcional à sua participação no comércio mundial. Se a balança de pagamentos de alguém caísse para um déficit, seriam concedidos créditos para equilibrá-la. Se alguém acumulasse um excedente, os Bancores seriam deduzidos de sua quota.

“A proposta é complicada e nova, e talvez utópica no sentido de que não é impossível de pôr em prática, mas que pressupõe uma maior compreensão, espírito de inovação corajosa e cooperação e confiança internacionais do que é razoável supor”. (John Maynard Keynes)

Na visão do Lord Maynard Keynes, o problema dos desequilíbrios entre as economias que redundaram em duas guerras mundiais, eram as guerras cambiais, as guerras comerciais, os desequilíbrios do balanço de pagamentos, e o financiamento precário dos países com moedas não conversíveis.

O Bancor sucumbiu à hegemonia americana, mas houve um acordo para administrar o sistema monetário internacional mediante a vinculação do dólar ao ouro. Essa decisão estabeleceu a paridade 35 dólares à onça-ouro.

Em 1971, diante dos desequilíbrios do balanço de pagamentos dos Estados Unidos, Richard Nixon promoveu a desvinculação do dólar ao ouro. A partir de então, já em 1973, é decretado um sistema taxas de câmbio flutuantes seguido, mas tarde, pela abertura das contas de capital. A determinação da taxa de câmbio de cada país está sujeita aos caprichos do fluxo de dinheiro que vagueiam pelo mundo na busca de retorno alavancado sobre o diferencial de taxas de juros, a conhecida “arbitragem”.

Os países de moedas não conversíveis foram submetidos ao comando do movimento de capitais que promovem a instabilidade das alternâncias entre valorizações e desvalorizações. Portanto, os países de moedas “fracas” não são soberanos para fixar sua taxa de juros.

2.

John Maynard Keynes percebeu, assim como outros economistas, que a taxa de câmbio define a taxa de juros, não o contrário. A taxa de câmbio define a relações de intercâmbio entre os países, determina os movimentos de preços nos emergentes e escancara as disparidades entre o valor da riqueza expresso na moeda nacional em relação à moeda estrangeira. Um caudal de opiniões dos especialistas desconsidera a determinação da taxa de juros interna pelas oscilações do câmbio flutuante.

Nas economias de moeda não conversível, como o real brasileiro e o peso argentino, a mobilidade de capitais tende a produzir valorizações indesejadas, seguidas de desvalorizações abruptas. Os regimes de taxa de câmbio flutuante não conseguem amenizar o baque e as autoridades monetárias do país de “moeda fraca” – com “ponto de compra” imprevisível – são tentadas a vender reservas ou subir as taxas de juro para estabilizar o curso do câmbio.

Não funciona. Se as reservas são baixas diante de um passivo financeiro elevado em moeda estrangeira, tais medidas desesperadas acentuam a desconfiança na moeda local e aceleram a fuga de capitais.

Cabe a pergunta como administrar a taxa de câmbio sem controlar a conta de capital?

Quem aprendeu a lição foi a China, my friends! O Banco Central Chinês controla a entrada e saída de capital estrangeiro, não adota o regime de metas de inflação, e administra uma taxa de câmbio em relação ao dólar e euro, e, também, nas relações com os parceiros comerciais asiáticos. Controla as varáveis chaves na economia, a taxa de câmbio e a taxa de juros.

A China foi além, testou internamente uma espécie de yuan digital, a CBDC, Moeda Digital de Banco Central (e-CNY). Mais de 134 países estão desenvolvendo sua moeda CBDC, inclusive o Brasil com o Drex. Em 2021 foi lançado o mBridge, projeto de uma câmara de compensação entre as moedas dos países participantes para competir com o Swift (a plataforma de pagamentos em dólar).

Segundo o Banco de Compensação Internacional (BIS): o projeto mBridge faz experiências com pagamentos internacionais usando uma plataforma comum baseada na tecnologia de registro distribuído (DLT), na qual vários bancos centrais podem emitir e trocar suas respectivas moedas digitais emitidas pelos bancos centrais (multi-CBDCs). A proposta do mBridge é a construção de uma plataforma multi-CBDC, eficiente, de baixo custo, que possa fornecer uma rede de conectividade direta entre bancos centrais e participantes comerciais, aumentando significativamente o potencial para fluxos de comércio internacional e negócios transfronteiriços em geral.

3.

Para testar essa proposta, um novo blockchain nativo – o livro-razão mBridge – foi projetado e desenvolvido por bancos centrais para bancos centrais, a fim de servir como uma implementação de plataforma especializada e flexível para pagamentos transfronteiriços em várias moedas.

Nasce a possibilidade de um novo arranjo monetário capitaneado pelos chineses, e talvez a realização do sonho de John Maynard Keynes, usando o mBridge como forma de meio pagamento em várias moedas, tendo como âncora o (e-CNY). A vantagem da ideia original de John Maynard Keynes, agora adaptado ao modelo chinês, permite aos países liquidarem suas trocas comerciais em moeda local.

Esse projeto pretende dar fim à era de desequilíbrios causados pelo regime de câmbio flutuante. Fim da volatilidade e da ociosidade do dinheiro. Se vingar, retornamos a um sistema de taxas de câmbio administradas E, mais importante, o déficit externo financiado pelas moedas locais.

“O capital-dinheiro está ocioso, e não apenas como música passiva e também como música do futuro, mas também como música ativa, como música do futuro”. (Marx)

Talvez a música volte a cantar: “Like a bridge over troubled water”.

*Manfred Back é graduado em economia pela PUC –SP e mestre em administração pública pela FGV-SP.

*Luiz Gonzaga Belluzzo, economista, é Professor Emérito da Unicamp. Autor entre outros livros, de O tempo de Keynes nos tempos do capitalismo (Contracorrente). [https://amzn.to/45ZBh4D]


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