Por Valerio Arcary*
Voltar atrás é melhor que perder-se no caminho.
Sabedoria popular russa
A língua resiste porque é mole; os dentes cedem porque são duros.
Sabedoria popular tibetana
Precisamos aprender com a história, se queremos derrotar Bolsonaro. Existe o perigo de cometermos erros sectários, mas o perigo oposto não pode ser ignorado. Na verdade, ele é o maior, neste momento. Mas ainda há tempo. O Congresso Nacional do PT deverá decidir a tática diante de Bolsonaro. Nesse contexto, um pouco de perspectiva de sua própria história poderá ser útil.
Qual foi o debate de tática na esquerda na fase final da luta contra a ditadura militar? Quem tinha razão em 1978/79? Qual foi a tática que passou a prova no laboratório da história? Como foi que o PT conquistou a posição hegemônica na esquerda?
Tinha razão a esquerda moderada – PCB, PCdB e MR-8 – que se mantiveram dentro de um MDB que negociava, explicitamente, a transição lenta, gradual e segura, esperando as eleições de 1982, e o Colégio Eleitoral? Era correto aceitar a liderança do MDB, que representava uma fração da classe dominante que queria garantir uma transição controlada, por dentro das instituições do regime, para evitar, a qualquer custo, o perigo de uma nova tentativa de golpe como o de Frota em 1977? A tática de “não provocar” estava certa ou errada? A tática quietista, de aguardar “quietos” o ritmo da transição organizada pela própria ditadura, era o melhor caminho?
Ou não é verdade que a direção do MDB só aceitou encabeçar a campanha pelas Diretas Já, a partir de 25 de janeiro de 1984, porque: (a) temia que a iniciativa ficasse nas mãos do PT; (b) temia a vitória de Maluf contra Andreazza dentro da Arena/PDS; (c) apostava na divisão do partido da ditadura e a formação do PFL liderado por Sarney; (d) e porque Ulysses Guimarães pressionou Tancredo e Montoro até o máximo limite?
Ou era correto apostar, depois da onda de greves de 1978/79, em uma luta de massas para derrubar a ditadura? Estava ou não certa a direção do PT que compreendeu que a burguesia estava dividida, que a classe média se deslocava para a oposição à ditadura, e que uma nova classe trabalhadora, em um país mais urbanizado, tinha força social para derrubar o regime? Estava certa em dizer que o perigo maior não era “não provocar”, era “não colaborar”? Como se reconstruiu a esquerda brasileira depois de vinte anos de ditadura militar?
Se os setores mais lúcidos e combativos da esquerda não tivessem fundado o PT em 1980, se o PT não tivesse lançado Lula como candidato a governador, disputando com Franco Montoro, em 1982, quando não havia sequer segundo turno, se o PT não tivesse tomado a iniciativa da campanha das Diretas já no comício do Pacaembu em 1983, Lula não teria podido ocupar o lugar que teve nas ruas em 1984. O PT não teria conquistado autoridade para não participar do Colégio Eleitoral que elegeu Tancredo Neves. Não teria se posicionado com coerência para ser oposição a José Sarney. Em consequência, Lula não teria chegado ao segundo turno em 1989.
A tática do PT entre 1980/89 passou a prova da história. A tática do PCB/PCdB e MR-8 demonstrou-se errada. Sobre-estimaram a força da ditadura, e subestimaram a potência da mobilização de massas da classe trabalhadora. Uma das razões porque a classe dominante conseguiu reduzir os danos na transição, e preservar intacto o aparelho militar-policial, foi que uma parcela da esquerda, majoritária naqueles anos, serviu de biombo na proteção da liderança do MDB de Tancredo, e a negociação por ele liderada.
A direção do PCB, ainda a maior organização de esquerda em 1978/79, finalmente, foi até ao limite da tentativa de destruição do seu próprio partido. A direção do PC do B se reposicionou, corretamente, e se aliou ao PT e a Lula a tempo da disputa de 1989.
O PT de 2019 precisa decidir em seu próximo Congresso Nacional, nesse mês, se pretende renunciar às lições de sua própria história ou não.
Uma esquerda para o século XXI tem que ser útil para lutar contra Bolsonaro. A natureza neofascista da corrente bolsonarista que mantém a hegemonia dentro do governo de extrema-direita é um fator que obriga uma reflexão muito serena sobre a tática. Um dos objetivos centrais do bolsonarismo é destruir a esquerda brasileira.
Qualquer partido de esquerda cuja posição seja percebida como obstáculo na luta para derrotar Bolsonaro, seja nas mobilizações ou nas eleições, será, seriamente, desaprovado, e poderá sofrer mais que uma derrota eleitoral, uma derrota política.
O mais grave, entretanto, é que, se mantidas as atuais condições de “temperatura e pressão”, derrotar as candidaturas do bolsonarismo será uma luta duríssima. São, pelo menos, quatro variáveis a serem consideradas.
A degradação maior ou menor do cenário econômico-social, e a percepção que as massas populares terão da responsabilidade do governo; a força da resistência politico-social diante da ofensiva do bolsonarismo com as reformas administrativa, fiscal e as privatizações; o futuro das investigações sobre as relações do bolsonarismo com as milícias; a capacidade do bolsonarismo de improvisar candidaturas, e um partido ou Frente que as defenda e, reciprocamente, a capacidade da esquerda de se posicionar sem cometer erros graves como em 2018.
Se o único critério a ser considerado for a opinião que prevalece nesse momento na vanguarda ampliada de esquerda, a tática da Frente Ampla já ganhou. Acontece que a Frente Ampla só é possível sob o menor denominador comum. É bom saber que uma Frente Ampla com o PDT e o PSB só será possível com um programa ou uma candidatura de centro-esquerda. Esse, aliás, já foi o debate no ano passado em torno de uma Frente com Ciro Gomes, ainda que em outro contexto.
A questão, portanto, é complicada. Os partidos não são um fim em si. Devem ser instrumentos de luta coletiva. Mas “um mais um” só são dois em aritmética. Em política há alianças em que as forças aliadas se fortalecem, e outras em que se anulam. Este é o tipo de dilema que se abre em torno da sugestão de Lula para que Marta Suplicy se filie ao PT. Que não seria muito diferente de um apoio a Márcio França e, igualmente, um desastre.
A questão de fundo, nesse momento, no lugar que Haddad pretende disputar, e onde se decide o destino do PT é se Lula recupera ou não os direitos políticos. Porque se recuperar será a candidatura do PT em 2022. Terá a dificuldade de tentar uma reinvenção a la Corbyn do PT tendo sido, doze anos antes, ele mesmo, o Blair do PT. Não será simples, embora não impossível.
Entretanto, o enigma Lula permanece. Ninguém sabe que lugar ele quer ocupar diante da história. Estará disposto a ser um incendiário na luta para derrubar Bolsonaro? Ou veremos de novo o “Lulinha paz e amor” tentando negociar de uma transição eleitoral indolor?
Fernando Haddad se preserva, por enquanto, porque pode esperar para decidir. Se a campanha Lula Livre conquistar a anulação dos julgamentos da Lava Jato –, o que seria uma gigantesca vitória política, não só do PT, mas de toda a esquerda – Haddad será candidato à prefeitura. Mas, sejamos objetivos, considerando a atual relação política de forças, essa hipótese é pouco provável. Depende do voto de Celso de Melo na Segunda Turma do STF. E esse voto é um mistério.
Por outro lado, se Lula permanecer sem direitos políticos, Haddad não será candidato a prefeitura, preservando-se para 2022. Estes são os dilemas, e é bom saber. E essas decisões têm consequências para o PSol, porque Boulos só será pré-candidato à prefeitura pelo PSol, se Haddad decidir não ser.
A tática da Frente Única de esquerda, nas eleições, pode ser construída no primeiro, ou no segundo turno. Em 2018, foi efetivada no segundo turno, e a candidatura Boulos não foi um obstáculo na luta contra Bolsonaro, ao contrário, foi um ponto de apoio.
Em qualquer hipótese, o Psol deve lutar para manter – custe o que custar – bem levantada a bandeira da independência de classe.
*Valério Arcary é professor titular aposentado do Instituto Federal de São Paulo