O desenvolvimento do capitalismo na Rússia

Alexandre Calder, Sol preto, 1953
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por VLADÍMIR ILITCH LÊNIN*

Dois prefácios do autor

Prefácio à primeira edição

Neste trabalho, o autor se propôs examinar a questão: como se formou o mercado interno para o capitalismo russo? Sabe-se que esse ponto já foi levantado há muito tempo pelos principais representantes das concepções populistas (naródniki), e nossa tarefa consistirá em criticar essas concepções. Não considerávamos possível limitar essa crítica à análise de erros e incorreções nas perspectivas dos adversários; pareceu-nos insuficiente para responder à questão trazer fatos que tratam da formação e do crescimento do mercado interno, pois se poderia argumentar que tais fatos foram escolhidos de maneira arbitrária e que foram omitidos aqueles que dizem o contrário.

Pareceu-nos fundamental examinar e tentar representar todo o processo do desenvolvimento do capitalismo na Rússia em conjunto. É evidente que uma tarefa tão ampla estaria acima das forças de um só indivíduo caso não se colocasse uma série de limitações. Em primeiro lugar, como se pode ver já no título, tomamos a questão do desenvolvimento do capitalismo na Rússia exclusivamente do ponto de vista do mercado interno, deixando de lado a questão do mercado externo e os dados sobre o comércio exterior. Em segundo lugar, limitamo-nos à época pós-reforma.

Em terceiro lugar, tomamos principal e quase exclusivamente os dados das províncias internas puramente russas. Em quarto lugar, limitamo-nos ao aspecto econômico do processo. Mas, apesar de todas as limitações apontadas, o tema permanece amplo demais. O autor não esconde de modo algum a dificuldade e até o perigo de abordar um assunto tão vasto, mas pareceu-lhe que, para examinar a questão do mercado interno para o capitalismo russo, era fundamental mostrar as conexões e a interdependência dos aspectos isolados desse processo, que ocorre em todos os domínios da economia social. Limitamo-nos, portanto, ao exame de seus traços essenciais, deixando para pesquisas posteriores seu estudo mais especializado.

O plano do nosso trabalho é o seguinte. No capítulo I, abordaremos da maneira mais breve possível as proposições teóricas fundamentais da economia política abstrata sobre a questão do mercado interno para o capitalismo. Isso servirá de introdução ao restante da obra, sua parte factual, e evitará a necessidade de fazermos múltiplas referências à teoria na exposição posterior. Nos três capítulos seguintes, buscaremos caracterizar a evolução capitalista da agricultura na Rússia pós-reforma: precisamente no capítulo II, serão examinados os dados estatísticos dos zemstvos referentes à decomposição do campesinato; no capítulo III, os dados sobre a situação de transição da economia latifundiária, sobre a mudança do sistema de corveia dessa economia para o capitalista; e no capítulo IV, os dados sobre as formas nas quais ocorre a formação da agricultura mercantil e capitalista.

Os outros três capítulos serão dedicados às formas e aos estágios do desenvolvimento do capitalismo em nossa indústria: no capítulo V, examinaremos os primeiros estágios do capitalismo na indústria, precisamente na pequena indústria rural (chamada “artesanal”); no capítulo VI, os dados da manufatura capitalista e do trabalho capitalista doméstico; e no capítulo VII, os dados do desenvolvimento da grande indústria mecanizada. No último capítulo (VIII), tentaremos mostrar a relação entre os distintos aspectos do processo exposto e oferecer um quadro geral.

Obs. Pena não termos podido utilizar, para a presente obra, a notável análise do “desenvolvimento da economia rural na sociedade capitalista”, oferecida por Karl Kautsky em seu livro Die Agrarfrage [A questão agrária] (Stuttgart, Dietz, 1899), seção I: “Die Entwicklung der Landwirtschaft in der kapitalistischen Gesellschaft” [O desenvolvimento da agricultura na sociedade capitalista].

Esse livro (que recebemos quando grande parte da presente obra já estava composta) representa, depois do Livro III de O capital, o acontecimento mais notável da literatura econômica recente.

Karl Kautsky investiga “as principais tendências” da evolução capitalista da agricultura; sua tarefa é examinar os distintos fenômenos da economia rural moderna como “manifestações parciais de um processo geral”. É interessante notar até que ponto os principais traços desse processo geral são idênticos na Europa ocidental e na Rússia, não obstante a enorme particularidade desta última tanto nas relações econômicas quando nas extraeconômicas. Por exemplo, para a agricultura capitalista moderne, em geral, são típicos a divisão progressista do trabalho e o emprego de máquinas, o que chama especial atenção na Rússia pós-reforma.

O processo de “proletarização do campesinato” (título do capítulo VIII do livro de Karl Kautsky) expressa-se em toda parte na disseminação de todo tipo de trabalho assalariado dos pequenos camponeses; paralelamente, observamos na Rússia a formação de uma enorme classe de trabalhadores assalariados com terras de nadiel. A existência do pequeno campesinato em qualquer sociedade capitalista explica-se não pela superioridade técnica da pequena produção na agricultura, mas pelo fato de o pequeno camponês reduzir suas necessidades a um nível inferior ao nível de necessidades dos trabalhadores assalariados e dedicar esforços incomparavelmente maiores ao trabalho; fenômeno análogo observa-se na Rússia.

É natural, portanto, que os marxistas da Europa ocidental e russos convirjam, por exemplo, na avaliação de fenômenos tais como “o trabalho agrícola fora da localidade de residência”, para empregar a expressão russa, ou “o trabalho agrícola assalariado de camponeses nômades”, como dizem os alemães; ou a transferência da grande indústria capitalista para o campo. Já não estamos falando da avaliação idêntica do sentido histórico do capitalismo agrícola, do idêntico reconhecimento do caráter progressista das relações capitalistas na agricultura em comparação com as pré-capitalistas.

Karl Kautsky reconhece de maneira categórica que “não há sequer que se pensar” na passagem da comunidade aldeã (obschina) para a administração comunitária da grande agricultura contemporânea, que os agrônomos que demandam, na Europa ocidental, o fortalecimento e o desenvolvimento das comunidades não são de modo algum socialistas, mas representantes dos interesses dos grandes proprietários de terra, desejosos de submeter os trabalhadores alugando-lhes as chaves da terra, que em todos os países europeus os representantes dos interesses dos proprietários de terra desejam submeter os trabalhadores rurais concedendo-lhes terra e já tentando introduzir na legislação as medidas correspondentes, que “há de se lutar da maneira mais decidida” contra todas as tentativas de ajuda ao pequeno campesinato por meio das indústrias artesanais (Hausindustrie) – já que esse é o pior tipo de exploração capitalista.

Consideramos necessário destacar a completa solidariedade de opiniões entre os marxistas da Europa ocidental e os russos, tendo em vista a mais recente tentativa dos representantes do populismo de introduzir uma diferença nítida entre uns e outros.

Prefácio à segunda edição

A presente obra foi escrita às vésperas da Revolução Russa, durante a calmaria que se seguiu à explosão das grandes greves de 1895-1896. Parecia, então, que o movimento operário havia se fechado em si mesmo, estendendo-se em largura e profundidade e preparando o início do movimento de manifestações em 1901.

A análise da estrutura socioeconômica e, consequentemente, da estrutura de classe da Rússia que é fornecida na presente obra, feita com base no estudo econômico e no exame crítico das informações estatísticas, confirma-se, pela clara intervenção política de todas as classes no curso da revolução. O papel dirigente do proletariado revelou-se plenamente. Revelou-se também que sua força no movimento histórico é incomparavelmente maior que sua fração na massa geral da população. A base econômica de um e de outro fenômeno é demonstrada no trabalho aqui proposto.

Além disso, agora a revolução está revelando cada vez mais a posição e o papel duplos do campesinato. Por um lado, os enormes remanescentes da economia de corveia e os diversos resíduos da servidão, com a pauperização e a devastação dos pobres camponeses, explicam plenamente a fonte profunda do movimento revolucionário camponês, as profundas raízes da revolucionariedade do campesinato como massa. Por outro lado, tanto no curso da revolução quanto no caráter dos distintos partidos políticos, bem como em muitas tendências político-ideológicas, revela-se a estrutura de classe internamente contraditória dessa massa, seu caráter pequeno-burguês, o antagonismo entre as tendências patronais e proletárias em seu interior.

A oscilação do pequeno proprietário empobrecido entre a burguesia e o proletário revolucionário é tão inevitável quanto é inevitável, em qualquer sociedade capitalista, que uma ínfima minoria de pequenos produtores lucre, “vire gente”, converta-se em burguês, enquanto a esmagadora maioria ora se arruína por completo, ou se torna trabalhador assalariado ou pauper, ora vive eternamente no limite da condição proletária. A base econômica de ambas as tendências é demonstrada neste trabalho.

A partir dessa base econômica, está claro que a revolução na Rússia é, inevitavelmente, burguesa. Essa posição marxista é irrefutável. Não devemos jamais esquecê-la. É fundamental aplicá-la sempre a todas as questões econômicas e políticas da Revolução Russa.

Mas é preciso saber aplicá-la. A análise concreta da situação e dos interesses das diferentes classes deve servir à definição do significado exato dessa verdade em sua aplicação a esta ou àquela questão. O método inverso de reflexão, que não raro se encontra nos social-democratas da ala direita, com Plekhánov à frente, ou seja, a tentativa de buscar respostas para questões concretas no simples desenvolvimento lógico de uma verdade geral acerca do caráter fundamental da nossa revolução, é uma vulgarização do marxismo e um completo escárnio para com o materialismo dialético. Sobre tais pessoas, que deduzem, por exemplo, que o papel dirigente na revolução cabe à “burguesia” ou que os socialistas devem apoiar os liberais a partir da verdade geral acerca do caráter dessa revolução, Marx repetiria, sem dúvida, uma passagem de Heine que citou certa vez: “Semeei dentes de dragão e colhi pulgas”.

Sobre essa base da Revolução Russa, são objetivamente possíveis duas linhas principais de desenvolvimento e resultado.

Ou a velha economia latifundiária, conectada por milhares de fios à servidão, conserva-se, transformando-se aos poucos em uma economia puramente capitalista, “junker”. A base da transição definitiva do pagamento em trabalho na terra senhorialpara o capitalismo é a transformação interna da economia latifundiária baseada na servidão. Toda a estrutura agrária converte-se em capitalista, conservando por muito tempo traços da servidão.

Ou a revolução destrói a velha economia latifundiária, aniquilando todos os resquícios da servidão e, antes de tudo, da grande propriedade fundiária. A base de transição definitiva do pagamento em trabalho para o capitalismo é o livre desenvolvimento da agricultura camponesa, que recebe um enorme impulso graças à expropriação das terras dos latifundiários em favor do campesinato. Toda a estrutura agrária torna-se capitalista, pois a decomposição do campesinato ocorre tanto mais depressa quanto mais completamente forem eliminados os vestígios da servidão. Em outras palavras, ou a conservação do grosso da propriedade latifundiária da terra e dos principais pilares da velha “superestrutura”; daí o papel predominante do burguês liberal-monárquico e do latifundiário, a rápida passagem do campesinato abastado para o lado deles, o rebaixamento da massa camponesa, que é não apenas expropriada em enormes proporções, mas é escravizada por uns e outros métodos de resgate dos kadetee, oprimida e embrutecida pelo domínio da reação; o executor de tal revolução burguesa serão os políticos de um tipo próximo ao dos outubristas.

Ou a destruição da propriedade latifundiária da terra e de todos os principais pilares correspondentes à velha “superestrutura”; o papel predominante do proletariado e da massa camponesa na neutralização da burguesia hesitante ou contrarrevolucionária; um desenvolvimento mais rápido e livre das forças produtivas sobre uma base capitalista, com uma melhor posição das massas trabalhadoras e camponesas – na medida do que é concebível, em geral, nas condições da produção mercantil; daí a criação das condições mais favoráveis para a efetivação posterior, pela classe operária, de sua tarefa verdadeira e radical de reorganização socialista.

São possíveis, é claro, combinações infinitamente diversas de elementos de um ou outro tipo de evolução capitalista, e somente pedantes incorrigíveis poderiam resolver questões peculiares e complexas com apenas algumas citações desta ou daquela objeção de Marx acerca de uma época histórica diferente.

A obra proposta ao leitor é dedicada à análise da economia da Rússia pré-revolucionária. Em época revolucionária, o país vive tão rápida e impetuosamente que é impossível a definição dos grandes resultados da evolução econômica no auge da luta política. O senhor Stolypin, por um lado, e os liberais, por outro (e, de modo algum, não um único kadet à Struve, mas todos os kadetes em geral), trabalham de maneira sistemática, tenaz e consequente para a realização do primeiro modelo. O golpe de Estado de 3 de junho de 1907, pelo qual acabamos de passar, marca a vitória da contrarrevolução, que busca assegurar o predomínio completo dos latifundiários na assim chamada representação popular russa.

Já quão sólida é essa “vitória”, essa é outra questão, e a luta pelo segundo desfecho da revolução prossegue. De maneira mais ou menos decidida, mais ou menos consequente, mais ou menos consciente, não apenas o proletariado, mas também as amplas massas camponesas aspiram a esse desfecho. A luta imediata das massas, por mais que a contrarrevolução tente sufocá-la pela violência direta, por mais que os kadetes tentem sufocá-la com suas ideias contrarrevolucionárias mesquinhas e hipócritas, essa luta irrompe aqui e acolá, apesar de tudo, e imprime sua marca na política dos partidos “trabalhistas”, populistas, ainda que os políticos pequeno-burgueses que se encontram no topo estejam, sem dúvida, contaminados (sobretudo, os “sociais-populistas” e os “trudóviki”) pelo espírito kadet da traição, da bajulação e da autocomplacência dos moderados e diligentes funcionários e filisteus.

Como terminará essa luta, qual será o balanço do primeiro embate da Revolução Russa? Por enquanto, é impossível dizer. Por isso ainda não é chegada a hora (ademais, as obrigações partidárias imediatas como membro do movimento operário não me deixam tempo livre) para a reelaboração completa desta obra. A segunda edição não pôde ir além das características da economia da Rússia pré-revolucionária. O autor foi obrigado a limitar-se à revisão e à correção do texto, bem como às adições mais imprescindíveis do material estatístico recente. Tais dados são os últimos censos dos cavalos, as estatísticas das colheitas, o balanço do censo da população de 1897, os novos dados das estatísticas fabris etc.

(Julho de 1907).

*Vladímir Ilitch Lênin (1870-1924) foi chefe de governo da União Soviética de 1917 a 1924. Autor, entre outros livros, de Imperialismo, estágio superior do capitalismo (Boitempo). [https://amzn.to/48KgTVV]

Referência


Vladímir Ilitch Lênin. O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. O processo de formação do mercado interno para a grande indústria. Tradução: Paula Vaz de Almeida. São Paulo, Boitempo, 2024, 622 págs. [https://amzn.to/3Iva8fG]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES