Por VALERIO ARCARY*
A esquerda não pode cometer o erro de subestimação do papel do movimento estudantil
“La juventud tiene la fuerza y la vejez la prudencia. En los ojos del joven arde la llama, en los del viejo brilla la luz” (Ditado popular dos povos de Espanha).
Acabou de se realizar um Congresso da UNE muito vitorioso. Foi o primeiro depois de 2019. Não foi notícia nos meios de comunicação, a não ser pela repercussão do discurso do ministro e Luís Roberto Barroso e, o que é bizarro, em menor escala, pela presença de Lula. O Congresso da UNE foi um evento grandioso, até imponente. Teve festa, alegria, entusiasmo, até momentos de excessos de paixão nas polêmicas e disputas de espaço, mas, sobretudo, muito compromisso com a luta.
A esquerda não pode cometer o erro de subestimação do papel do movimento estudantil. O ambiente estudantil é grandiloquente e retórico, muito irreverente, às vezes, debochado, quase sempre muito sectário, mas deve ser levado a sério.Algo próximo a dez mil ativistas jovens, em diferentes graus de experiência e amadurecimento, vieram de todo país, e estiveram em Brasília durante quatro dias para uma intensa vivência. Ninguém sai de um Congresso da UNE do jeito que entrou. A militância no movimento estudantil é uma das vias de passagem para a vida adulta na esquerda, uma escola de vida, e o Congresso da UNE um curso intensivo.
Foi sempre um terreno e um palco para a seleção de quadros da próxima geração da esquerda. A imensa maioria do ativismo está concentrado nas Universidades públicas, por variadas razões objetivas. Em muitas privadas, onde está a imensa maioria das matrículas no ensino superior, não há, ainda hoje, plenas liberdades democráticas para a organização de movimento estudantil. Os donos das faculdades particulares não deixam que haja movimento estudantil porque ele chocaria com o conflito principal que é a crônica inadimplência dos alunos. Mas isso não diminui a representatividade política do Congresso da UNE.
O movimento estudantil cumpriu sempre um papel destacado na luta social no Brasil. Em 1968 encabeçou a passeata dos Cem Mil no Rio de Janeiro. O protagonismo foi central, entre 1977 e 1984, na fase final da luta contra a ditadura. Voltaram às ruas em 1992 liderando as mobilizações do Fora Collor. A UNE esteve presente na luta contra o golpe institucional que derrubou o governo Dilma Rousseff. Em 2019, no início do mandato de Jair Bolsonaro fizeram o Tsunami da educação, derrubaram um ministro, e sinalizaram que haveria resistência de massas. Ou seja, a UNE pode se orgulhar de ter lutado os bons combates. Os estudantes são a centelha, a chispa, a faísca das grandes mobilizações, porque ocupam o papel de uma vanguarda ideológica na luta popular.
Mas este Congresso da UNE foi, também, importante porque o movimento estudantil está hoje unificado, apesar da feroz luta de ideias e rivalidade entre tendências. Esta unidade foi uma construção política bem sucedida e se explica por variados fatores. Mas não pode ser diminuído o fato de que a UNE é um espaço democrático e, excepcionalmente, elege sua direção respeitando a proporcionalidade. A unidade da UNE como entidade nacional de representação estudantil contrasta com a situação que ainda prevalece em outros movimentos sociais.
O movimento sindical está enfraquecido e muito dividido, com a existência de mais de meia dúzia de Centrais Sindicais, em graus muito diferentes de representatividade, porém, fraturado. Os movimentos populares, de mulheres, negros, LGBTQI’s e outros, como na cultura, direitos humanos, se articulam através de muitas iniciativas locais, regionais, e pluralidade de coletivos nacionais. Alguns são mais orgânicos, como o papel do MST na luta pela reforma agrária, ou da APIB na luta indígena. Mas a UNE é um espaço onde hoje se constrói uma frente única que incorpora todas as entidades estudantis, e todas as correntes políticas estão presentes.
Na mídia o Congresso da UNE foi o discurso de Luís Roberto Barroso. A fúria da mídia comercial, dominada pela fração burguesa liberal, contra o ministro do STF, porque denunciou o bolsonarismo como uma corrente autoritária que defende a censura, e até a tortura, não devia nos surpreender. Um dos traços da conjuntura é a operação política que pretende normalizar a extrema direita como um movimento legítimo nos marcos do regime. Estão preocupados que as prováveis condenações de Jair Bolsonaro tenham como desfecho sua prisão.
Mas o Congresso da UNE foi muito mais. A principal decisão do Congresso da UNE foi a afirmação da sua independência diante do governo Lula 3. Isso significa que a UNE tem uma agenda própria, tem autonomia diante de um governo de coalizão que incorpora frações capitalistas, e uma plataforma de reivindicações que responde, em primeiro lugar, aos interesses dos estudantes. Ao mesmo tempo a UNE não é neutra na grande disputa que permanece em aberto e fratura a sociedade. A UNE reafirmou seu lugar na luta contra o neofascismo no Brasil. Essa localização é distinta daquela que a UNE teve entre 2003 e 2015, quando sucumbiu às pressões governistas, perdeu capacidade de impulsionar mobilizações, e se dividiu.
O destino do papel da UNE está, todavia, em disputa, evidentemente. As pressões de adesão governista não poderão ser subestimadas. Mas é animador saber que a UNE permanecerá na luta pela revogação da reforma do ensino médio. As votações aprovadas permitem alimentar a expectativa de que a UNE poderá ser uma ferramenta de luta útil à luta pela defesa do ensino público contra a expansão do ensino particular.
Existiram, politicamente, três campos no Congresso da UNE, embora tenham sido apresentadas sete chapas para a direção. Os três campos têm pesos bem diferentes. O maior se expressou através da chapa 7 liderada pela UJS (vinculada ao PCdB), a maior tendência desde o final dos anos 1970, e uniu, pela ordem de importância, o Levante Popular da Juventude, relacionado com o MST, os estudantes da corrente majoritária do PT, a CNB, a Quizomba, articulada por militantes da Democracia Socialista do PT, o PDT, e o PSB e teve 4716 votos, uma ampla maioria absoluta. Este campo tem correspondência com a defesa da estratégia lulista.
O segundo campo se apresentou pela chapa 6 reuniu, também pela ordem, a Correnteza, vinculada à UP (Unidade Popular), a UJC (ligada ao PCB), o MES, o Alicerce, a APS nova era, tendências internas que se situam em minoria no PSol, e o grupo Rebelião, que expressa o PSTU, e teve 1005 votos. Este segundo campo se posiciona, em diferentes sensibilidades, como oposição de esquerda ao governo Lula.
O terceiro se expressou dividido em duas chapas: a Chapa 5, liderada pela Juventude Sem Medo, que une as tendências Afronte, Rua, Manifesto e Fogo no Pavio, que mantém relações com as correntes Resistência, Insurgência, Primavera e Revolução solidária no campo majoritário do PSol, e o grupo Quilombo da EPS, tendência interna do PT e conquistou 371 votos, e a chapa 4 (MPJ, JAE, MS e Avante, correntes interna da esquerda do PT, e teve 167 votos: embora divididas compartilhavam no tema político central avaliações próximas, porque criticavam tanto os que se alinham com o governo, como aqueles que se opõem ao governo, incondicionalmente. Se engajaram na defesa da autonomia da UNE para a mobilização social, e construção de uma Frente Única de Esquerda contra os fascistas.
A UNE voltou e fez bonito. Viva a UNE!
*Valerio Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo).
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