O futuro dura muito tempo para chegar

Imagem: Mood Valley
image_pdf

Por LUIZ WERNECK VIANNA*

Nessa hora, em que não é mais noite e ainda não é dia, cabe ao ator esconjurar as sombras do pesadelo que experimentamos

O futuro dura muito tempo para chegar em nosso país, às vezes chega perto, roça mesmo o limiar do horizonte como se aprestasse a aportar, mas recua sem forças de ir em frente sem conseguir se desvencilhar das pesadas correntes que o atam ao passado. Três décadas atrás, com a entrada em cena da Carta de 1988 teve-se a sensação de que o caminho estava aberto para ele, mas debalde, apetites mórbidos pelo poder, inclusive com origem nos setores subalternos da sociedade, nos conduziram ao desastre da eleição de Collor, do qual nos soubemos livrar sem que tivéssemos aprendido com os equívocos que nos desapartaram da política que nos levaram a derrotar o regime autoritário em 1985.

Se antes combinamos os temas e a agenda da democracia política com os da questão social, desde aí a pauta do social passa a dominar com a implícita concepção de que os valores e as instituições democráticas instrumentalmente estariam a seu serviço.

Os efeitos nefastos dessa separação não tardaram a se fazer sentir, especialmente no fosso aberto, a partir da conquista da hegemonia na esquerda pelo PT, entre a memória da política das lutas pela democratização orientadas por amplas alianças e a política levada a cabo pelo PT que desconsiderou os nexos dos temas sociais com o aprofundamento da democracia, especialmente no governo Dilma Roussef. Em equívoco igualmente grave, os governos do PT passaram a conceder primazia à conquista de posições no interior do Estado, em que logo se insinuaram práticas não republicanas na administração pública, em detrimento do seu enraizamento na sociedade civil.

Afastado de suas antigas bases sociais e vulnerável às acusações de malfeitos de muitos dos seus quadros dirigentes, como no caso da administração da Petrobras, o PT e seu governo se tornaram presa fácil do impeachment, com o que ainda mais se aprofundou o afastamento ao que sobrevivia dos tempos da política dos idos dos anos 1980. A sanha denuncista que sobreveio com a instalação da chamada república de Curitiba tornou o campo da política um imenso deserto, sepultando a memória das lutas pela democratização do país e importando em reais ameaças a seu melhor fruto, a Constituição de 88.

O futuro cede lugar ao passado, presença latente à espreita para voltar ao proscênio, nostálgico do Estado Novo de 1937 e do regime do AI-5 de 1968, que avalia estar diante da sua hora e da sua vez a fim de erradicar instituições, práticas e culturas que ponham em risco suas concepções de mundo como um mercado desigual em que devem reinar os mais fortes, um fascismo que não ousa dizer seu nome encapuzado num neoliberalismo que diz praticar.

A emergência da pandemia com seu séquito macabro de vítimas, quase 650 mil até aqui, que imobilizou a sociedade em movimento de autodefesa, facilitou, na frase tristemente famosa, que a boiada de ímpeto destrutivo encontraria livre passagem. Havia, no entanto, uma pedra no caminho, a Constituição e seus defensores, removê-la se tornou então o eixo central da estratégia das forças reacionárias, evidente na conspiração frustrada que rondou o 7 de setembro.

Privadas da solução golpista, tanto pela resistência interna como pelo cenário internacional adverso, resultante do novo alinhamento provocado pelo presidente da nação hegemônica contrário a soluções autocráticas, essas forças passam a recorrer ao caminho eleitoral para o que buscam amparo nos partidos políticos do Centrão, fóssil preservado das nossas taras de formação como sociedade.

Mas, também aí encontram obstáculos, o Centrão, como registra a nossa tradição política, se reproduz pelo voto seja qual fora forma da sua extração, e as pesquisas de institutos respeitados têm indicado que ele se inclinar para partidos e personalidades da oposição ao atual regime. Novos ventos sopram em direção contrária à reprodução do governo que aí está, que ainda conta com os recursos da imensa máquina estatal que malbarata à sua discrição, mesmo que o dilúvio seja o seu sucessor. Em sua defesa, o passado interdita as vias para o futuro.

Nessa hora, em que não é mais noite e ainda não é dia, cabe ao ator esconjurar as sombras do pesadelo que experimentamos, inclusive expiando suas culpas que não foram poucas no retrocesso que purgamos. Faltam os rituais da confissão e a promessa de que não incorreremos em nossos erros do passado. Falta igualmente abandonar as paixões shakespearianas de luta pelo poder, esquecidos de que foi esse grande autor quem melhor expôs as misérias e a tragédia da busca sem freios pela glória do mando de um ou de poucos sobre as grandes maiorias.

Ulisses Guimarães foi capaz de tecer a frente amplíssima que nos levou à vitória contra o regime autoritário de 1964 mesmo com o sacrifício de suas legítimas ambições pessoais, e seu exemplo deve ser invocado quando, cegos ao bem comum, não poucos embaraçam os caminhos de uma larga frente democrática com seus apetites de província e a defesa dos seus pequenos interesses paroquiais, no mais das vezes escorados em falsas petições de princípio de aparência democrática.

Ainda há tempo para que a obra da razão se estabeleça, e cabe a todos os democratas procurar o caminho da união, porque a obra que se tem pela frente não é de pequeno porte, significa não apenas reconstruir o que foi depredado pelos atuais governantes, mas sobretudo emancipar o país de uma história que pesa como chumbo e tolhe seus anseios por uma sociedade mais justa e igual.

*Luiz Werneck Vianna é professor do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Autor, entre outros livros, de A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Revan).

 

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES