Por DANIEL BRAZIL*
Comentário sobre o filme recém-lançado
O filme O dilema das redes, lançado recentemente pela Netflix, cristaliza para um público variado uma série de discussões que vem agitando há alguns anos o ambiente virtual. Não que apresente grandes revelações, mas revela detalhes e traz entrevistas de personagens que ajudaram a construir os gigantes da rede virtual.
O roteiro, muito bem construído, mistura depoimentos reais com ficção, de forma a demonstrar como funciona o “sistema de manipulação e lucro” criado pelas empresas do Vale do Silício, hoje entre as mais poderosas do mundo: Google, Facebook, Youtube, Twiter, Instagram, Pinterest, etc.
Como estas empresas, em princípio “gratuitas” para os usuários, se tornaram bilionárias? Como funciona a monetização através de uma simples clicada de “curti”? Como nossos dados pessoais são utilizados para alimentar uma máquina de propaganda explícita (e subliminar) que movimenta milhões de dólares?
Vários pesquisadores e estudiosos das novas mídias já apontavam há um bom tempo para as distorções do sistema. Aqui no Brasil o sociólogo e professor Sergio Amadeu, da UFABC, tem se destacado na análise dos perigosos efeitos colaterais do uso intensivo das redes. Embora traga consequências comportamentais, estéticas, sociais e afetivas ainda não totalmente mensuráveis, como é bem demonstrado pela família representada no filme, vamos nos ater aqui a apenas um aspecto, o macropolítico.
Os depoentes do filme são, ou foram, figuras importantes do império digital. Diretores, chefes, engenheiros, ideólogos que hoje veem com reservas o futuro maravilhoso que venderam sem pudor. Relativizam as maravilhas de um sistema que aos poucos está se revelando perigoso, pondo em risco a própria existência da democracia. De certa forma, atualizam o debate suscitado por Umberto Eco nos anos 60, com o seu célebre livro Apocalípticos e integrados (Perspectiva), que opunha os defensores das tecnologias como ferramentas de avanço social aos que acusavam estas de virarem instrumento de exclusão e manipulação da informação.
O filme dirigido por Jeff Orlowski ousa ao colocar atores representando algoritmos, e pontua seu enredo ficcional um tanto esquemático com fatos reais assustadores: a manipulação em massa de (des)informações que levaram países à beira do totalitarismo. Explicitamente, Myanmar e Brasil, representado no filme pela funesta figura aqui eleita em 2018.
Há todo um levantamento psicológico do usuário de internet. Aliás, o filme lembra bem que o termo “usuário” (addict) só se usa pra drogas e redes sociais. Para ter, cada vez mais e mais, os prazeres oferecidos pela rede, o usuário não se importa de ter seus dados expostos, de ter sua privacidade invadida ou até de conceder que autoridades registrem todas as suas ações.
Em certo momento, um entrevistado aponta um dado crucial revelado por uma pesquisa: uma mentira se espalha seis vezes mais rapidamente que uma verdade na internet. Verdades tem de ser comprovadas exaustivamente, mentiras não. Contra esse crescimento veloz de desinformação não adianta contrapor que a cartilha do Ministério da Educação da Dilma não tinha mamadeira de piroca. A mentira vai estar sempre na frente, com quilômetros de vantagem.
O filme toca na questão da democracia, cita países que estão em processo de corrupção dos valores, mas infelizmente não fala do papel devastador de uma Cambridge Analytica, em conluio com a sinistra figura de Steve Bannon, influenciando eleições e referendos, como o do Brexit. Para isso, é recomendável assistir Privacidade hackeada (The Great Hack), documentário de 2019 que enfoca a tramoia entre a empresa e o Facebook, envolvendo dados pessoais de milhões de pessoas.
A grande questão que se coloca para a esquerda é se será possível competir na internet com as mesmas armas da direita. Esta, sabemos, está vencendo nesse campo, que criou e sabe muito bem utilizar. No fundo, é um dilema ético que assombra qualquer indivíduo, pois é muito mais fácil mentir que falar a verdade. Mas como propor soluções coletivas, partidárias, institucionais, para enfrentar a avalanche de notícias falsas, num campo adverso?
Para alguns dos entrevistados, como Jaron Lanier, o mundo virtual deve ser abandonado. “Desligue as redes, vá ver o sol lá fora”, diz ele, de forma simbólica, no final do filme, ecoando Thoreau. Em tempos de pandemia, não é uma solução muito prática. Outros, ex-executivos arrependidos, tentam criar mecanismos de controle para preservação da democracia. Mas como enfrentar uma máquina alimentada por milhões de dólares, em crescimento exponencial, que corrompe e alicia cérebros desde a infância com promessas deslumbrantes de sucesso individual, fortuna e poder?
Organizar um partido ou organização que atue dentro dessa rede de forma ética parece algo cada vez mais distante. Em pouco tempo veremos uma explosão de revolta no mundo real, se ainda restar consciência transmitida pelos meios tradicionais. Resta a pressão social de grupos organizados em torno da democracia para rever legislações, pressionar empresas e exigir transparência na rede. Ou sucumbiremos a uma ditadura global tão absolutista que lembrará aos mais velhos as obras de Orwell ou Huxley. Que, obviamente, serão tratadas como fake news.
*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.
Referência
O dilema das redes (The Social Dilemma)
Documentário, Estados Unidos, 2020, 89 minutos
Direção: Jeff Orlowski
Distribuição:Netflix