O começo do fim da era unipolar — literatura e indústria cultural

Roy Adzak, Relevo de garrafa cortada, 1966
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Por LUIS EUSTAQUIO SOARES

Introdução do autor ao livro recém-lançado

Um esclarecimento sobre a gênese deste livro Este livro é o resultado de intensa militância analítico-crítica relativamente às versões das mídias corporativas ocidentais sobre os acontecimentos que agitaram a humanidade, considerando o período do fim do segundo mandato de George Bush, o início e quase fim da época em que o hegemon unipolar, com Barack Obama, tentou por todos os meios impor-se contra os povos e a humanidade.

É constituído de artigos que foram publicados no site Observatório da imprensa, entre 2007 a 2015, escritos a partir de uma perspectiva transdisciplinar, tendo a produção literária ficcional nacional e internacional como referência, sobretudo considerando obras como Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, Os sertões (1902), de Euclides da Cunha, Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos. Grande Sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa, O processo (1925), de Franz Kafka e Os irmãos Karamazov de Fiódor Dostoiévski.

O período referido é de uma importância única, porque, em face da tentativa do hegemon estadunidense de impor-se por todos os meios, e de modo unipolar, com guerras de saqueio e golpes de Estado, com revoluções coloridas, como as cinicamente chamadas Primaveras Árabes, observou-se ao mesmo tempo e em processo dialético a emergência da perspectiva multipolar, com a vanguarda de China e de Rússia.

É, pois, um livro que é fruto de uma militância em tempo real, criticamente concentrada contra a manipulação do sistema midiático a serviço da dominação ocidental-norte-americana, considerando sobretudo a sua dimensão oligopólica brasileira, ventríloqua do sistema imperialista lastreado no dollar supremacy.

É também um período de articulação dos golpes de Estado jurídico-midiáticos da era Obama na América Latina, iniciado em Honduras em 2009, passando por Paraguai em 2012, até chegar ao Brasil, com a caída de Dilma Rousseff em 2016, facilitada pela revolução colorida das jornadas de junho de 2013, até hoje romantizadas pelas esquerdas brasileiras, inscientes e culturalmente referenciadas em Estados Unidos, culminando com a midiatização da Operação Lava Jato e a consequente prisão de Lula — com Obama no fundo, cinicamente, sussurrando: “This is the guy!

Há uma carta de Friedrich Engels, remetida à escritora inglesa Miss Harkness, datada de 1888, com a seguinte observação sobre a grande obra literária do realismo estético: “supõe, além da exatidão dos pormenores, a representação exata dos caracteres típicos em circunstâncias típicas (ENGELS, 1971,196). Sem a pretensão que este seja um “grande livro teórico”, ainda assim a decisão de publicá-lo advém da necessidade (espero que não apenas a do autor) de tornar público um olhar histórico-materialista sobre os acontecimentos, suas versões plasmadas pelas corporações midiáticas, com foco nos “caracteres (pessoas públicas, personagens de ficção) típicos das circunstâncias histórico-sociais típicas, seja da (epigonal) arrogância unipolar de EUA, seja do início de seu fim, com os primeiros esboços de respostas alternativas protagonizadas pelas principais lideranças do emergente mundo multipolar, incluindo o contexto latino-americano, com a formação de ALBA, Aliança Bolivariana para os povos de Nossa América, CELAC, Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos e UNASUL, União de Nações Sul-Americanas.

São, assim, textos circunstanciais… que foram escritos com o princípio de esperança imanente, materialista e secular, baseado dialeticamente na negação radical do existente, rumo a uma paradoxal síntese aberta ao plurissocialismo dos povos.

E por falar em esclarecimento, o do sistema imperialista norte-americano é…

O argumento de que um texto, qualquer que seja, é sempre constituído por um mosaico de vozes explicitadas e ocultas, sem que muitas vezes possamos saber se aquelas são mais relevantes que estas, constitui (mas nunca apenas) um pretexto para reconhecer a importância de duas obras para este livro, a saber: Cultura e imperialismo (2011), de Edward Said (1935-2003), e Dialética do esclarecimento (1985), de Theodor Adorno e Max Horkheimer.

A primeira delas, Cultura e imperialismo, constitui uma ausente presença que motivou de uma forma ou de outra a escrita de todos os textos desta coletânea, uma vez que em todos eles a relação entre cultura e imperialismo se inscreve como fundamental para a produção de análises críticas sobre os artefatos culturais e informativos tais como obras literárias, cinematográficas, telejornais, telenovelas, programas de auditório, assim como fatos relevantes do contemporâneo, como as “rebeliões populares” no Brasil e no Oriente Médio, no período de referência acima explicitado. Se o que habitualmente é chamado de subjetividade pode ser interpretado como uma metonímia encarnada (a parte pelo todo) da cultura de uma dada época, no capitalismo mundial integrado, que igualmente produz mercadorias mundialmente conectadas, a indústria cultural constitui uma espécie de holding das subjetividades humanas meticulosamente administrado pelo imperialismo, nesse caso, o norte-americano — esse hegemon em decadência.

Seu objetivo colonizador é um só: a produção de artefatos culturais que funcionem como verdadeiro cavalo de Troia muito especialmente para os condenados da Terra da atualidade, para fazer uma referência ao livro homônimo de Franz Fanon, Os condenados da Terra (1961), no qual o autor de Pele negra, máscaras brancas (1952) produziu argumentos precisos para demonstrar alguns efeitos trágicos, inclusive psiquiátricos, da empreitada imperialista sobre os povos do mundo, condenados implacavelmente ao abandono, à fome, ao desespero e à morte, sob a forma, também de genocídio.

Se o imperialismo constitui o momento em que a expansão colonizadora dos centros de poder adquire uma dimensão sistêmica, é previsível, portanto, que tal expansão ocorra como espectro completo, ocupando, explorando e colonizando não apenas recursos primários, mas também artefatos culturais, conhecimentos, alteridades de gênero, étnicas, de classe, além de desejos, inclusive os de emancipação e de justiça, não sendo circunstancial, para este livro, a sua convergência com a proposta de uso do conceito de imperialismo elaborada por Said, que assim se expressou a respeito: “Usarei o termo imperialismo para designar a prática, a teoria e as atitudes de um centro metropolitano dominante governando um território distante; o colonialismo, quase sempre uma consequência do imperialismo, é a implantação de colônias em territórios distantes” (SAID, 2011, p. 42).

Outra obra fundamental para este livro é Dialética do esclarecimento (1985), de Adorno e Horkheimer, através da qual o conceito de esclarecimento é desenvolvido a partir do argumento de que, ao longo de sua história, a humanidade tem produzido saberes senhoriais comprometidos com a submissão da natureza (trabalho não pago) e da classe trabalhadora por meio de diversas formas de exploração, escravista, feudal, capitalista. Ambos, natureza e classe trabalhadora, são esclarecidos pelo progresso que pode ser definido como progresso do esclarecimento oligárquico sobre a natureza e o trabalho.

Ambos, natureza e trabalho, na era do esclarecimento da civilização burguesa ou desta como uma forma monumental de esclarecimento, estão vulneráveis a um mesmo letal risco: o avanço total do esclarecimento do capital ou do capital como esclarecimento por toda a Terra.

Tendo em vista a força avassaladora do esclarecimento do e no capital na era da reprodutibilidade do utopismo tecnológico e no contexto em que as multinacionais e o sistema financeiro internacional submetem a indústria cultural e a política institucional, igualmente em dimensão planetária, Adorno e Horkheimer assim definiram o lugar de resistência e alternativa do pensamento, valendo também para a criação: “Contrariamente a seus administradores (do esclarecimento), a filosofia representa, entre outras coisas, o pensamento, na medida em que este não capitula diante da divisão de trabalho dominante e não aceita que esta lhe prescreva suas tarefas” (ADORNO & HORKEHEIMER, 1985, p227).

Se o esclarecimento hoje a si mesmo se administra através da divisão internacional do trabalho e dos saberes, segmentando e capturando a tudo e a todos através da falsa universalidade da abstração monetária, a obra Dialética do esclarecimento, de Adorno e Horkeheimer, constitui o discurso indireto dos ensaios deste livro em sua dimensão metodológica porque a questão de método aqui presente é: não capitular perante a divisão internacional de trabalho dominante e não permitir que esta prescreva as tarefas para o pensamento, para a crítica e para a práxis.

E é por causa disso também que é necessário materialismo histórico e dialética sempre; a dialética da unidade da contradição, da transformação da quantidade em qualidade e da negação da negação, o que significa, negar o esclarecimento nos termos de Adorno e Horkeheimer, dotando-o de uma dimensão qualitativa, na unidade da contradição da fase imperialista ( norte-americana) do capital.

Com isso o que se quer dizer é que é preciso puxar outro fio da categoria do esclarecimento, que começou com Immanuel Kant, no pequeno ensaio “O que é o esclarecimento”, datado de 1783, texto que é uma referência fundamental da tradição teórica marxiana por assim se posicionar: “Esclarecimento [aufklärung] é a saída do homem da menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo” (KANT, 1985, p. 100).

Visualiza-se, assim, outra tradição teórica no que diz respeito à categoria do esclarecimento, diversa em tudo da de Adorno e Horkheimer, porque não está referendada na relação (cara a Michel Foucault) entre saber e poder, saber e poder sobre, mas na dimensão do saber/ liberação, do saber/emancipação.

Há, assim, dois tipos de esclarecimento, razão por que necessitam ser igualmente esclarecidos. O da Dialética do esclarecimento é o do saber dominação simultânea sobre a natureza e a classe trabalhadora; o de Kant é o saber/emancipação que, com o marxismo, transforma-se em saber/emancipação da classe trabalhadora e assim da natureza, com a constituição da sociedade socialista, processo imanente para a consecução da sociedade dos produtores livremente associados; a do comunismo.

A categoria de esclarecimento de Adorno e Horkheimer necessita, assim, ser objetivada, sobretudo no que diz respeito à história do Ocidente, de tradição oligárquica, assentada na apropriação privada da terra, da família e do Estado. Trata-se de uma versão de esclarecimento que é indissociável da dominação oligárquica ocidental e que no modo de produção capitalista desemboca no saber/ poder dos donos do capital contra a classe operária e contra a natureza; e na fase imperialista norte-americana diz respeito ao saber/poder da indústria cultural (que é teórica, que é econômica, que é estética, que é biopolítica, que é política, que é tecnológica) senhorialmente esclarecendo-se com objetivo de dominar e submeter mais e mais a natureza e o processo geral do trabalho social.

Em diálogo com o discurso indireto conjunto, o que vem primeiro, de Imperialismo e cultura, de Edward Said, e Dialética do esclarecimento, de Adorno e Horkheimer, as duas linhas de força deste livro são a indisciplina em relação à disciplina das e nas unidades discursivas, como questão de método, e a investigação incessante da relação entre cultura e imperialismo, no horizonte da indústria cultural, como questão temática sem a qual, esse é o principal argumento, não é possível pensar o desafio de uma humanidade realmente protagonista de seu destino, esclarecendo-se não mais de forma senhorial, mas por meio de um profundo respeito ao que lhe dignifica; o trabalho coletivo, pensado e gestado no duplo aspecto do trabalho humano e do trabalho da natureza.

 Se o termo imperialismo não aparece nos títulos dos capítulos deste livro a razão é simples e se inscreve no seguinte argumento: a indústria cultural, rendida ao poder econômico-financeiro, é, para dialogar com uma conhecida obra de Fredric Jameson (1991), a lógica cultural do imperialismo da e na civilização burguesa, constituindo-se como linha de frente de uma espetacular empresa mundial de subjetividades esclarecidas, tanto mais subjugadas quanto mais se veem como livres dentro da ordem dominante da divisão social do trabalho, que é também a dominada ordem do que pode ser chamado de divisão social de subjetividades esclarecendo-se, esclarecidas.

A civilização burguesa não produz apenas mercadorias em escala mundial, mas também nos transforma em mercadorias na medida em que nos afirmamos como subjetividades de gênero, étnica, de classe, sempre e quando aceitamos as tarefas prescritas pela divisão social do trabalho dominante, cuja principal palavra de ordem é: mais divisão, o que ocorre inevitavelmente no horizonte da afirmação segmentada de si fora de uma radical consciência laica da vida em sociedade, pois qualquer afirmação de si que não esteja desafiada a transcender a civilização burguesa, entendendo-a igualmente como histórica (não natural e não necessária, portanto) torna-se inevitavelmente vulnerável ao abraço totalizador e senhorial do imperialismo, sobretudo em sua fase atual, a da edição e reedição (máquina integral de fake news) de tudo que existe, inclusive no plano molecular e genético, tendo em vista as forças produtivas esclarecedoras ( no sentido de Adorno e Horkheimer) da Inteligência Artificial e das ciências biológicas e físicas, no âmbito da biogenética e da nanotecnologia.

A forma específica de esclarecimento da indústria cultural do imperialismo norte-americano, em si mesma forma-esclarecida e se esclarecendo, sem cessar (no sentido de saber senhorial) é a que recebe o nome genérico de cultura de massa, que captura e incorpora tendencialmente a tudo, em processo, inclusive as esquerdas, o identitarismo feminista, negro, homoafetivo, a crise ecológica, com o nome hoje de cultura woke, manipulada pelo Partido Democrata estadunidense e pelo Fórum Econômico Mundial.

As Novas Tecnologias de Informação e Comunicação do Vale do Silício, a chamada GAFA (Google, Amazon, Facebook, Apple) podem ser interpretadas, nesse contexto, como novos suportes de edição sem fim da cultura de massa, aumentando em escala infinitesimal a produção de mentiras e de manipulação em relação à classe trabalhadora e à natureza.

A humanidade inteira se torna cada vez mais parecida consigo mesma como forma de compensar a intensa concentração de riquezas de um lado e a imensa miséria da esmagadora maioria, de outro. Este é, pois, o papel da indústria cultural (com o Vale do Silício na vanguarda): tornar-nos todos parecidos uns com os outros, num contexto de extrema desigualdade planetária. A maioria esmagadora gostando dos mesmos filmes, das mesmas músicas, dos mesmos livros, das mesmas danças, das mesmas narrativas, ainda que os gêneros nos sejam apresentados qualitativamente como diferentes, ainda que diferentes mercadorias culturais sejam direcionadas para diferentes perfis de pessoas, em contextos nos quais algumas tendem a se achar mais bem informadas, mais inteligentes, mais requintadas, mais seletivas que as demais.

Não obstante, pois, o “ainda que” das diferenças, que efetivamente existem, o que está em jogo, na produção das mercadorias da indústria cultural, desdobra-se em duas variáveis: (i) A variável da divisão internacional dos bens culturais, segmentando gostos, ideologias e perfis como o lugar imanente da atuação do esclarecimento no contemporâneo, pela singela razão de que a segmentação, por mais que sejamos orgulhosos de nossas diferenças em relação às maiorias, é ela mesma uma forma-mercadoria que, como tal, tende a universalizar ( sempre uma falsa universalização) os valores típicos da sociedade burguesa, sua dominante ordem ou desordem.

(ii) A variável que generaliza a miniaturização dos artefatos culturais como forma de deslocamento e mesmo de censura em relação às obras de criação que afirmem outros mundos possíveis, fora da civilização burguesa e, portanto, da dinâmica esclarecida de sua divisão social de trabalho dominante.

 O aspecto mais evidente da miniaturização dos artefatos de criação produzidos pela indústria cultural, e aqui dialogo com Terry Eagleton (2005), diz respeito à sua redução ao campo dos direitos civis, entendidos ainda no âmbito do neoliberalismo estadunidense. A miniaturização/reificação dos artefatos culturais sob signo da expressão civil de gênero, étnica, etária, comportamental e mesmo de classe (categoria que tende a estetizar-se como reificado direito civil) tem como deplorável consequência uma censura inaceitável, embora nunca declarada abertamente, aos direitos econômicos e sociais, os quais, a rigor, só aparecem como matéria de criação se forem igualmente reificados e estetizados; se forem, enfim, capturados pela dominância liberal dos direitos civis, protagonizada pela ocidentalização americana do planeta, de tal maneira a não ser tão absurdo afirmar que os Estados Unidos têm sido o epicentro sísmico do esclarecimento imperialista da e na indústria cultural.

E é precisamente diante desse projeto mundial de ocidentalização americana do planeta que é possível encontrar a brecha necessária para retomar a discussão sobre o enfoque de crítica integral ao imperialismo assumido por este livro.

A propósito, ao ler o livro La ley del valor mundializada, de Samir Amin, o que se observa como regra é que o sistema imperialista estadunidense extrai a renda do trabalho ( inclui sempre o da natureza escravizada) em escala planetária, razão pela qual seja possível deduzir que a luta de classes principal da atualidade ocorra no plano da relação entre imperialismo e soberania nacional-popular. Não há, pois, saída para o pensamento e para os projetos políticos como o Brics +, por exemplo, se não for levada em conta a seguinte realidade literalmente em terreno: o capitalismo realmente existente é a imagem e semelhança do esclarecimento da indústria cultural norte-americana, razão pela qual a luta pela emancipação dos povos em relação à ditadura mundial unipolar ocidental-ianque passa necessariamente pelo campo da cultura e especialmente da indústria cultural, epicentro de produção de estilos de vida e de subjetividades, no plano da vida concreta.

Entretanto, a questão do imperialismo, nos ensaios deste livro, não se reduz ao imperialismo americano-ocidental. Como poderosas forças bélicas que disputam o controle dos recursos humanos e naturais do planeta, o imperialismo pode ser igualmente definido como a fase superior do esclarecimento, quando este alcança todas as dimensões da vida na Terra, razão suficiente para sustentar o argumento de que o esclarecimento não apenas seja a própria civilização burguesa mundial como também o conjunto das forças em ação no terreno-mundo, das mais poderosas às mais cotidianas e imanentes, vividas por todos nós, por exemplo, nas aparentemente inocentes relações de compra e venda como unidade mínima do capitalismo, logo do próprio imperialismo, na sua fase final, norte-americana, mundial.

Essa leitura, no entanto, não pode servir para a produção de generalidades niilistas do tipo: “Bom, se é assim, se o imperialismo somos nós, então não há nada a fazer porque qualquer coisa que venhamos a propor ou a pensar, que saia dessa evidência, é autoritarismo, simplismo, anacronismo.” Sempre na contramão do niilismo, como adaptação ao que existe, os ensaios aqui presentes estão marcados por uma perspectiva afirmativamente histórica, razão pela qual partem do argumento de que as forças humanas e não humanas ( animais, vegetais, minerais, energéticas, tecnológicas, científicas, epistemológicas, laborais, teóricas, culturais), não obstante terem sido capturadas pela ininterrupta produção civilizacional do esclarecimento, são igualmente históricas, razão pela qual podem assumir ou protagonizar perspectivas coletivas, liberadoras, não senhoriais.

Por outro lado, se o imperialismo pode ser definido como o pragmático administrador mundial das forças locais, regionais e internacionais a serviço do esclarecimento da e na civilização burguesa, seus principais atores financeiros, ideológicos, geográficos não são nem unidimensionais nem consensuais nem substancialmente iguais. Existem atores mais agressivos, ou mesmo mais genocidas que outros.

Se se observa o mundo atual, não é difícil constatar, por razões estatísticas evidentes, que seu lado ocidental, europeu-americano, esteve e está, de modo ativo, presente em praticamente todas as guerras e conflitos das últimas décadas, senão dos últimos séculos. Com centenas e talvez milhares de bases militares em pontos geoestratégicos do planeta, não seria inexato afirmar que os Estados Unidos invadiram o mundo, sem contar o lado tecnológico-comunicativo dessa invasão, cuja onipresença virtual-eletrônica nos foi heroicamente (sempre parcialmente) revelada, recentemente, pelo terceirizado ex-agente da CIA, Edward Snowden.

Embora seja evidente que não aja santo no campo da espionagem tecnológica e que este seja igualmente um novo cenário de guerra ou de disputas táticas e estratégicas entre as grandes potências do sistema imperialista mundial, não é insensato afirmar que, nesse particular, os Estados Unidos ocupem uma posição quase que unipolar, não sendo circunstancial, a propósito, que a Internet tenha sido criada militarmente, para uso militar, pelos militares americanos.

Como líder, por exemplo, do Clube dos cinco olhos, composto por Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia, Canadá, os Estados Unidos estão na vanguarda de um molecular e ao mesmo tempo monumental processo de esclarecimento panóptico de toda a humanidade, ao arquivarem praticamente todas as comunicações eletrônicas do mundo, classificando-as ideológica, comercial e belicamente.

Se, por outro lado, os ensaios aqui presentes têm como interlocutor crítico, no que diz respeito ao imperialismo, a sua versão ocidental-americana, o motivo principal é tático e tem o seguinte horizonte de referência estratégica: no interior da civilização burguesa, um mundo multipolar é melhor que unipolar, pois possibilita não apenas a emergência de contradições no interior do sistema-mundo, como também (porque é a história em movimento) o surgimento de forças não imperialistas, com tendências explicitamente pós-capitalistas, como ocorre, por exemplo, com a Aliança Bolivariana para as Américas, ALBA, bloco de países (composto por Venezuela, Equador, Bolívia, Cuba, Nicarágua, Dominica, São Vicente e Granadinas) cujo objetivo é o bem-estar social de suas respectivas populações, priorizando, para tal, um intercâmbio solidário de recursos energéticos, educacionais, medicinais, culturais, a fim de, no conjunto, compensar ou equacionar as carências e déficits naturais e históricos das realidades nacionais isoladas.

Por tudo isso, porque têm a indústria cultural como objeto de análise crítica, porque foram escritos com o objetivo de desconstruir a metafísica da presença a si da técnica em nossas vidas, os ensaios aqui presentes porão em questão, de muitas e diversas formas, em diálogo com Jacques Derrida de A farmácia de Platão, a “Unidade da metafísica, da técnica, do binarismo ordenador. Esse domínio filosófico e dialético dos phármaka que deveria se transmitir de pai legítimo para filho bem-nascido, uma cena de família o coloca sem cessar em questão, constituindo e fissurando ao mesmo tempo a passagem que religa a farmácia à casa. O platonismo é ao mesmo tempo a repetição geral desta cena de família e o esforço o mais potente para dominá-la, para abafar seu ruído, para dissimulá-la baixando as cortinas na manhã do Ocidente (DERRIDA, 2005, p.121)”.

Adaptando o trecho acima de A farmácia de Platão, da filosofia para os meios de comunicação de massa (incluindo os do Vale do Silício), a militância dos textos deste livro tem relação com um esforço analítico para descrever o modo pelo qual a unidade da técnica da indústria cultural se transmite de “pai legítimo para os filhos bem-nascidos” da sociedade brasileira, num contexto em que aquele, o pai legítimo, pode ser traduzido como o colonizador de plantão, e estes, os filhos bem-nascidos, como os guardiões das tarefas prescritas pelo pai, a saber: abafar, via indústria cultural, os ruídos de esperança, de justiça, de criação, de liberdade dos povos do Brasil, da América Latina e do mundo, baixando as cortinas daquilo que no Ocidente, antes de ser colonização, esclarecimento, dominação, sempre foi e é amanhã, promessa de um mundo laico, em igualdade, em liberdade, em fraternidade — promessa não apenas abortada mas também “esclarecida” para melhor enganar, iludir, submeter.

Os capítulos

No primeiro capítulo, a interface com a literatura, neste livro, ocorreu como experimentação do conceito de literaturas pós-autônomas, desenvolvido por Josefina Ludmer nos seguintes termos: “As literaturas pós-autônomas do presente sairiam da “literatura”, atravessariam a fronteira e entrariam em um meio (uma matéria) real-virtual, sem exterior, que é a imaginação pública; em tudo o que se produz e circula e nos invade e é social e privado e público e real.

Ou seja, entrariam em um tipo de matéria e um tipo de trabalho social, onde não há “índice de realidade” ou de “ficção”, construindo presente. Entrariam na fábrica de realidade, que é a imaginação pública, para narrar algumas histórias cotidianas em alguma ilha urbana latino-americana” (LUDMER, 2013, p.133). Buscando dialetizar literariamente a manipulação da imaginação pública realizada pelo sistema midiático ocidental-norte-americano, os textos do Primeiro Capítulo, foram escolhidos com o objetivo de mostrar como a indústria cultural brasileira, em sua versão televisiva, usa sua unidade/convergência técnica com o sistema imperialista, a fim de contribuir decididamente para a domesticação esclarecida da imaginação pública brasileira, latino-americana, mundial.

No segundo capítulo, “Sociedade do controle integrado, revoluções capturadas”, sempre de forma militante, os ensaios aqui apresentados analisam as manifestações de rua que ocorreram no Brasil durante e antes as Copa das Confederações e também no Oriente Médio, tendo em vista o argumento de que o imperialismo ocidental-americano chegou a um grau tão grande de sofisticação técnica e de plasticidade colonizadora que nem mesmo as manifestações de rua ou mesmo a ideia de revolução escapam de sua dinâmica de e para o esclarecimento senhorial.

Embora na contramão de setores da esquerda nacional e internacional, a questão fundamental dos ensaios do segundo capítulo é simples e se inscreve na seguinte pergunta: se chegamos à época do esclarecimento senhorial sobre as manifestações de rua e, portanto, sobre as revoluções, como, contra todo niilismo, fazer-se revolucionário, nas ruas e fora delas, sem correr o risco de se tornar, mesmo que não o saiba e não o deseje, objeto de manipulação de forças que não ousam mostrar a cara, quer porque detêm informações que não temos, quer porque, através da indústria cultural, procuram transformar o mundo em uma fábrica da realidade de sua implacável dominação?

Por sua vez, embora em contexto diverso, considerando o que Josefina Ludmer chamou de fábrica de realidade, o objetivo geral dos textos presentes no terceiro capítulo, Telenovelas e Indústria cultural, é o de mostrar como a teledramaturgia produzida pela TV Globo procura, via ficção, reescrever a história do Brasil, a partir do ponto de vista senhorial de nossas classes dominantes, estabelecendo, como fábrica de realidades, o perfil “esclarecido” da população pobre brasileira e sua relação com a oligarquia que secularmente as domina e as inviabiliza.

Afinadas com os recursos técnicos e temáticos mais sofisticados da indústria cultural do Ocidente, as telenovelas da TV Globo, inclusive assumindo o lugar da literatura escrita, procuram cumprir o seguinte papel (tão civilizatório quanto aquele que os portugueses acreditavam cumprir quando começaram colonizar o Brasil): “modernizar” a população brasileira a fim de adaptá-la ao imaginário de consumo financiado pelas multinacionais que dominam o planeta. O objetivo, para tal, é um só: tornar-nos contemporâneos dos novos investimentos mercadológicos das corporações planetárias, que cada vez mais avançam na divisão internacional de perfis de consumidores, incorporando alteridades negras, indígenas, femininas, homoeróticas.

Se, por um lado, esse empreendimento “modernizador” tem contribuído para diminuir preconceitos étnicos e de gênero, por outro lado, “esclarece” as forças de emancipação, que são as alteridades, adaptando-as à ordem dominante como se fora todo um mundo necessário, unidimensional, além de funcionar como uma publicidade da dominação planetária do capital, ao esconder seu lado genocida antes de tudo em relação às alteridades, cada vez mais dizimadas pelo planeta afora.

*Luis Eustáquio Soares é professor titular do Departamento de Letras da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Autor, entre outros livros, de A sociedade do controle integrado (Edufes).

Referência


Luis Eustaquio Soares. O começo do fim da era unipolar: literatura e indústria cultural. Alegrete. Editora TerriED, 2024, 236 págs. Disponível aqui.


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