O fim da Lava Jato e o patético Barroso

image_pdf

Por LEONARDO AVRITZER*

A derrota dos “justiceiros de Curitiba” constitui também a derrota de uma interpretação equivocada do Brasil.

A decisão do STF por sete votos a dois corroborando a tese da suspeição do juiz Sérgio Moro no processo do assim chamado “triplex” representa, efetivamente, o fim da operação Lava Jato. Os principais derrotados pelo fim dessa via inquisitória de combate à corrupção são os justiceiros de Curitiba que atuavam em conluio, Deltan Dallagnol e Sérgio Moro, e seus parceiros no STF.

A derrota da Lava Jato constitui também a derrota de uma interpretação equivocada do Brasil, lançada por Raymundo Faoro no final dos anos 1950 em seu livro Os donos do poder e resgatada pelos justiceiros de Curitiba. A tese é que a corrupção é o maior, senão o único, problema do Brasil e explicaria o fracasso civilizatório do país. Analisemos o argumento de Raymundo Faoro para entender sua expressão no Lavajatismo.

A tese principal de Os donos do poder é que o grande elemento da formação do Estado brasileiro, que explicaria o país como nação, seria a formação de um Estado patrimonial que abriria caminho para a apropriação privada de recursos do Estado. Faoro realiza duas operações de qualidade acadêmica duvidosa para defender tal tese: a primeira é atribuir esse elemento à formação portuguesa, ainda no começo do milênio passado, e assumir (supostamente com base na obra de Max Weber) que esse elemento patrimonial haveria se transferido e reproduzido no Brasil.

O segundo é identificar esse elemento em todos os períodos históricos do nosso país. Assim, em um capítulo considerado por alguns o pior texto já escrito sobre a história do Império, ele interpreta o período como centralista, estamental e patrimonialista, algo que qualquer estudante de graduação de história sabe ser equivocado. Para Faoro, o liberalismo (que, diga-se passagem, a Lava Jato nunca professou porque o liberalismo preza o direito de defesa) envolveria a ruptura com o Estado patrimonial.

Faoro achava possível interpretar a formação do Brasil sem tratar do problema da escravidão. É interessante notar também que, apesar das críticas ao estamento patrimonial e certa defesa de um liberalismo conservador, Faoro prescinde de uma visão sobre como democratizar o Estado brasileiro. Para ele, bastaria destruir o estamento burocrático, algo que, podemos argumentar, a Lava Jato tentou realizar.

A Lava Jato pode ser entendida como um “faorismo judicial”, isso é, uma operação que associou a tentativa de acabar com o estamento burocrático com a ambição de dar fim à concepção de Estado vigente no país desde a década de 1930. Para isso, seus integrantes reivindicaram um ativismo judicial muito mal compreendido pelos nossos juristas porque supõe que os juízes tudo podem e buscaram estendê-lo para a arena do direito penal. Assim, a disputa política no Brasil deixou de se dar pela via eleitoral, mas tratou-se de criminalizar aqueles que defendiam uma concepção de nação organizada em torno do Estado. Para esses, a Lava Jato reservou não apenas a derrota política imposta por um impeachment para o qual ela contribuiu decisivamente, mas também a prisão com o objetivo de mudar a composição do sistema político.

Tal objetivo foi claramente expresso pelo juiz Sérgio Moro em artigo com pretensões acadêmicas no qual analisava a operação “Mãos Limpas”. Ali, Moro afirmou “A operação mani pulite ainda redesenhou o quadro político na Itália. Partidos que haviam dominado a vida política italiana no pós-guerra, como o Socialista (PSI) e o da Democracia Cristã (DC), foram levados ao colapso, obtendo, na eleição de 1994, somente 2,2% e 11,1% dos votos, respectivamente. Talvez não se encontre paralelo de ação judiciária com efeitos tão incisivos na vida institucional de um país”.

Hoje é difícil duvidar que esse foi um dos objetivos de Moro: redesenhar o sistema político brasileiro. Ele e seus aliados na elite brasileira esqueceram-se apenas de um detalhe: que a outra força política disponível no nosso país é o militarismo de feições autoritárias, que foi o maior beneficiário do “faorismo judicial”.

Sabemos o que levou à reversão do punitivismo jurídico seletivo ou do “faorismo judicial”. Primeiro, uma decadência sem par da economia brasileira desde 2015, para a qual a Lava Jato contribuiu decisivamente, tal como foi observado pelo juiz Ricardo Lewandowski na sessão de quinta-feira, 22 de abril. Mais recentemente, a ascensão de um militarismo sem controle que ocupou o Ministério da Saúde e foi parceira na tragédia que se abateu sobre o Brasil ao longo da pandemia. E, por fim, a resistência daqueles que acreditam na instituição Estado de direito, completamente ignorada, senão vilipendiada, pelos lavajatistas.

Ou seja, o que fracassou não foi a Lava Jato, mas um projeto de destruição sistemática do Estado brasileiro, que não encontrou substituto nem no governo Temer e nem no governo Bolsonaro. Esses governos acentuaram os impasses vividos pela economia e pela política no Brasil. O único substituto que apareceu foi a militarização do governo introduzida por Bolsonaro e reforçada pateticamente na gestão Pazuello no Ministério da Saúde que escancarou a incompetência dos militares na gestão.

Coube ao eminente jurista Luís Roberto Barroso servir como a última linha de defesa do “faorismo judicial”. Barroso, já havia escrito um artigo no qual defendia a compatibilidade entre o STF como instituição contra-majoritária e como instituição representativa da opinião pública, essa última supostamente constituída por aqueles membros do mercado interessados em destruir o estamento burocrático.

O jurista deu um passo adiante na defesa do “faorismo” ao deixar de lado quaisquer arroubos ligados ao liberalismo como forma do direito de defesa e passou a sustentar a ideia de que um dos componentes do estamento burocrático tem legitimidade para se colocar acima da lei ou violar o coração do direito penal. Aqueles que não defendem a Lava Jato, seriam defensores da corrupção e não do Estado de direito. A resposta por ele recebida de Gilmar Mendes mostra o tamanho do equívoco de Barroso. Ao se arvorar defensor da moralidade sem forma política ou judicial, Barroso “brinca” com uma concepção judicial e não democrática de governo. Ao se considerar representante de uma parcela da opinião pública, ele se coloca contra o estado de direito para defender o projeto político “faorista”.

Entretanto, tudo indica que essa concepção foi derrotada na sessão de 22 de abril, apesar dos gritos do eminente ministro ao final da sessão. O resultado da votação aponta para o fim do “faorismo judicial” e para o retorno de uma concepção de Estado definida pela política e não por parte dos membros do Poder judiciário que se constituíram em uma facção antirrepublicana e contra o Estado de direito. Caberá aos eleitores em 2022, e não ao Poder judiciário, determinar o projeto político que irá substituir o faorismo judicializado e militarizado.

*Leonardo Avritzer é professor titular do departamento de Ciência Política da UFMG. Autor, entre outros livros, de Impasses da democracia no Brasil (Civilização Brasileira).

 

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
7
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
14
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES