O homem da areia

Maria Bonomi, Faber, xilogravura sobre papel, 118 x 80 cm.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por AFRÂNIO CATANI*

Comentário sobre a novela de E.T.A. Hoffmann.

O homem da areia, originalmente publicado em 1817, representa apenas uma das facetas da produção do escritor, compositor, empresário de teatro e advogado alemão Ernest Theodor Whilhelm (1776-1822). Tendo adotado o pseudônimo de E.T.A. Hoffmann, trocou o W de seu nome verdadeiro por A, em homenagem a Wolfgang Amadeus Mozart.

Ao longo de sua vida, Hoffmann fez muitas coisas. Entretanto, a atividade musical foi a ocupação que mais o fascinou, tendo deixado composições para ópera e uma série de artigos de crítica sobre Bach e Beethoven, entre outros. Advogou durante muitos anos, até ser afastado de um cargo oficial em razão de charges que publicou na imprensa e que foram consideradas desrespeitosas para com as autoridades. Só voltou às atividades jurídicas em 1814, tendo sido nomeado em 1816 consultor da Corte de Apelação.

Mas havia, também, a literatura. Na apresentação de uma das edições da novela (ed. Imago), Fernando Sabino ressalta que Hoffmann “se firmou como escritor com suas histórias de mistério e terror, que o tornaram conhecido e aclamado como um dos mais expressivos novelistas alemães”, chegando a influenciar, ao longo do tempo, grandes escritores, como Baudelaire, Maupassant, Poe, Wilde, Dostoievski, Álvares de Azevedo e Fagundes Varela.

O Homem da Areia reúne as principais características dos textos de Hoffmann: seu senso do grotesco, do mórbido, do fantástico, do sobrenatural. Nesta pequena novela, dividida em três partes – na verdade, três episódios – observa-se, com o desenrolar da história, a transmutação do narrador: este não é mais Natanael, Clara ou Lothar, tornando-se onisciente. A primeira parte tem início com Natanael contando a seu amigo Lothar acerca de alguns fantasmas que o acompanham desde a infância.

O mais terrível deles é o Homem da Areia, entendido por Natanael como “um homem mau, que vem procurar as crianças que não querem ir para a cama. Joga punhados de areia em seus olhos, que tombam ensanguentados, e os carrega para a lua para alimentar seus netinhos”. Ou seja, dificilmente haveria algo de mais horripilante para ficar entranhado na mente de uma criança. Além disso, Natanael responsabiliza o advogado Coppelius pela morte do pai – ambos, Coppelius e o pai, praticavam secretamente a alquimia. Natanael, posteriormente, convence-se de que Coppola, o mercador de barômetros, não era Coppelius travestido, chegando inclusive a afirmar: os dois “só existem em minha mente, fantasmas de meu próprio eu, e se transformarão em pó desde que eu os reconheça como pó”. Com o passar do tempo, porém, os eventos vão confirmando algumas das inquietações iniciais de Natanael.

Sem dúvida, a terceira parte da novela é a mais fascinante, pois é ali que as suspeitas de Natanael se concretizam. Há, também um inquietante relacionamento entre o personagem principal e um autômato, programado para executar quase todas as operações. Justamente esse autômato é o responsável pelo desfecho, de certo modo inesperado, da trama.

Fernando Sabino, na mencionada apresentação de O Homem da Areia, insiste em destacar a extraordinária intuição de Hoffmann ao penetrar nos domínios do subconsciente, não hesitando em classificá-lo como o “verdadeiro precursor das explorações da moderna psicologia”. Não sei se o texto de Hoffmann chega a tanto. Mas está repleto de situações que se encontram próximas do absurdo e da melhor literatura de terror existente – aquela que revive o Homem da Areia que está latente em cada um de nós.

*Afrânio Catani, professor aposentado na USP e professor visitante na UFF, é autor, entre outros, de Origem e Destino: pensando a sociologia reflexiva de Bourdieu (Mercado de Letras).

Publicado originalmente no extinto Jornal da Tarde, em 31 de outubro de 1986.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Ronald Rocha Marilia Pacheco Fiorillo Leda Maria Paulani Igor Felippe Santos Sergio Amadeu da Silveira Manuel Domingos Neto José Raimundo Trindade José Machado Moita Neto Marcelo Guimarães Lima Tadeu Valadares Vinício Carrilho Martinez Remy José Fontana João Lanari Bo Celso Favaretto Luciano Nascimento Jean Pierre Chauvin Ricardo Musse Chico Alencar Thomas Piketty Marcelo Módolo Dennis Oliveira Walnice Nogueira Galvão Fábio Konder Comparato Ricardo Fabbrini Gabriel Cohn Alexandre de Oliveira Torres Carrasco João Sette Whitaker Ferreira Fernando Nogueira da Costa Érico Andrade Annateresa Fabris Berenice Bento Tarso Genro Henry Burnett Ladislau Dowbor Maria Rita Kehl Samuel Kilsztajn Luiz Roberto Alves Rubens Pinto Lyra José Dirceu Sandra Bitencourt Daniel Brazil João Carlos Salles Andrew Korybko Armando Boito Flávio R. Kothe Caio Bugiato Luiz Eduardo Soares Liszt Vieira Paulo Martins Fernão Pessoa Ramos Claudio Katz Ronald León Núñez Carla Teixeira Lincoln Secco Antônio Sales Rios Neto Milton Pinheiro Matheus Silveira de Souza Jean Marc Von Der Weid Elias Jabbour Alexandre de Freitas Barbosa Dênis de Moraes Alysson Leandro Mascaro Boaventura de Sousa Santos Gerson Almeida Eleutério F. S. Prado Lorenzo Vitral Luiz Bernardo Pericás Valerio Arcary Michel Goulart da Silva Yuri Martins-Fontes Paulo Nogueira Batista Jr Benicio Viero Schmidt José Costa Júnior Manchetômetro Bruno Fabricio Alcebino da Silva Everaldo de Oliveira Andrade João Paulo Ayub Fonseca Marcus Ianoni Bento Prado Jr. Gilberto Lopes Luiz Carlos Bresser-Pereira Atilio A. Boron Ronaldo Tadeu de Souza Vladimir Safatle Gilberto Maringoni Kátia Gerab Baggio Renato Dagnino Marcos Aurélio da Silva Rodrigo de Faria Slavoj Žižek Marjorie C. Marona Leonardo Boff Plínio de Arruda Sampaio Jr. Luís Fernando Vitagliano Paulo Fernandes Silveira Vanderlei Tenório Daniel Costa Jorge Branco Ricardo Abramovay Alexandre de Lima Castro Tranjan Mário Maestri Chico Whitaker Flávio Aguiar Michael Löwy Eleonora Albano José Geraldo Couto Heraldo Campos Eliziário Andrade Ari Marcelo Solon Tales Ab'Sáber Andrés del Río Antonino Infranca Valerio Arcary João Feres Júnior Otaviano Helene Celso Frederico Bruno Machado Anselm Jappe Carlos Tautz Paulo Capel Narvai Paulo Sérgio Pinheiro Michael Roberts Bernardo Ricupero João Carlos Loebens Luiz Renato Martins Francisco Fernandes Ladeira Priscila Figueiredo Juarez Guimarães Osvaldo Coggiola Daniel Afonso da Silva André Singer José Micaelson Lacerda Morais André Márcio Neves Soares Eduardo Borges Ricardo Antunes Afrânio Catani Francisco de Oliveira Barros Júnior Lucas Fiaschetti Estevez Luis Felipe Miguel Eugênio Trivinho Airton Paschoa Julian Rodrigues José Luís Fiori Eugênio Bucci Leonardo Avritzer Leonardo Sacramento Francisco Pereira de Farias Rafael R. Ioris Antonio Martins Mariarosaria Fabris Luiz Marques Marcos Silva João Adolfo Hansen Denilson Cordeiro Jorge Luiz Souto Maior Alexandre Aragão de Albuquerque Henri Acselrad Luiz Werneck Vianna Marilena Chauí Salem Nasser

NOVAS PUBLICAÇÕES