O calote das Americanas

Imagem: Inga Seliverstova
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Por JADIR ANTUNES*

No mercado não há cidadãos, pessoas submetidas ao dever com a lei, com a pátria, com o país ou com a sociedade

Uma questão importante, talvez a fundamental, na compreensão da atual crise das Americanas é a de qual ponto de partida conceitual e epistemológico parte nossa investigação? Se estamos à procura da verdade, de suas causas fundamentais, acerca desta crise, de que ponto partimos nesta procura?

A imensa maioria dos analistas, seja de esquerda ou liberal, já decidiu pelo ponto de partida empírico e factual, tomando como causa da crise ora um fundamento moral ora um fundamento político.

Aqueles que tomam como causa da crise um fundamento moral, atribuem a ela a má fé, a corrupção e a gestão fraudulenta de seus altos executivos e acionistas majoritários.

Aqueles que tomam como causa da crise um fundamento político, impulsionados pelos acontecimentos do mundo político, atribuem a ela a prática golpista destes mesmos executivos e acionistas. Não é difícil perceber a forçada de barra, grotesca, nesta última concepção sobre a causa da crise das Americanas com a importação do glossário terminológico do universo político brasileiro para os fenômenos do mercado.

O mercado, porém, é um organismo livre totalmente autônomo e independente da moral e da política, O mercado é um organismo livre que possui suas próprias leis de funcionamento que em nada são afetadas pelas leis e máximas do país gravadas na Constituição e por todos os seus diversos códigos positivos. Estas leis positivas se aplicam somente à conduta de seus cidadãos. O mercado, porém, não é composto de cidadãos, mas de agentes, agentes capitalistas, absolutamente livres e desimpedidos em sua vontade de empreenderem ou não determinado negócio.

No mercado não há, portanto, cidadãos, pessoas submetidas ao dever com a lei, com a pátria, com o país ou com a sociedade, pessoas cuja ação está limitada por este dever prescrito, explicitamente ou não, em determinados códigos legais. No mercado há indivíduos que agem única e exclusivamente segundo um único e máximo propósito: o de enriquecer individualmente, produzindo bens para a sociedade ou não.

A máxima que rege a ação do homem de mercado, o agente capitalista, por isso, é o seu próprio interesse, o auto interesse como dizia Adam Smith, o interesse que este indivíduo tem com sua própria pessoa, com o seu próprio ganho e enriquecimento individual. A satisfação que a sociedade e o país possam ter com a máxima deste agente é um acidente, um resíduo, uma consequência que nunca é a causa propulsora e a meta final de sua ação.

Por isso, dizer que os altos executivos e os acionistas majoritários das Americanas agiram de má fé ou aplicaram um golpe contra os credores e a sociedade é uma afirmação tão trivial que em nada contribui para a compreensão das causas profundas desta crise.

O capital, como diz Marx, tem um único impulso, não consciente e que possa ser repreendido e educado pela moral e pela lei, o impulso da acumulação desmedida e irracional por dinheiro, impulso que leva o agente capitalista a ultrapassar todas as medidas e limites da moral, da justiça e do bom senso. Todo capitalista, por isso, possui uma desmedida dose de desumanidade, fanatismo, psicopatia e loucura por dinheiro.

Um furor desmedido por dinheiro que os gregos chamavam de hybris e uma prática que Aristóteles já condenava por ser uma mera chrematistikê: uma arte de fazer dinheiro tendo em vista o próprio dinheiro. Os modernos deram a este impulso desordenado o nome de endeavour ou conatus. Um impulso frenético natural, desregrado e violento que surge do interior da própria paixão humana e toma totalmente conta da razão.

Por isso, como dissemos, procurar compreender a ação dos agentes das Americanas em causas individuais, factuais e empíricas, como má gestão do negócio, descuido com a contabilidade, golpismo e falcatrua com os credores é uma péssima e incorreta forma de compreender esta crise.

O mercado é mercado desde seu nascimento durante as dinastias europeias dos séculos XVII e XVIII, como continuou sendo mercado durante o nascimento das repúblicas parlamentares do século XIX, como continuou sendo mercado durante as duas grandes guerras e o nascimento do nazifascismo no século XX e continua sendo mercado agora no século XXI com todas as suas deformidades políticas e estatais. Suas leis são as mesmas: produzir por produzir sem considerar como meta a satisfação das necessidades humanas; máxima liberdade de ação para seus agentes privados investirem onde quiserem, para quem quiserem, quando quiserem e na quantidade que quiserem; máxima liberdade para explorar e sangrar vidas humanas.

A liberdade do querer e da vontade do capitalista individual é a máxima moral do mercado seguida fielmente por todos os seus agentes. Uma máxima que, como dissemos, não encontra quaisquer restrições ou limites na lei e na moral universal dos filósofos.

O empirismo não é ciência, muito menos o empirismo grosseiro do jornalismo brasileiro. O empirismo não apreende a coisa investigada em sua conexão objetiva e real com as demais coisas que a determinam e a condicionam em seu movimento. O empirismo acredita encontrar a verdade da coisa na singularidade e na lógica particular da própria coisa, sem perceber que esta coisa não tem lógica particular alguma, que a lógica que rege a vida desta coisa ultrapassa o universo isolado da sua particularidade e da sua singularidade.

O moralismo também não é uma ciência, pois a moral pretende pensar a ação dos indivíduos enquanto indivíduos racionais e universais, enquanto indivíduos ideais que, por serem dotados de razão e capacidade moral autônoma, são capazes de regular suas máximas individuais às máximas universais da razão e da lei, seja através da educação seja através do medo das sanções que a lei pode lhes trazer caso a violem. A moral, por isso, julga e analisa as ações humanas não como elas são efetivamente, mas como deveriam ser, sem perceber que a ação efetiva do empresário capitalista jamais irá se adequar a estas máximas morais racionais e universais.

O mercado é uma entidade autônoma em vários sentidos: (i) da moral, (ii) da lei; (iii) da política; (iv) do Estado; e (iv) do próprio agente capitalista individual, já que as leis do mercado são leis objetivas e válidas para todos estes agentes. As leis do mercado possuem uma validade não somente objetiva e geral, mas, ainda, automática. O mercado é um grande autômato, um organismo semovente que possui seus próprios princípios, necessidades e leis. Não seguir estas leis e optar pelas leis jurídicas externas do Estado, pelas imposições morais externas da sociedade é, por isso, o caminho mais curto para a falência de todo agente capitalista.

As Americanas ruíram, porém, ironicamente, por conta destas mesmas leis do mercado. Ocorre que as leis do mercado são extremamente contraditórias. Ao querer produzir por produzir e vender por vender, como se todo o planeta fosse o seu mercado, o agente capitalista produz para além da capacidade de compra do mercado no qual ele está engajado. O capitalista produz e vende como se todos pudessem comprar. Porém, cada mercado possui seus compradores determinados e cada comprador possui também um bolso limitado.

Como já mostramos em artigo anterior publicado no site A Terra é Redonda a queda no poder de compra dos trabalhadores potenciais clientes das Lojas Americanas nos últimos quatro anos caiu abruptamente em cerca de 25 bilhões de reais.

Como mostramos no artigo referido, o fanatismo por dinheiro e vidas humanas do capitalismo somado à pandemia da Covid19, à insana reforma trabalhista, ao congelamento de salários e ao empobrecimento absoluto da classe trabalhadora nestes quatro anos de governo Bolsonaro tiraram do bolso do trabalhador cerca de 25 bilhões de reais que agora fazem falta para mover a máquina de fazer dinheiro das Americanas.

O fanatismo do capital por dinheiro não leva somente a produzir por produzir, como se todo o planeta lhe pertencesse, mas leva, ainda, ao empobrecimento, absoluto e relativo, da classe trabalhadora brasileira, pois, somente com este empobrecimento pode a mais-valia do capitalista compensar a queda na taxa de lucro provocada pela substituição do trabalhador vivo pelo trabalho morto da máquina e da automação robotizada e informatizada dos novos investimentos.

O capital é uma totalidade e só a totalidade constitui o objeto de uma verdadeira ciência. Uma totalidade não homogênea. Uma totalidade fragmentada e dividida onde diferentes funções são exercidas por diferentes capitalistas: (a) a função de arrancar a coisa bruta da natureza e fornecer a matéria prima para a manufatura; (b) a função de manufaturar e dar nova forma à matéria recebida da natureza deixando-a pronta para o consumo final; (c) a função de receber o produto final que chega da fábrica através do atacado e a entrega subsequente ao varejo; (d) a função de entregar a coisa pronta para o consumidor final feita pelo varejo; (e) a função de destruir a coisa no consumo executada pelo consumidor e ponto extremo final do processo.

A função do comprador final é destruir a coisa no consumo permitindo que o processo em sua totalidade recomece na ponta extrema inicial e percorra todos os demais pontos medianos até que a coisa recaia novamente em suas mãos possibilitando, assim, que o círculo da produção, da troca e do consumo se repita incessantemente sem pausas e interrupções. Para que o processo flua regularmente sem crises é preciso dinheiro. Dinheiro real. Como mostramos naquele artigo, a máquina das trocas travou porque o extremo final não possuía mais dinheiro suficiente para dar cabo de toda a quinquilharia vendida pelas Americanas.

O calote dado pelas Americanas aos credores deveu-se ao fato de que já não possuía dinheiro vivo em mãos para resgatar as notas promissórias em mãos dos credores, notas que para os credores não possuem qualquer valor econômico e efetivo, notas que só possuem valor jurídico, e a realização final da mais-valia almejada pelos credores não pode ocorrer com dinheiro que é só dinheiro de papel, só promessa, mas com dinheiro efetivo, que agora sumiu do bolso de milhões de compradores por conta do empobrecimento destes.

Empobrecimento que as mesmas Americanas e seus sócios majoritários aplaudiram e praticaram em suas próprias empresas. A grande massa dos trabalhadores brasileiros, cerca de 70%, recebe um salário médio que não ultrapassa dois salários mínimos e meio. As próprias Americanas pagam um salário médio aos seus milhares de empregados que gira muito pouco acima de um e meio salário mínimo. Com muito esforço e cumprimento das metas suas centenas de gerentes de lojas chegam a alcançar três salários mínimos em média.

A burguesia brasileira industrial representada especialmente pela Fiesp perdeu o rumo e a condução do país, perdeu poder, clientes, negócios e influência sobre o Estado. A desindustrialização, o fechamento da Ford no país e da LG coreana em São Paulo, a retração da produção de automóveis em montadoras como Honda, Audi e Chevrolet, a financeirização, o rentismo e a primarização da economia deram lugar a novos fanáticos ligados ao primeiro setor, ao agronegócio da soja e do boi, à extração desenfreada de nossos recursos minerais enviados sem limites para financiar o desenvolvimento da China e a garimpeiros, mineradores, madeireiros, traficantes e agropecuaristas que exploram a Amazônia com uma falta de escrúpulos que choca até mesmo o jornalismo mais liberal e consciente das consequências futuras.

A crise política do movimento operário não é menor que a crise da burguesia industrial – agora em guerra pública entre diferentes facções pela direção da Fiesp. A crise política do movimento operário se arrasta desde quando se abandonou qualquer princípio de autonomia, independência e crítica em relação aos governos do país logo da ascensão do petismo ao poder.

Esse calar-se da crítica operária abriu espaço para novos sujeitos e novos discursos sem qualquer vínculo com a crítica às estruturas econômicas contraditórias do capitalismo. Esse calar-se da crítica objetiva ao sistema abriu as portas para um discurso sentimentalista que desconhece totalmente a natureza destas contradições e sua total independência em relação à moral, abriu as portas para um discurso moralista sobre os costumes da vida privada que fecha cegamente os olhos para as contradições fundamentais do sistema, contradições que agora conduzem o país, malgrado a boa vontade do novo governo que assumiu o poder executivo, para o universo pantanoso da insanidade, da irracionalidade, da esquizofrenia, da psicopatia coletiva e da barbárie pretendida pelo setor primário que explora diretamente a natureza.

*Jadir Antunes é professor de filosofia na Unioeste. Coautor, com Hector Benoit, de O problema da crise capitalista em O capital de Marx (Paco Editorial).

 

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