Por CRISTIANO ADDARIO DE ABREU*
Numa de suas datas mais relevantes o Brasil reafirma ser um país sem memória
“Quem controla o passado, dirige o futuro. Quem dirige o futuro, conquista o passado” (George Orwell, 1984).
Neste ano de 2022 o Brasil comemora seu bicentenário de Independência política de Portugal. Tal data clama por uma onda de publicações, comemorações, reflexões…. Mas é chocante, para não dizer vergonhoso, o nível de esquecimento coletivo que se projeta neste 7 de setembro do presente ano. Qualquer país, numa data desta envergadura, como EUA em 1976, a França em 1989(sua revolução), a Argentina em 2016… faz um planejamento comemorativo. Mas o esquecimento com que o bicentenário da Independência do Brasil está se projetando chega a ser pornográfico. E já é um fato histórico por si só, que nos chama a uma reflexão.[i]
Em 1922, o centenário da Independência do Brasil foi planejado com antecedência, com exposições montadas do Rio de Janeiro[ii](no Morro do Castelo), e com a realização da Semana de Arte Moderna de São Paulo. Marco artístico e cultural do Brasil, que foi invocado por ocasião da data: naquele centenário, uma elite artística nacional, invocou as vanguardas europeias, para superar o sempre criticado atraso brasileiro. Mas fizeram isso olhando, e valorizando, a cultura popular brasileira, colocando-a como fonte de renovação simbólica e material, do que se buscava como nação. Havia naquela data um vivo debate, cheio de discordâncias, mas pleno de agendas propositivas, ocorrendo no Brasil. E hoje: o que está ocorrendo?
A origem da palavra “comemorar” significa: lembrar juntos. Cabe nela celebrações, mas também críticas coletivas. Nem mesmo um frívolo ufanismo vazio tem sido chamado a público hoje no Brasil…. E tal absurdo é, obviamente, fruto do momento interno pelo qual o Brasil passa desde 2013. Não adianta culparem a pandemia, ou até a guerra da Ucrânia (sic), por este esvaziamento nacional. A guerra da Ucrânia seria, inclusive, um fator de fortalecimento da memória nacional, com tal guerra lembrando ao mundo a importância da soberania nacional e da sua necessária inviolabilidade territorial.
Todas as evidências mostram, desde a pandemia, mas sobretudo, com esta guerra, que o mundo vive um refluxo intenso da globalização, com um fortalecimento das estruturas nacionais: econômicas, produtivas, políticas e militares. Então, por que não há nenhuma rememoração nacional coletiva, contagiante e presente, sendo construída no Brasil neste 2022??? Por que tal resistência, nesta frente simbólica, a qualquer reflexão histórica coletiva?
Voltemos ao significado de comemorar: lembrar juntos, lembrar na Polis. Como na citação de George Orwell, aqui invocada, a memória nunca é apenas olhar para o passado, mas é também olhar para o futuro. O como se olha o passado, é sempre uma estratégia de projeto para o futuro. Então: qual é o projeto de futuro hoje no Brasil? Quem o tem proposto??? Quais são os grupos propondo “futuro” no debate público brasileiro em 2022? Lembremos que tais proposições sempre são políticas, por isso o caráter político do presente texto.
Antecipamos aqui como resposta que o Brasil vive uma censura sobre os grupos políticos do campo progressista. Enquanto que do campo reacionário há um vazio de narrativas, ou melhor: uma ausência de capacidade de assumir, na Polis brasileira, o que de fato tais agrupamentos propõem para o futuro do Brasil.
O grupo reacionário que alcançou a presidência brasileira em 2018, o fez com um discurso apenas negativo, Dark: contra o PT, contra a corrupção, contra tudo o que está aí…. Certamente a falta de uma agenda, minimamente, propositiva neles, é base deste esquecimento coletivo. Mas curiosamente havia uma estética propositiva neles com o verde-amarelo: um declarado nacionalismo, contra o projeto político identificado com o PT, que foi antes vencedor de eleições 4 consecutivas ao Palácio do Planalto. Eles acusavam o PT de ser um projeto partidário, enquanto eles teriam um projeto nacional. Mas cadê este projeto deles em 2022??? Era só uma estética vazia?
O presente constante dos novelizados da Teletela
Sim: o discurso do nacionalismo verde-amarelista era só teatro de sombras. Como no livro 1984, são o oposto do que declaram ser: o Ministério da Paz, faz a guerra, o Ministério da Verdade propaga mentiras (havendo em Brasília, sob administração de um dos filhos do Bolsonaro, um Gabinete do Ódio,[iii] que é literalmente isso: um ministério da Mentira sobre as redes digitais). Logo, nada mais orwelliano, de que os que gritaram ser nacionalistas, sejam os mais colonizados. No grupo de Bolsonaro tudo na realidade é o oposto do professado: a mentira crônica, destrói qualquer base de comunicação, destrói a própria ideia de Política, de construção Lógica, com Palavras, do direcionamento da vida coletiva. Levando ao adoecimento político, ao enlouquecimento coletivo, pelo tsunami de mentiras, destruindo qualquer base de confiança social mútua. Eles são anti Logos. Invocando mitos fantasmagóricos, numa mitomania compulsiva, a destruir qualquer pacto político mínimo para a vida civilizada.
Neste teatro do absurdo macabro, o esquecimento institucional deste (sic)governo frente ao nosso Bicentenário de Independência em 2022 é parte do projeto deles de ódio ao Brasil, de destruição da memória nacional, de destruição de qualquer projeto nacional.[iv]
Esse esquecimento total é parte do projeto: um país sem passado, não tem futuro. E o projeto de futuro deles é transformar o Brasil numa colônia exportadora de commodities, com o povo o mais próximo possível da escravidão. Caso isso inclua o fim da unidade territorial, e a destruição da estrutura política, que seja. Os países não são eternos: Iugoslávia, Sudão, Iraque, Líbia, e agora Ucrânia, nos ensinam isso. Havia inclusive uma forte parte dos apoiadores do atual presidente do Brasil, cada vez mais desmascarados como apoiadores de uma agenda racista, clamando por uma ucranização[v] do Brasil…. Curioso… Isso bem antes de explodir, abertamente, essa guerra.
Houve na Ucrânia revolução colorida[vi], ondas de neonazistas no oeste do país, inclusive com um movimento de indignados chamados de vem pra rua (isso: esse mesmo nome). Realmente, parece que há planos internacionais de destruição de algumas unidades nacionais estabelecidas. A Ucrânia, sob o ex-ator Volodymyr Zelensky, sujeito contra a política, contra tudo o que estava aí… a Ucrânia já se jogou nesta lista dos ex países… Bolsonaro, assim como este obscuro Zelensky, não é apenas ridículo: é sobretudo perigoso.
Este texto poderia seguir, indefinidamente, levantando as catástrofes causadas ao Brasil, pela eleição deste meliante/miliciano, anti-instituições nacionais, que é Bolsonaro. Mas o foco do texto são os 200 anos da Independência do Brasil, e como comemorá-la. Logo, como lembrar do passado, para discutir as janelas de futuro. Ou seja, só discute o passado, quem tem algum projeto de futuro (projeto confessável, caso o agrupamento tenha como projeto a destruição do Brasil, eles jamais confessarão o que fazem). E o que se vê em 2022 é que, não apenas Bolsonaro e seu entourage, mas todo o espectro político que o levou ao poder, não têm projetos de nação. Como o silêncio amnésico de todos eles, de todos os que se vêm como elite, neste 7 de setembro de 2022, explicita.
O que ocorre hoje no Brasil é o assassinato do debate público. Pois todo o espectro que apoiou o golpe de 2016(impeachment sem crime de responsabilidade), e a prisão ilegal(pois sem provas) contra Lula, vive num delírio dos novelizados pela TV. Criaram uma distopia de que iriam destruir o pete… Querem um Brasil sem o pete… Neste 2022 a mídia, de forma orwelliana, vive uma distopia que ela criou desde 2013/2014: de querer arrancar o PT, o maior partido do Brasil, que esteve em TODOS os segundos turnos presidenciais desde da redemocratização(1989), que ganhou 4 eleições presidências seguidas…do debate público. Tal mídia criou a distopia de um Brasil sem o PT. Que só existe na cabeça dela, não na realidade. Tal amputação política do debate público tem gerado este silencio ensurdecedor em 2022. Que tem se tornado cada dia mais ensurdecedor, conforme o 7 de setembro se aproxima.
Tal mídia, monopólica, defensora de interesses financeirizados internacionais, busca(va) desesperadamente uma dita terceira via. Mas não existe tal terceira via, pelo simples fato de que a agenda econômica da mídia coincide perfeitamente com a de Paulo Guedes. Qual é o projeto deles??? De produção, de emprego e de renda??? Há diferença da agenda econômica entre: Paulo Guedes, Bolsonaro, Moro, Globonews, partido Novo???
Não: não há. O projeto deles é o liberalismo escravista do Brasil do século XIX (eis a memória guiando o futuro…). Mal comparando, eles são de um tatcherismo anacrónico, ideologicamente mistificador, e absolutamente ultrapassado. Curiosamente, eles (todos estes supracitados), que sempre acusaram as esquerdas de serem ideológicas, são bovinamente ideológicos numa mistificação a muito superada de liberalismo, condenada pela história. E que neste século XXI, com a China a cada dia maior, e EUA cada vez mais cancelador/interventor[vii], tal discursinho neoliberal (gerontoliberal)[viii] é cada vez mais de um ridículo constrangedor, em sua desonestidade intelectual, frente este mundo econômico cada vez mais regido pela força.
Força militar e dos monopólios econômicos ligados a estes Estados belicosos. A ideologia liberal caminha para se tornar uma mitologia em farelos no século XXI que se desenha. Deixando a mídia empresarial brasileira ainda mais muda frente aos fatos, depois dela ter passado 40 anos com um discurso neoliberal/monolítico, e hoje precisa falar de: guerras centrais, sanções e bloqueios (inclusive o nada liberal bloquei americano à tecnologia de 5G chinesa…), pandemias, remilitarização, segurança e soberania energética… Tudo isso indo frontalmente contra ao mantra da finada globalização. Lutar, pateticamente, para seguir brandando um discurso liberal, num mundo como este, é de uma prostração ideológica alucinada. Não impressiona o completo esquecimento até dos 200 anos de Independência de um país que eles não querem ver independente de um sistema globalizado… que não mais sequer existe como conhecíamos. A não ser na cabeça ideológica deles.
A mistificação liberal dessa mídia vai do noticiário ao entretenimento. Lembremos que a pouco tempo a rede globo fez uma novela enaltecendo o século do estagnacionismo liberal[ix]: o fatídico século XIX. Idolatrando a figura insípida de Pedro II, governando aquele escravista império, disfarçado de liberal. O orwelliano e geriátrico partido Novo, deveria assumir que é apenas uma renomeação sonsa do velho e escravista partido liberal, do injustamente enaltecido império escravista do Brasil.
Resumindo, a direita brasileira, com sua mídia monopólica, busca criminalizar toda narrativa pró-indústria e desenvolvimento no Brasil. Desde os anos 1980 repete lobotomicamente um monodiscurso orwelliano, de que o liberalismo é a única saída(There Is No Alternative), e persegue, combate e criminaliza quem ousa pensar diferente. Com a criminosa operação Lavajato (feita em conluio com esta mídia), buscaram destruir as empresas nacionais, sob o papo furado de combater a corrupção. Nenhum país, para combater acusações de corrupção, destroem suas empresas[x], empregos, capital fixo, e sua segurança produtiva nacional. Só países colonizados mentalmente[xi].
Por que o modernizante século XX, no qual o Brasil se industrializou, com Vargas, e a solução produtiva das estatais, é tão ignorado, para não dizer censurado, na memória novelizada pela mídia? O Brasil foi um dos países que mais cresceu no mundo no século XX, mas o vergonhoso século XIX, com sua letargia em acabar com a peculiar instituição da escravidão, é o celebrado pela mídia.
Há nesta narrativa imposta pela mídia um projeto. Pois romantizam a exógena nave espacial de uma família real europeia no Rio de Janeiro oitocentista, incensando-a com ares de grande instituição… Enquanto que a maior instituição política do Brasil hoje, que se chama Partido dos Trabalhadores(PT), foi, e é, criminosamente atacada por esta mesma mídia anti-institucional.
Institucionalismo como farsa, de um Brasil sem elite
Na editada narrativa liberal, a repetição crônica sobre as instituições alcança o nível de mantra. Mas o curioso é que eles não conhecem esta tradição intelectual norte-americana, que invocam mecanicamente. O Institucionalismo defende que as organizações jurídicas, sociais, políticas e econômicas, devem ser renovadas e influenciadas pela força das ideias sim, mas precisam dialogar com a história, e a materialidade da realidade histórica em questão. Jamais ser pateticamente importada, como se instituições inglesas ou chinesas pudessem ser replicadas mecanicamente, por países que nada tem em comum, com tais histórias nacionais. Como defendeu Sérgio Moro, sobre a Somália replicar as instituições da Inglaterra[xii]. Tratando as instituições nacionais como fantasias num desfile de escola de samba, e não como construções históricas não replicáveis. Isso não é institucionalismo. É apenas prova de que Moro invoca, retoricamente, o institucionalismo, sem ter a menor ideia do que se trata.
Curioso como a mídia mistifica o século XIX brasileiro, e sua finada monarquia, já felizmente esquecida pelo Povo, como vetustas Instituições políticas do Brasil… Enquanto ignora a tradição trabalhista, ignora Vargas, e combate histericamente o Partido dos Trabalhadores. Ser institucionalista no Brasil é: (1) respeitar a tradição Trabalhista, como a maior e mais profunda tradição política nacional: desde a Abolição, que a regulamentação do Trabalho é a maior luta do Povo brasileiro, e foi pelo Trabalhismo que tal luta sempre teve os maiores ganhos, e sua maior expressão histórica; (2) respeitar Vargas como símbolo de uma figura fundante de uma República com participação popular, com aceleração industrial, e melhora dos padrões de vida das massas; (3) respeitar a República como forma de governo político inconteste do Brasil: referendado maciçamente pelo Povo, num plebiscito em 1993[xiii]; e respeitar o presidencialismo como o único sistema de governo compactuado pelo povo, que já por duas vezes (1963, 1993) deu em plebiscitos vitórias incontestes ao sistema presidencialista(inventar qualquer variação de parlamentarismo no brasil é apenas golpe); (4) respeitar o Partido dos Trabalhadores (PT) como a maior expressão política e histórica do Trabalhismo no Brasil hoje, e desde da redemocratização (1988). Estando em todos os segundos turnos presidenciais desde 1989, e ganhando a metade deles. Com todo respeito ao PDT: o grande herdeiro do Trabalhismo no século XXI é o Partido dos Trabalhadores (PT)[xiv]. E a campanha de ódio que a mídia direcionou a este partido, foi uma guerra civil anti-institucional contra História do Brasil.
O atual momento de amnésia coletiva, nos 200 anos de nossa Independência política, é fruto desta campanha política de ódio contra o trabalhismo, contra o Partido dos Trabalhadores, e da criminalização e quase censura a toda tradição intelectual desenvolvimentista do Brasil (a heterodoxia econômica).
A mídia monopólica sequestra a memória nacional, celebrando apenas o que se identifica com o ricardiano liberalismo econômico. Neste 2022, o sólido favoritismo eleitoral do ex-presidente Lula, para o Palácio do Planalto, é mais um motivo de silêncio, para uma mídia que trabalhou, partidariamente, para impedir de todas as formas este retorno. O sequestro da narrativa nacional, por uma mídia oligárquica ultraliberal, tem obstruído qualquer conversa honesta com os interesses populares. A aposta cega desta mídia monopólica na destruição do PT e do Lula, foi de uma irresponsabilidade sideral contra as instituições políticas do Brasil. Orwellianamente, tais oligopólios midiáticos querem reescrever a história, para alegarem que não disseram o que disseram. Mas foram tão enfáticos na aposta de decidirem que acusações eram condenações perpétuas, que não têm como se esquivarem. E bloqueando os grupos progressistas, plenos de propostas, tais oligopólios impõe o silencio e o esquecimento no Brasil neste 2022 do bicentenário do esquecimento.
Repactuação política[xv] para um compromisso republicano do centro dinâmico do Brasil
Há no Brasil hoje uma perigosa crise de liderança. Precisamos concordar com o ex-presidente FHC: o Brasil não tem elite[xvi]. Há uma ralé endinheirada, que pensa como comerciantes ignorantes curtoprazistas, sem nenhuma visão sistêmica, ou pensamento geracional. Desde o papo do Fim da História dos anos 1980, petrificado na narrativa da mídia monopólica empresarial até hoje, há um discurso obsessivamente individualista, de que não há sociedade, apenas indivíduos[xvii]. De que só o eu interessa e existe. Isso virou um anátema imposto e repetido, que tem se tornado uma religião destrutiva. E que vai contra a ideia de Estado e de Nação. Logo, como esperar que esta sociedade, adestrada, novelizada, pela mídia para não se identificar como tal, mas apenas como indivíduos, vai se confraternizar num debate público sobre sua história comum de 200 anos de Independência política?
Ou seja: um debate público sobre a construção da vida comum do Brasil. Vida: ecológica, produtiva, social e humana, precisa ser repactuado. Mas isso vai contra os mantras liberais (ou melhor: liberaloides… pois nem liberais de fato são) imposto a 40 anos por essa mídia monopólica sobre a sociedade brasileira. E que, orwellianamente, como todo monopólio, só repete que defende o libre comércio (Free Trade)… Atacando os monopólios internos(Petrobrás), e nada dizendo dos monopólios globais, ou sobre sua própria monopolização da comunicação.
Um pacto nacional, uma repactuação política, precisa congregar o centro dinâmico da política nacional, para a construção de um compromisso coletivo. O que na tradição política norte-americana são os compromises. Em que todos cedem algo, têm parte de sua agenda acatada, num equilíbrio político. O PT, obviamente, faz parte deste centro. Só mistificadores muito desonestos fingem acreditar no comunismo do PT… Radical é o liberalismo econômico da mídia, e o fascismo colonial de Bolsonaro. O PT é centro. E mais: é também o centro gravitacional da Política brasileira desde 2003.
O que ocorre no Brasil, desde 2013/2016, é um sequestro, para a direita, do debate público, deformando este debate. Com uma manipulação midiática obcecada em assassinar da política toda a agenda das forças em defesa do Trabalho. Não é anacrônico identificar no discurso monolítico thatcherista da mídia empresarial, uma ânsia nostálgica da escravidão, com a negação de mais de 130 anos de luta republicana pela valorização e regulamentação do Trabalho. Eis o Institucionalismo: a História real, de um agrupamento humano, como o centro político do debate, não podendo ser escamoteada. E a escravidão está no DNA do Brasil: não dá para negar. Qualquer modismo importado, mecanicamente, terá sua fantasia desnudada antes da meia noite… A direita brasileira sonha em se fantasiar de Tory britânico, sonha em se fantasiar de Lady Thatcher, mas antes do fim do segundo copo, o chicote de feitor de escravos lhe rasga qualquer ilusão fantasiada…. A escravidão é a alma penada da agenda liberal, num país que nunca de fato, exorcizou sua peculiar instituição.
Desde 2013 o combate golpista contra toda a luta pelo Trabalho, na sociedade brasileira, é a continuidade da assombração escravista sobre o país. O paliativo sonso da mídia liberal, de cotas e discursos inclusivos sobre race and gender, enquanto esta mídia combate o pleno emprego, o aumento real do salário mínimo e os direitos trabalhistas, é apenas cinismo. O combate à absurda herança escravista no Brasil é, antes de tudo, uma luta em defesa dos direitos dos Trabalhadores. Hoje (e desde sempre no Brasil) as forças que combatem a agenda Trabalhista estão, obrigatoriamente, defendendo o espectro da escravidão. Por isso o silêncio ensurdecedor neste 2022. Por isso o bicentenário do esquecimento: o projeto de futuro para o Brasil, dos ditos liberais, na perspectiva histórica, carrega o barulho de correntes, e o sangue do Povo brasileiro regando o solo, sobre o qual vivem como exilados.
Pelo direito à memória das lutas trabalhistas, e do pensamento desenvolvimentista brasileiro
Para retomar uma perspectiva propositiva nesta data, contra o esquecimento crônico imposto ao país, terminaria este texto defendendo o fim da censura ao Nacionalismo Econômico, e à memoria do pensamento desenvolvimentista brasileiro, feita no (não) debate midiático. O brilhante pensamento econômico heterodoxo brasileiro, acumulado por décadas, e que inspira e explica até a China do pós-1978[xviii], precisa ser trazido ao debate público: Celso Furtado e Ignácio Rangel precisam ir para os currículos do Ensino Médio. Isso é debater o Brasil sobre sua História! Pois uma repactuação nacional no Brasil, não pode prescindir de sua maior tradição política (Trabalhismo), nem de seu maior partido (PT), nem de seu edifício intelectual mais original em economia (os desenvolvimentistas). Uma repactuação nacional precisa respeitar sua história, e parar com este deslocamento forçado do centro político para a direita: com deputados, partidos e movimentos financiados de fora do país. E um debate nacional real, enérgico, frente as imensas possibilidades de crescimento industrial, e de geração de empregos, pelo uso inteligente, e fortemente regulamentado, de nossas várias fontes de reserva energética, neste ultra-competitivo século XXI, deveriam estar no centro das nossas discussões atuais.
Mas o silencio segue cada dia mais ensurdecedor… Enquanto isso, numa Ucrânia em farelos, cada vez mais parece que Karl Kautsky retorna, junto com Orwell, num mundo no qual Oceania, Eurásia e Lestásia, arrastam e atropelam o resto do mundo em cabos de forças. Hoje parece que a OTAN não aceitará mais imperialismo nacionais, contra seu ultraimperialismo único. E assim o campo de força, e de negociação, da experiência histórica Brasil, sob lawfare, ameaças e sabotagens, tende a ser espremido, sob o impatriotismo colonial de uma não elite, que ignora o exemplo que deu Vargas. Que na última guerra intercapitalista, entre EUA e Alemanha, negociou e tentou tirar o melhor do conflito para o Brasil. Precisamos, para gerar futuro ao Brasil, de uma elite minimamente nacional. Que pelo menos tenha alguma base intelectual. Para saber a importância de parar numa data como esta, para refletir o passado, e assim, o futuro.
A Instituição brasileira Universidade precisa ser usada e potencializada neste plano: de empoderamento de novas gerações pensantes, com pensamentos coletivos e geracionais, para haver uma construção nacional de futuro. Uma nova elite precisa ser gerada, urgentemente, no Brasil. Lideranças científicas, estudantis e sindicais, deveriam dar a largada de uma agenda pró-reestruturação de estatais no Brasil. Como eixos produtivos, de longo prazo, em setores estratégicos como: energia, informática/comunicação, fármacos, fertilizantes. E um fortalecimento, e ampliação, das agências reguladoras. Sobretudo sobre as Big Tech e Big Pharma.
Do lado da agenda progressista não faltam temas e pautas, repletos de possibilidades propositivas. Mas toda essa construção propositiva, repleta de futuro e esperança, vinda de sindicatos, sociedade civil, e sobretudo, Universidades públicas, têm o acesso barrado na opinião pública, por uma mídia que imbeciliza um Povo novelizado. É muito sintomático do imperialismo da mediocridade do Brasil de hoje, sob um presente constante da TV, e das redes digitais monopólicas (a teletela: digital ou televisiva mesmo), que se dê mais relevância social ao remake da novelinha de TV pantanal, do que ao bicentenário da Independência política do Brasil neste 2022. Este é o estágio moral e cultural de um país sem elite: pois elite, tem que ser uma elite cultural também. Ou não é elite de nada. Um país sem memória, não tem projeto de futuro. E o Brasil está repleto de projetos exequíveis e generosos. A censura midiática é o que silencia o futuro no debate público.
*Cristiano Addario de Abreu é doutorando em história econômica na USP.
Notas
[i] Com todo respeito ao o que existe de programação oficial, o esvaziamento geral, e o distanciamento da sociedade civil frente aos eventos agendados, marcam a triste amnésia cívica do Brasil neste 2022: https://www.gov.br/arquivonacional/pt-br/canais_atendimento/imprensa/copy_of_noticias/comemoracoes-do-bicentenario-da-independencia-comecam-um-ano-antes-no-arquivo-nacional
[ii] http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/o-rio-do-morro-ao-mar-demolicoes-e-comemoracoes-em-1922/
[iii] https://congressoemfoco.uol.com.br/area/governo/ex-aliados-de-bolsonaro-detalham-modus-operandi-do-gabinete-do-odio/ https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-e-o-gabinete-do-odio-entenda-as-investigacoes-da-pf,70003976392
[iv] https://iserassessoria.org.br/bolsonaro-eu-nao-vim-para-construir-nada-estou-aqui-para-destruir/
[v] https://revistaforum.com.br/opiniao/2020/4/21/que-sara-winter-quer-quando-diz-vamos-ucranizar-73441.html
[vi] https://www.britannica.com/place/Ukraine/The-Maidan-protest-movement https://www.theguardian.com/world/2014/nov/21/-sp-ukraine-maidan-protest-kiev
[vii] https://home.treasury.gov/news/press-releases/jy0608
[viii] https://gmarx.fflch.usp.br/boletim-ano2-09
[ix] FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. Companhia das Letras. 2007.
[x] https://jornalggn.com.br/crise/a-lava-jato-destruiu-as-construtoras-brasileiras-para-entregar-obras-do-pais-as-empreiteiras-dos-eua-por-gonzaga-alves/
[xi] https://aterraeredonda.com.br/arapuca-estadunidense/
[xii] https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/psol-ironiza-moro-por-dizer-que-instituicoes-fazem-inglaterra-crescer-mais-que-somalia/
[xiii] https://pt.wikipedia.org/wiki/Plebiscito_no_Brasil_em_1993
[xiv] https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/brizolistas-se-filiam-ao-pt-em-ato-publico-de-apoio-a-lula/
[xv] https://aterraeredonda.com.br/a-repactuacao-republicana/
[xvi] https://www.amazon.com.br/Empres%C3%A1rio-industrial-desenvolvimento-econ%C3%B4mico-Brasil/dp/8520011160
[xvii] https://newlearningonline.com/new-learning/chapter-4/margaret-thatcher-theres-no-such-thing-as-society
[xviii] https://www.scielo.br/j/ecos/a/jtzRs3jDcK5gGBzSqcrWzMn/