Na terra duplamente prometida

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Por LEONARDO AVRITZER*

Desde, pelo menos o final do século XIX, estamos de frente de nacionalismos concorrentes entre duas populações que historicamente habitaram a região

O conflito entre israelenses e palestinos por um mesmo território, que começou em 1948 e que ainda não se encerrou, expressa uma questão importante que é a simultaneidade dos direitos dos dois povos por uma mesma terra. Isaac Deutscher, o biógrafo de Leon Trosky, talvez seja quem melhor retratou a dramaticidade desse conflito ao descrevê-lo da seguinte forma: “um homem pulou do último andar de uma casa em chamas na qual muitos membros da sua família pereceram. Conseguiu salvar a sua família, mas na queda atingiu uma pessoa que estava próxima quebrando-lhe a perna e os braços. Para o homem que saltou não havia escolha; porém para o que teve as pernas quebradas aquele homem era a causa da sua desgraça”.1

A descrição é a que melhor expressa a origem do conflito entre israelenses e palestinos que certamente envolve o direito dos dois povos à mesma terra. Se o nacionalismo israelense judaico é um pouco mais temporão que o nacionalismo palestino, como mostram autores importantes como Khalidi2 e Yoel Migdal,3 os dois autores clássicos sobre identidade palestina – um deles palestino e o outro judeu-israelense –, não deixa de ser correto afirmar que desde, pelo menos o final do século XIX, estamos de frente de nacionalismos concorrentes entre duas populações que historicamente habitaram a região.

Assim, mantém-se a máxima do escritor israelense Amós Oz: é inútil a procura pelo bom mocinho ou pelo bandido ao analisar o conflito entre árabes e israelenses, porque esse é um conflito entre o certo e o certo. Ainda assim, cabe perguntar, como um conflito entre o certo e o certo pode envolver tantos erros e tanta violência. A resposta está na sabotagem pelos radicais dos dois lados das negociações pela paz.

Tem circulado insistentemente pela internet um quadro com quatro mapas que mostra a diminuição do espaço geográfico reservado ao estado palestino entre 1947 e hoje. O mapa omite elementos políticos fundamentais. O primeiro deles é que os palestinos e os estado árabes rejeitaram a partilha realizada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1947. Israel, em sua declaração de independência de 14 de maio de 1948, convidou os países árabes e os palestinos a aceitarem a partilha: “Nós fazemos um apelo – em meio ao duro ataque lançado contra nós há meses – aos habitantes árabes do Estado de Israel para manter a paz e participar da construção do Estado na base de igual e completa cidadania e através de representação em todas as suas instituições provisórias e permanentes”.4

O mapa também omite um fato de fundamental importância, especialmente, para entender o conflito na faixa de Gaza. Foram Egito e Jordânia que ocuparam as porções mais significativas do que poderia ser um estado palestino em 1948 e as anexaram em 1953. A Jordânia anexou e ofereceu cidadania aos palestinos na Cisjordânia, ao passo que o Egito anexou Gaza e não concedeu cidadania. Israel também concedeu cidadania aos palestinos que ficaram dentro das fronteiras do armistício de 1948.

Assim, é completamente falso o mapa que é apresentado como o que seria a Palestina entre 1948 e 1967, que era uma porção de terra anexada pela Jordânia e pelo Egito, no caso do Egito, sem envolver a concessão de cidadania. A possibilidade de um Estado palestino soberano surgiu apenas em 1993 quando o Tratado de Oslo foi assinado.

O Tratado de Oslo foi baseado em um princípio da doutrina de relações internacionais prevalecente na Escandinávia que supõe que o estabelecimento de relações de confiança entre negociadores israelenses e palestinos que conversaram abertamente sobre o que seriam os princípios básicos de um plano: o reconhecimento por Israel do direito de autodeterminação do povo palestino e o reconhecimento do estado de Israel pelos palestinos.

Do lado de Israel, Yitzhak Rabin, e do lado palestino Yasser Arafat colocaram suas assinaturas sobre um mapa na presença do presidente do Egito, do secretário de Estado dos EUA, do ministro de Relações Exteriores da Rússia, em uma reunião no Cairo em 1993 e assinaram um Carta de Reconhecimento Mútuo.5 Assim, foi gerado o último mapa desse post de internet, na verdade o único que gerou autodeterminação e reconhecimento da soberania do povo palestino. Esse foi o momento mais auspicioso de um conflito de mais de 70 anos que marcou três gerações de israelenses e palestinos.

No entanto, o problema que levou ao fracasso das negociações e do Tratado de Oslo de 1993 foi provocado pelas duas forças políticas que hoje se enfrentam em Gaza. De um lado, a direita israelense que, naquele momento liderada por Ariel Sharon e Benjamin Netanyahu, questionou a soberania palestina na esplanada das mesquitas e com isso desatou uma certa fúria palestina semanas antes de ser apresentada a Arafat uma proposta de paz. De outro lado, o Hamas, que é uma organização fundamentalista religiosa que descambou para o terrorismo já nos anos 1990.

Benjamin Netanyahu é o herdeiro de uma dinastia de extrema direita na política israelense que existe desde os anos 1940. Seu pai, Benzion Netanyahu, tornou-se, em 1939, secretário particular de Vladimir Jabotinsky, o líder principal da direita sionista e editor de uma revista revisionista chamada de Zionnews. Vladimir Jabotinsky polemizava na revista com o fundador do sionismo, Theodor Herzl que afirmou em algumas ocasiões “nós não queremos um estado Boer”, repelindo um modelo de estado espelhado no apartheid sul-africano.

Vladimir Jabotinsky defendia os Boers por terem alcançado autodeterminação estatal.6 Benjamin Netanyahu, no seu discurso em comemoração aos 100 anos do nascimento de Vladimir Jabotinsky, afirmou que a grandeza de Vladimir Jabotinsky foi deixar claro que o que o sionismo reivindicava eram as duas margens do rio Jordão.7 Netanyahu pai, já em 1944, defendeu que Israel não deveria aceitar a partilha proposta pela ONU e em 1993 declarou que Oslo seria “o começo do fim do Estado de Israel”. Seu filho, já como primeiro-ministro decidiu por se opor aos acordos de Oslo. Para isso, ele encontrou um parceiro do outro lado do rio Jordão.

O Hamas foi fundado pelo imã e ativista palestino Ahmed Yassin em 1987, após a eclosão da Primeira Intifada. No seu surgimento, o Hamas está associado com a Irmandade Muçulmana sediada no Egito, o que fez com que ele sempre estivesse envolvido com organização comunitária e assistência social à população palestina, o que o tornou popular entre os palestinos. O Hamas sempre teve uma posição de oposição às Cartas de Reconhecimento Mútuo Israel-OLP assinadas no Cairo, bem como aos Acordos de Oslo, que geraram a assim chamada “solução de dois Estados”.

O Hamas ganhou as eleições na faixa de Gaza em 2006, derrotando o seu maior inimigo, a Fatah, e rejeitando logo em seguida a demanda do assim chamado quarteto (Estados Unidos, Rússia, Nações Unidas e União Europeia) para que ele aceitasse os acordos de Oslo. Depois dessa rejeição e da subsequente expulsão militar da autoridade palestina de Gaza em 2007, que representou um golpe de estado militar, Israel fechou a fronteira com Gaza.8 Assim, Oslo teve dois poderosos inimigos que conformam aquilo que Amós Oz chamou a passagem do “certo e o certo” para “o errado e o errado”, ou seja, Benjamin Netanyahu decidiu reforçar o Hamas em detrimento da autoridade palestina porque o Hamas, em sua estratégia de guerra total, não pede a devolução de territórios ocupados.

O massacre de civis israelenses na parte sul de Israel no sábado dia 7 de outubro foi o maior massacre de civis judeus desde que a ex-União Soviética liberou os campos de concentração da Europa Oriental no início de 1945. A forma de atuação do Hamas lembra a forma de atuação dos nazistas, com a matança indiscriminada de homens, mulheres e crianças sem qualquer padrão de humanidade. O exército e a inteligência de Israel foram pegos completamente desprevenidos nos ataques do dia 7 de outubro porque a maior parte dos efetivos permanentes do exército israelense estão na Cisjordânia defendendo os colonos que estão nos assentamentos, que é a política oficial de governo.

A defesa ridícula que existia em Gaza no início do sábado dia 7 de outubro sugere acordos informais entre o governo de Israel e o Hamas que foram traídos por este último. Em segundo lugar, a desorganização da reação israelense está ligada ao fato de Benjamin Netanyahu estar isolando e desorganizando as lideranças militares porque a liderança do exército de Israel se posicionou contra a reforma judicial que ele está tentando implementar desde o começo do ano.9 Assim, a dimensão da tragédia está diretamente ligada à gestão do primeiro-ministro israelense e às ideias que ele está procurando implantar.

Na guerra em Gaza que se seguiu ao massacre de civis israelenses, Israel não tem boas opções. A destruição militar do Hamas que seria desejável, parece impossível de ser alcançada e está gerando a punição coletiva da população palestina. O jornalista do New York Times e a voz não oficial do movimento democrático em Israel, Thomas Friedman, diagnostica a dimensão do problema: sem uma mudança de governo em Israel, a guerra de Gaza provavelmente significará uma tentativa de Benjamin Netanyahu de manter a sua política na Cisjordânia e destruir o Hamas.

Muito provavelmente essa destruição será parcial e implicará em mais uma escalada do conflito com o Hamas reposicionado sua liderança entre a população palestina da Cisjordânia, o que parece já estar acontecendo. Sem a retomada de um processo de relegitimação da Autoridade Palestina e um compromisso claro com a solução dos dois estados não existe a possibilidade de êxito da estratégia israelense.10

Israel deve também aceitar os apelos das Nações Unidas por um corredor humanitário. Mais uma vez cabe citar Amós Oz: o dilema do conflito nesse momento é como passar do errado x errado para o certo x certo, que é o reconhecimento de direitos mútuos à terra duplamente prometida e a volta à arquitetura dos Acordos de Oslo.

*Leonardo Avritzer é professor titular do departamento de Ciência Política da UFMG. Autor, entre outros livros, de Impasses da democracia no Brasil (Civilização Brasileira). [https://amzn.to/3rHx9Yl]

Publicado originalmente no hors-série do vol. 8 da Revista Rosa.

Notas


[1] Deutscher, Isaac. 1970. O judeu não judeu. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, p 124.

[2] Khalidi ocupa a cadeira que foi de Edward Said em Columbia. Vide Khalid, Rashid. 1970 Palestinian identity: the construction of modern national consciousness. New York, Columbia University Press.

[3] Migdal, Yoel.1993. Palestinians: the making of a people. New York, Free Press.

[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Declara%C3%A7%C3%A3o_de_Independ%C3%AAncia_do_Estado_de_Israel.

[5] Vide, Dennis Ross. 2004. The missing peace, p. 135. New York, Farrar, Strauss and Girox.

[6] Vide Beinart, Peter. The monista prime minister. In: The crisi of sionism. New York. Times book.

[7] Ibid, p. 106.

[8] Vide https://www.foreignaffairs.com/israel/hamas-what-israel-must-do

[9] Vide https://www.bbc.com/news/world-middle-east-65080919.

[10] https://www.nytimes.com/2023/10/19/opinion/biden-speech-israel-gaza.html.


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