O centro do conflito

Imagem: Andrés Sandoval
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIZ MARQUES*

Os meios de comunicação agem como porta-vozes da narrativa orquestrada pelo Pentágono.

“O que a história pode nos dizer sobre a sociedade contemporânea?” A pergunta é de Eric Hobsbawm. Até o século XVIII, “o passado era o modelo para o presente e o futuro. Daí o significado do velho, que representava sabedoria não apenas pela experiência, mas pela memória de como eram feitas as coisas, e de como deveriam ser feitas”, frisa o historiador em Sobre a história (Companhia das Letras). Um tradicionalismo normativo servia de bússola às gerações. Prevalecia a ideia do progresso contínuo. A Revolução Industrial (1830) provocou rupturas e, em Auguste Comte, a crença de que a Sociologia e a Biologia eram as disciplinas mais importantes para a compreensão da famosa “modernidade líquida”.

A ideia do progresso linear, cara aos filósofos iluministas do oitocentos e aos positivistas do novecentos, entra em crise no século XX. A promessa de repartição da riqueza não se materializou, os ideais de igualdade de oportunidades e resultados mostraram-se vazios de significado prático, mesmo sob o invólucro mistificador da meritocracia. O choque ambiental do crescimento econômico, a qualquer custo, levou ao aquecimento do planeta e, a humanidade, à beira do precipício. Na Holanda se discute estratégias de “decrescimento” para refrear a produção. Na Alemanha, se fala em um “pós-crescimento” para que as comunidades tenham voz ativa sobre os rumos do desenvolvimento, de modo a preservar o meio ambiente e a biodiversidade das espécies. É o desafio ecológico de nosso tempo.

“Paradoxalmente, o passado continua a ser a ferramenta analítica mais útil para lidar com a mudança constante, mas em uma nova forma. Diante da realidade avassaladora da mudança, mesmo o pensamento conservador se torna historicista. A história encarna um processo de mudança direcional. O raciocínio aplica-se à formação do império russo, para explicar a re-incorporação agora da Ucrânia (Ukraina, fronteira). Havia uma Rússia de Kiev (sécs. X ao XII), antes da Rússia de Moscou (sécs. XIII ao XIV). Com o que a ocupação protagonizada estaria recolocando a Ucrânia nos trilhos do “modo de ser russo”. Lamente-se quiçá a geografia que coleciona déspotas, passando por Stalin no “socialismo real”, mas não se ignore o “espírito das leis” e as especificidades culturais da região que virou zona de guerra.

O presidente russo Vladimir Putin recupera o passado ao justificar a ofensiva territorial. Lênin e Trótski abriram mão da Ucrânia ao final da Primeira Guerra para conseguir selar os acordos de paz com os países vitoriosos, no encerramento da diatribe bélica. Na Segunda Guerra, a Ucrânia pousou no ninho da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Com o ocaso, desta, transformou-se em nação independente. Porém, sob pressão beligerante da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) nas últimas três décadas. O assédio envolve os Estados Unidos (EUA) e a União Europeia (UE) na marcha encetada sobre o Leste. O professor de Relações Internacionais (Uerj), Maurício Santoro, resume a situação: “a causa estrutural dessa guerra é a disputa entre a Rússia, EUA e a UE pela delimitação de suas esferas de influência”. Nada a ver com a causa democrática versus o despotismo.

Criada em 1949 com o objetivo de conter os tentáculos da ex-URSS na Europa ocidental, a OTAN deveria ter desaparecido com aquela. Mas sobreviveu e se revigorou, saltando de 12 para 30 países associados em plena pacificação. Iniciou tratativas com a Ucrânia e a Geórgia para que ingressassem em suas fileiras. Ameaçada, a Rússia que não foi integrada no sistema internacional da UE com a desintegração do “comunismo / soviético” (que não era, aliás, nem um nem outro) interveio na Geórgia em 2008. O Ocidente descumpriu a promessa de não assediar os países do Leste Europeu após a Guerra Fria.

George Bush estimulou países fronteiriços do Urso a entrarem na OTAN para pertencer à UE, e impor um cerco à Rússia. Putin reiterou as inúmeras reclamações de Boris Iéltsin (1991-1999), opondo-se à expansão da OTAN e à formatação de blocos fechados, arguindo as abordagens ideologizadas remanescentes de priscas eras. Como disse Winston Churchill, “americanos só fazem a coisa certa, quando esgotaram todas as outras possibilidades”. Inclusive guerras.

O imperialismo estadunidense é dependente da indústria belicista. Harry Truman, que assumiu a presidência com a morte de Roosevelt, deu continuidade à Segunda Guerra e foi responsável pelas bombas de trágica demonstração, em Hiroshima e Nagasaki. Seis anos depois, em 1951, participou da Guerra da Coreia, tendo 35,5 mil baixas. Lyndon Johnson liderou a nação no maior fracasso, a Guerra do Vietnã (1964-75), somando 60 mil baixas.

John Kennedy invadiu a Baía dos Porcos, em Cuba. Foi rechaçado pelos revolucionários cubanos. Bush “pai” legou a Guerra do Golfo (1990-91) e, para expulsar as forças iraquianas do Kuwait, mobilizou 500 mil soldados. Bush “filho” invadiu o Afeganistão (2001) e o Iraque (2003). Em resposta ao ataque de 11 de setembro de 2001, decretou a Guerra Global contra o terrorismo. Obama herdou as guerras do Afeganistão e do Iraque e prometeu a retirada gradativa das tropas invasoras. Biden, seu vice eleito, colocou no currículo imperialista a tensão que redundou na Guerra da Ucrânia. A guerra é a regra.

A ameaça de Terceira Guerra mostra a irresponsabilidade dos dirigentes das grandes potências, que não têm empatia com os jovens (na maioria, negros) nos fronts de batalha e morte. Os estertores da unipolaridade não se expressam apenas via os mercados, mas nas sirenes das insanidades pela via da destruição. É difícil imaginar um apoio efetivo, com armas e munições, para a Ucrânia. Tal implicaria em um enfrentamento direto com a Rússia, uma nação com enorme arsenal nuclear, empoderada pelo petróleo e o gasoduto.

Polônia, Eslováquia, Hungria e Romênia fazem fronteira com a Ucrânia, mas não se espere uma reação coordenada. Até o momento, somente a Polônia concordou em enviar armamentos para a Ucrânia. Alemanha e França, a ver ainda. Volodymyr Zelenski, o presidente ucraniano, elegeu-se com um discurso antipolítica e antipolíticos (na campanha eleitoral tirou fotos, de metralhadora em punho, apontando contra a sede do Parlamento), para gáudio de grupos nazifascistas. Flertava com a entrada na OTAN e o acesso ao armamento atômico. É só um peão manietado pelos verdadeiros players, do jogo. Já vimos esse filme de quinta categoria, com um bufão e camarilha fazendo arminha com a mão.

“Não é demais lembrar que no início do mês de fevereiro, portanto antes do início da incursão russa, Putin e o presidente da China, Xi Jinping, divulgaram um comunicado em que denunciavam a expansão da OTAN, que está no centro do atual conflito na Ucrânia. Os efeitos de médio e longo prazo do bloqueio ocidental podem até agravar a vulnerabilidade econômica da Rússia, mas colocam no horizonte também um possível acordo comercial amplo entre russos e chineses que pode resultar na supremacia da economia chinesa no mundo”, escreveu Aloizio Mercadante na revista Focus Brasil. O que aparentou ser fruto do voluntarismo – tudo indica que tenha sido um movimento estratégico no xadrez geopolítico estudado com muita antecedência. O comunicado anunciava uma aproximação em diversos setores, como a cooperação na Nova Rota da Seda, diplomacia, comércio exterior, combate à pandemia de Covid e a defesa de um mundo “policêntrico”. Isto é, um mundo multipolar.

Sombras espreitam o Brasil, com o aprofundamento das dificuldades econômicas e uma irrupção inflacionária. A Petrobras, desmantelada, opera com a lógica da Política de Preço de Paridade de Importação. A cadeia produtiva de petróleo e gás foi subjugada pelos interesses das empresas importadoras e dos acionistas que impõem a dolarização dos combustíveis. Apesar da autossuficiência em petróleo, com a descoberta das fabulosas reservas do Pré-Sal (“uma dádiva”, comentou-se à época), incrivelmente o país se tornou exportador de óleo cru e importador de produtos acabados, abdicando de investimentos no refino e no sistema integrado de produção, distribuição e comercialização que geram ganho e competitividade em relação a outras economias. Com o barril de petróleo acima de US$ 100 dólares, dada a valorização das commodity, se antevê o pior, o aumento da gasolina, do diesel e do gás em função da armadilha da criminosa dupla lesa-pátria, Temer e Bolsonaro.

Como se não bastasse, há o risco de impactos negativos na importação de fertilizantes da Rússia, especialmente o cloreto de potássio, produto fundamental para a fertilização do solo e indispensável à agricultura nacional. O Brasil importa 80% do que utiliza, sendo a Rússia a principal fornecedora. Isso impactará o custo de produção agrícola, pressionando o preço dos alimentos e de forma dramática a cesta básica e a inflação. O que está ruim, ficará pior.

A posição do Itamaraty sobre o conflito foi de uma platitude que não cumpre um papel de relevância no dilema de segurança que atormenta a Europa, sob o cutelo da guerra de arrasa quarteirão total. Vitória completa do irracionalismo, da louca desrazão. Em contrapartida, o posicionamento da maior liderança globalizada em atividade e com merecida credibilidade, Lula da Silva, foi reconfortante.

No entanto, cabe às correntes progressistas, a partir da sociedade civil (“o palco por excelência da luta política”, de acordo com Gramsci), o impulso que falta das ruas para que as potências que detêm armas nucleares criem juízo. Não se pode esperar que a tarefa seja cumprida pelos meios de comunicação, que agem como porta-vozes da narrativa orquestrada pelo Pentágono. Por assumir uma indecorosa vassalagem propagandista, a mídia desinforma mais do que consegue informar ao público.

Em cima dos acontecimentos, é preciso que todos e todas que participaram das edições do Fórum Social Mundial, no áureo ciclo de repercussão do movimento altermundista, retomem e insiram na ordem do dia o conceito de “imperialismo”, que não se resume ao neoliberalismo e também não se situa na nuvem abstrata de um “império”, à espera de uma “multidão” insurgente. No FSM a tônica foi o combate ao neoliberalismo. A ascensão da extrema-direita, como braço auxiliar das políticas neoliberais, trouxe à tona a luta contra o neofascismo (o bolsonarismo). Na escala local a luta é antineoliberal e antineofascista.

Não obstante, a guerra da Ucrânia desnudou a política imperialista estadunidense, jádas “guerras híbridas estampada no documentário de Oliver Stone, Ucrânia em Chamas, lançado em 2016, que segue os passos do golpe de Estado em 2014 que derrubou o presidente Viktor Yanukovych ungido pelo voto do povo em eleições limpas, em uma manobra dos EUA que deu o tapa e escondeu a mão, sem sucesso, conforme denunciou Stone. Dilma Rousseff não foi a primeira vítima das “guerras híbridas”, com a cumplicidade a soldo de ONGs, da imprensa controlada pelos banqueiros e castas institucionais de toga.

Em escala planetária, o imperialismo dos EUA se exprime através da organização militar que tem como ponta de lança a OTAN, em cotraposição à multipolaridade necessária à sociedade humana.  Na virada do milênio, vimos nascer uma mobilização de corpos e consciências, movimentos sociais e partidos políticos que elevaram o nível de entendimento sobre a dominação do capital financeiro nos hemisférios e sobre a crescente desigualdade que caracteriza o capitalismo predador na sua anticivilizacional e selvagem fase neoliberal.

Que o séc. XXI seja o marco da luta para superar o tripé baseado no neoliberalismo, no neofascismo e na beligerância da OTAN. A democratização das relações internacionais está condensada no slogan: menos OTAN, mais ONU. Pelo fortalecimento da Organização das Nações Unidas, como sublinha Lula. Trata-se de um imperativo categórico para o presente.

Atenção: sem deixar de apoiar a oposição de esquerda democrática ao Kremlin no interior da Rússia, A propósito, ver a entrevista do intelectual russo, Ilyá Budraitskis, autor de “Dissidents among Dissidents”, sobre as raízes da espiral belicista Ucrânia-Rússia e “el carácter imperial gran-ruso de la visón de Putin, que este acaba de confirmar con su extraordinario discurso del 21 de enero de 2022” (Viento Sur, traduzida da revista francesa Inprecor). Não é o que a história está nos dizendo sobre a sociedade contemporânea?

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Os espectros da filosofia russaBurlarki cultura 23/11/2024 Por ARI MARCELO SOLON: Considerações sobre o livro “Alexandre Kojève and the Specters of Russian Philosophy”, de Trevor Wilson
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido
  • Donald Trump e o sistema mundialJosé Luís Fiori 21/11/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Se houver um acordo de paz na Ucrânia, o mais provável é que ele seja ponto de partida de uma nova corrida armamentista dentro da própria Europa e entre os EUA e a Rússia
  • Balanço da esquerda no final de 2024Renato Janine Ribeiro 19/11/2024 Por RENATO JANINE RIBEIRO: A realidade impõe desde já entender que o campo da esquerda, especialmente o PT, não tem alternativa a não ser o nome de Luiz Inácio Lula da Silva para 2026
  • Mudanças no modelo de pós-graduaçãobiblioteca universidade 21/11/2024 Por ANTÔNIO DAVID: O doutorado direto não é um demérito, e doutores que realizaram o doutorado direto não são doutores pela metade
  • O veto à Venezuela nos BRICSMÁQUINAS FOTOGRÁFICAS 19/11/2024 Por GIOVANNI MESQUITA: Qual seria o maior desaforo ao imperialismo, colocar a Venezuela nos BRICS ou criar os BRICS?
  • Freud no século XXIcultura peça transversal 24/07/2024 Por GILSON IANNINI: Trecho do livro recém-lançado
  • Fissuras no campo bolsonarista — episódio 2Armando Boito 2024 22/11/2024 Por ARMANDO BOITO: A disputa entre lideranças do campo da extrema direita não deve ser vista meramente como disputa entre egos ou entre camarilhas políticas desprovidas de enraizamento social

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES