Bancarrota nos States

Imagem em domínio público. (autor desconhecido)
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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

A bancarrota poderá se transformar em risco sistêmico, ou seja, uma crise bancária em nível global?

A “bancarrota”, a ruína financeira, é uma palavra importada pelo português no século XVI do italiano banca rotta, literalmente: banco quebrado. Expressa a situação quando uma pessoa, empresa ou país não consegue pagar suas dívidas e entra em colapso financeiro.

Quando um banco entra em bancarrota, geralmente, é declarada sua falência e todos os seus ativos são vendidos para pagar as dívidas pendentes. Ela é considerada um último recurso e muitas vezes é precedida por tentativas infrutíferas de reestruturar a dívida ou renegociar os termos dos empréstimos.

A maior falência bancária nos Estados Unidos, desde a Grande Crise Financeira (GCF) de 2008, ocorreu em 10 de março de 2023, quando o Silicon Valley Bank (SVB) foi levado à liquidação judicial. Cerca de 92,5% de seus depósitos não tinham seguro, equivalente ao FGC (Fundo Garantidor de Crédito no Brasil), levando a retiradas significativas deles e resultando no colapso do banco em dois dias.

O Federal Reserve Bank respondeu à alta inflação importada e à elevação do custo unitário do trabalho pós-pandemia aumentando seguidamente a taxa de juros de referência e com isso provocou uma queda substancial no valor de mercado dos ativos de longa duração. De 07 de março de 2022 a 6 de março de 2023, a taxa dos fundos federais subiu acentuadamente de 0,08% para 4,57%, aumento esse acompanhado de aperto quantitativo da oferta de moeda.

Como consequência, ativos de longo prazo semelhantes aos mantidos em balanços bancários sofreram quedas de valor significativas durante o mesmo período. Por exemplo, o fundo negociado representativo do valor de mercado de hipotecas residenciais caiu aproximadamente 11% no período citado.

O valor de mercado das hipotecas comerciais caiu 10%. Os títulos do Tesouro de longo prazo foram particularmente afetados pelo aperto da política monetária, com os títulos do Tesouro de 10 a 20 anos e 20+ anos perdendo cerca de 25% e 30% de seu valor de mercado, respectivamente.

As perdas nos ativos dos cerca de 4.800 bancos norte-americanos exclui suas carteiras de empréstimos mantidas até o vencimento para não serem marcadas a mercado. Inclui títulos vinculados ao setor imobiliário (lastreados em hipotecas), títulos do Tesouro dos EUA e outros títulos garantidos por ativos (tipo LCI/LCA no Brasil).

Esses ativos comprometem 80% de US$ 20 trilhões de dólares em ativos bancários, segundo Jiang, Matvos, Piskorski e Seru, professores universitários e pesquisadores da NBER. Ajustando esses ativos do sistema bancário dos EUA aos seus atuais valores de mercado, indicam eles estarem US$ 2 trilhões abaixo do sugerido por seu valor contábil.

Surpreendentemente, o Silicon Valley Bank não se destacava tanto na distribuição das perdas marcadas a mercado, com cerca de 10% dos bancos apresentando piores perdas em suas carteiras. Avaliando as estruturas de financiamento dos bancos, antes do recente aperto monetário, o Silicon Valley Bank estava razoavelmente bem capitalizado do ponto de vista da alavancagem financeira, com 10% dos bancos com capital inferior ao Silicon Valley Bank, porém, ele se destacou com o uso de depósitos não garantidos.

Classificou-se o Silicon Valley Bank no 1º percentil da distribuição em alavancagem não segurada, sugerindo mais de 78% de seus ativos terem sido financiados por depósitos não segurados. Portanto, os passivos bancários do Silicon Valley Bank eram mais propensos a corridas para saques em comparação aos de outros bancos.

O leitor leigo em finanças bancárias, nessa altura, deve entender esse jargão técnico para compreender se essa bancarrota poderá se transformar em risco sistêmico, ou seja, uma crise bancária em nível global. Tentarei explicar, brevemente, essa proposição dos coautores citados: “a alavancagem não segurada (ou seja, dívida/ativos não segurados) é a chave para entender se essas perdas levarão à insolvência de alguns bancos nos Estados Unidos. Ao contrário dos depositantes segurados, os depositantes não segurados podem perder uma parte de seus depósitos se o banco falir, potencialmente, dando-lhes incentivos para uma corrida bancária”.

O primeiro conceito a conhecer é o de alavancagem financeira: o uso de dívida para aumentar o retorno sobre o investimento de uma empresa ou indivíduo. Permite investir em mais ativos lucrativos em lugar do possível com seu próprio capital. Entretanto, se os investimentos não forem bem-sucedidos, a empresa poderá ter dificuldades para arcar com as despesas financeiras e pagar a dívida.

Outro conceito-chave para o entendimento é “marcação-a-mercado” (Mark-to-Market ou MtM): a atualização diária do preço de um ativo. Com ela, o investidor tem a noção mais próxima do valor real do título e pode aproveitar as oportunidades antes do vencimento. Por ser um ajuste constante, as oscilações desse preço ocorrem para baixo ou para cima, como reflexo do cenário econômico, alterado pela decisão crucial da fixação dos juros.

Para realizar a MtM, é necessário obter os preços de mercado atualizados para cada ativo financeiro necessário de ser avaliado. No sentido de determinar o valor justo de mercado dos ativos e dos passivos, contribuem os analistas de mercado, as cotações de preço em bolsa de valores, a avaliação dos modelos de especialistas da ANBIMA etc.

Tanto os títulos de dívida pública quanto os títulos de crédito privado, como CRAs, CRIs e debêntures são marcados-a-mercado. Com isso, até carteiras de Fundos de Investimentos DI (pós-fixados), podem ter quedas em valor de suas cotas quando O Mercado fica “vendido” nesses títulos no mercado secundário, ou seja, predomina a aposta na queda do valor de mercado dos títulos já emitidos. A MtM não altera a rentabilidade contratada até o vencimento, porém, informa o preço do ativo se o depositante o resgatar antecipadamente, podendo ser positivo ou não.

Quanto a depositantes segurados, desde a década de 90, por conta da crescente preocupação das autoridades com a estabilidade do sistema financeiro, começaram a surgir, de maneira formal, os sistemas de garantia de depósito. Tornou-se uma verdadeira tendência mundial.

No Brasil, em agosto de 1995, uma resolução do Conselho Monetário Nacional (CMN) autorizou a “constituição de entidade privada, sem fins lucrativos, destinada a administrar mecanismos de proteção a titulares de créditos contra instituições financeiras”. Em novembro do mesmo ano, nasceu o Fundo Garantidor de Créditos – FGC, uma associação civil com personalidade jurídica de direito privado. Além de ser “pagador de dívidas”, surgindo em cena nas bancarrotas, o FGC conta com profissionais preparados para agir de maneira preventiva em todo o sistema bancário e financeiro.

Aqui, o valor máximo de cada pessoa, física (CPF) ou jurídica (CNPJ), contra todas as instituições associadas do mesmo conglomerado financeiro foi garantido até o valor de R$ 250.000,00, a partir de maio de 2013, para produtos bancários como os diversos depósitos e letras. Não são cobertos pela garantia ordinária os demais créditos, como os de entidades abertas de previdência complementar, de sociedades seguradoras, de sociedades de capitalização, de clubes de investimento e de fundos de investimento.

O estudo de caso do recentemente falido Silicon Valley Bank (SVB) é ilustrativo. Praticamente, 10% dos bancos tinham perdas não reconhecidas maiores se comparadas às do Silicon Valley Bank. O Silicon Valley Bank também não foi o pior banco capitalizado, com 10% dos bancos tendo uma capitalização inferior à dele.

Entretanto, o Silicon Valley Bank tinha uma parcela desproporcional de alavancagem não segurada: apenas 1% dos bancos tinham maior. Combinadas, as perdas de valor de mercado dos seus ativos com MtM e a alavancagem não segurada, isto é, carregada por depósitos sem garantia – nos Estados Unidos em US$ 250 mil –, incentivaram uma corrida por parte de depositantes não segurados aos saques preventivos antes da bancarrota.

Pior, o risco sistêmico se multiplica se as retiradas de depósitos não garantidos causarem até mesmo pequenas vendas em curto prazo de ativos com longo prazo para vencimento. Com a consequente maior queda do valor de mercado deles, substancialmente, mais bancos estarão em risco.

Em síntese, quando os bancos centrais apertam a política monetária, isso pode ter impactos negativos significativos no valor dos ativos de longo prazo, incluindo títulos do governo e hipotecas, e gerar prejuízos para os bancos. Eles costumam fazer transformação da maturidade: financiam ativos de longo prazo com juros maiores via captação de passivos em curto prazo como depósitos com esperados juros menores.

Caso as taxas de juros básicas de referência aumentem, diminui o valor dos ativos longos e encarece a captação de passivos, levando potencialmente à falência do banco por meio de dois canais amplos, mas relacionados. Primeiro, se os passivos excederem o valor de seus ativos, ele poderá se tornar insolvente. Em segundo lugar, se os depositantes sem seguro ficarem preocupados com possíveis perdas e correrem para sacar seus fundos. O efeito demonstração contamina os demais – daí a bancarrota.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Rede de apoio e enriquecimento (Disponível aqui).


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