Por RENATO PERISSINOTTO*
O negacionismo científico dos bolsonaristas é apenas uma dimensão de sua ideologia. O que eles recusam não é somente a ciência, mas as relações de “autoridade” em geral, tal como elas se configuram nas sociedades contemporâneas
– Mas é verdade, como Arkádi Nikolaitch nos disse há pouco, que o senhor não reconhece nenhuma das autoridades? O senhor não crê nelas?
– Por que haveria de reconhecê-las? E em que vou acreditar? Quando me dizem alguma coisa que preste, eu concordo, e pronto.
(Pais e filhos, Ivan Turgueniev)
A terra é plana. Quem ousaria proferir essa afirmação em público há alguns anos? Como seria possível aceitá-la depois de tantas evidências contrárias, antigas, modernas e contemporâneas? Várias outras afirmações que negam fatos amplamente conhecidos e desvendados pelas ciências são ditas hoje em dia pelas hostes bolsonaristas sem a menor cerimônia: o nazismo é de esquerda; não houve ditadura militar no Brasil; o holocausto nunca ocorreu, a covid-19 é apenas uma gripezinha ou Dória é comunista. Um discurso negacionista ampliado à enésima potência com a ajuda da internet.
Esse é um ponto fundamental desse roteiro surreal que vivemos desde 2018. Fossem essas afirmações apenas o produto do cérebro de um presidente de um triste país tropical, então poderíamos nos dedicar apenas a lamentar a nossa própria sorte até as próximas eleições. Mas não. Milhões de pessoas acreditam nisso; milhões de pessoas mobilizam esse discurso, inclusive para ir às ruas em defesa do presidente e de suas falas. Esse discurso não é, portanto, a simples expressão de uma idiossincrasia pessoal, mas um fenômeno social de direito próprio. Mesmo agora, em meio à desastrosa condução da crise sanitária, a avaliação positiva do governo permanece estável, em torno de 30%[i]. É fundamental, portanto, saber por que e como um discurso sem sentido (do ponto de vista da ciência, mas não dos seus portadores) preenche de sentido a vida de milhões de pessoas.
Parafraseando um dito contemporâneo, é a ideologia, estúpido! Ideologia entendida, nesse caso, não apenas no seu sentido estreito de preferências político-partidárias, mas como um conjunto difuso de crenças e valores que constituem, ao mesmo tempo, um modo específico de representação do mundo possibilitado por certas posições sociais e a arma ideacional utilizada coletivamente pelos ocupantes dessas posições na luta política contra seus opositores. A ideologia cumpre, assim, uma dupla função: rotineiramente, fornece às pessoas as categorias mentais a partir das quais interpretam o mundo e os problemas práticos que se lhes apresentam; em períodos mais agudos de luta social, serve para orientar ações coletivas politicamente engajadas. Nos dois casos, sempre contribui para estabilizar ou contestar formas de organização da vida social e, por essa razão, é um componente essencial das relações de poder. Dessa forma, a ideologia não é uma mentira ou uma falsidade à qual se opõe um conhecimento verdadeiro (ainda que suas afirmações possam ser contestadas pela ciência). A ideologia pode até mesmo utilizar o conhecimento científico com vistas a revelar o que lhe interessa e deixar à sombra o que lhe desagrada, isto é, o que não se encaixa na sua estrutura argumentativa. Enfim, na medida em que a ideologia corresponde a uma dada condição social e permite aos indivíduos viverem-na, ela não pode ser vista simplesmente como um erro. Ela é, sem dúvida, parcial, enviesada e interessada (mais pelos seus efeitos do que pelo seu uso consciente), mas é também a lente que nos permite viver no mundo que nos cabe. Nesse sentido, ao contrário do que dizem os bolsonaristas, somos todos portadores de ideologias, eles inclusive.
Entendida nesses termos, cabe a pergunta: que condição social seria essa que permite naturalizar proposições absurdas (reitero, à luz do conhecimento científico)? O que há de específico entre os bolsonaristas que os leva a atribuir sentido a um discurso sem sentido (quando testado à luz de conhecimentos já amplamente consagrados)? Que condição social permite que um discurso completamente contrário aos achados recentes e antigos da ciência tenha tamanha e singela aceitação? A resposta a essa questão passa antes por um esclarecimento. Na verdade, penso que o negacionismo científico dos bolsonaristas é apenas uma dimensão de sua ideologia. O que eles recusam não é somente a ciência, mas as relações de “autoridade” em geral, tal como elas se configuram nas sociedades contemporâneas.
Mas por que seriam os bolsonaristas propensos a essa atitude negacionista? Para responder a essa questão temos que especular um pouco a partir de alguns dados apresentados por diversas pesquisas sobre as manifestações de rua desse grupo. Esses dados sempre mostram que o principal apoio a Bolsonaro (nas manifestações de rua e não no público eleitor em geral) vem de homens com escolaridade e renda acima da média da população brasileira. Os dados mostram ainda que, entre os bolsonaristas mais radicais (isto é, aqueles dispostos a investir tempo e energia nas mobilizações de rua e que formam o “núcleo duro” bolsonarista), apenas um pequeno contingente é formado por funcionários públicos, sendo a esmagadora maioria composta por empregados com carteira, autônomos, empresários e aposentados, ou seja, pessoas que tiram sua sobrevivência do mercado[ii]. Como essa posição social produz aversão às várias formas de autoridade?
Uma resposta possível me parece ser a seguinte: frustração e ressentimento. A meu ver, terraplanismo, posturas anticientíficas, olavismo e a evidente aversão que os bolsonaristas explicitam frente a todas as instituições do “sistema” que pretendem combater são um amálgama de contradições que expressam um tipo de desespero social e político. É o desespero do homem médio, razoavelmente bem situado, mas nunca ouvido com a atenção de que se julga merecedor; do homem médio que, economicamente, ganha o pão de cada dia submetido à lógica implacável do mercado; daquele contingente de pessoas que percebe sua existência econômica como um permanente andar sobre o fio da navalha, sem estabilidade, sem garantia de que sua renda será mantida nos meses seguintes e sem qualquer política que lhe dê segurança; do homem médio que não é consultado para nada, afastado de um sistema político que o reconhece apenas como eleitor, de joelhos perante um Estado extorsivo que sistematicamente lhe nega compensações na forma de serviços públicos; do homem médio ressentido pelo avanço social e político daqueles antes submissos ao seu poder; enfim, um “sujeito” que, paradoxalmente, controla cada vez menos a própria vida.
Essas pessoas olham para as autoridades políticas e percebem nelas apenas um festim de privilégios que lhes cabe sustentar com o suor do seu rosto (as aposentadorias precoces dos políticos, a estabilidade dos funcionários públicos, a corrupção sem punição, o auxílio moradia dos juízes, as políticas assistencialistas e eleitoreiras); olham para a democracia e veem uma farsa que tende a sistematicamente contrariar seus anseios e que dá espaço demasiado aos desprovidos de mérito; olham para a autoridade da ciência e veem uma trupe de tecnocratas arrogantes a definir políticas e orientações às quais lhes cabe apenas obedecer (é bom lembrar que Bazárov, o personagem de Turgueniev na citação acima, é um bolsonarista com sinal trocado, um crente fanático na ciência que desconhece qualquer outra fonte de autoridade); olham para os direitos trabalhistas e veem um privilégio injustificável que, em vez de ser concedido a todos, deve ser universalmente suprimido; olham para os direitos das minorias e enxergam a usurpação do seu direito de mandar. O mundo está contra eles e esse mundo é um mundo de instituições e autoridades cujo funcionamento é visto como um limite sempre em expansão aos seus impulsos de satisfação econômica e política. Enfim, querem ser (re)empoderados por meio de um retorno às formas tradicionais de autoridade. Estado, democracia, autoridades, ciência, movimentos sociais, feministas, gays, tudo isso representa uma pedra no muro de contenções que produz frustração e mais frustração nesse universo mental. A recusa da ciência é apenas uma faceta dessa recusa geral de um “sistema” de autoridades completamente fora do seu alcance.
Frustrados e ressentidos, os bolsonaristas pretendem promover aquele “deslocamento sísmico emocional” a que se refere um estudioso do fascismo, expropriando o campo progressista do discurso transformador e promovendo uma retórica de terra arrasada: é preciso acabar com tudo o que está aí; é preciso limpar completamente o terreno e colocar tudo abaixo; todas as forças que contrariam os seus anseios devem ser destruídas de modo que se abra caminho para a participação direta do “povo” em todas as instâncias da vida social (o que é o negacionismo senão a participação direta desse “povo” no debate científico?). E essa participação direta desse povo virtuoso, puro e orgulhoso de si (Sennet falaria de um “orgulho satânico”), que se vê como honesto até a medula, que enxerga qualquer aproximação com as instituições como uma contaminação, essa participação só pode ser viabilizada (afinal, mesmos os bolsonaristas sabem das dificuldades práticas de uma democracia direta) por meio do líder incorruptível, antissistêmico, puro e honesto, de um líder cuja grosseria é apenas a manifestação de sua virtude original, não contaminada (ainda) pela sua atual posição no “sistema”. O discurso proveniente dessa obsessão pela pureza, pela limpeza generalizada a ser protagonizada pelo “povo” através do “mito”, será necessariamente um discurso de raiva e de ódio.
Na fala ressentida, belicosa e intolerante do bolsonarista muitas palavras serão ressignificadas para dar vasão aos seus anseios de pureza. Se somos puros e o mundo é impuro, então precisamos de um termo que identifique a “sujeira”. Foi assim que a palavra “comunista” perdeu totalmente o seu sentido original e hoje, no Brasil, pode ser aplicada tanto para designar um militante de um partido leninista como também o governador de São Paulo, João Dória. O espanto que essa operação argumentativa nos causa deixa de existir quando percebemos que “comunista” agora significa apenas o “outro”, aquele que pensa diferentemente de mim ou, para ser mais preciso, que não pensa exatamente como eu (já que João Dória é muito pouco diferente dessa trupe) e, portanto, deve ser destruído porque, se não é idêntico a mim, é necessariamente contra o ideal de pureza que eu represento. Paradoxalmente, “comunista”, outrora um revolucionário, passa a ser todo aquele que, contra eles, defende a ordem e as instituições.
Se tudo isso faz algum sentido, duas observações são importantes. A primeira delas é que nem todos os que partilham das mesmas condições sociais serão inequivocamente adeptos dessa ideologia. Todos os teóricos que lidam com esse problema mostram como é vão o esforço de encontrar uma correspondência ponto a ponto entre posição social e ideologia. O processo de socialização dos indivíduos é demasiadamente complexo e heterogêneo para que se possa fazer esse tipo de afirmação francamente irrealista; mesmo os que aderem a uma certa ideologia não o fazem da mesma forma nem com a mesma intensidade. Além disso, não apenas os grupos sociais e seus membros estão submetidos a situações complexas, como também as ideologias não são totalidades coerentes e monolíticas. Ficaria por explicar, então, por que pessoas com os mesmos atributos sociais dos bolsonaristas não se deixam seduzir por essa mesma ideologia ou, se sucumbem à sua sedução, por que não adotam a mesma orientação radical e destrutiva.
Do ponto de vista da luta política, isso significa que corações e mentes dos bolsonaristas podem ser objetos de disputa (o olavismo, por exemplo, na sua incansável “batalha cultural”, sabe que é disso que se trata). Os grupos sociais que hoje se entregam ao bolsonarismo não devem ser vistos como um terreno para sempre ocupado. Penso até mesmo que na sanha destrutiva de alguns, nesse desejo de colocar tudo abaixo, há algo de “potencialmente” progressista, a saber, a sempre salutar desconfiança em relação às autoridades (políticas, científicas, culturais etc.), já que, como sabemos, a confiança absoluta e cega nas instituições e nas autoridades é um terreno fértil para experiências totalitárias. O problema bolsonarista é que, no caso de alguns deles, a desconfiança assumiu dimensões mórbidas e estritamente destrutivas. Ainda assim, creio ser possível pensar que essa rebeldia antissistêmica poderia ser, por assim dizer, retrabalhada por um campo político progressista de modo a canalizar para outras lutas a energia que ela libera. Talvez seja otimismo em excesso, mas é preciso conhecer as fontes sociais da frustração dos bolsonaristas para que possamos lhes ofertar outra perspectiva política.
Nessa batalha por corações e mentes, um ponto de partida talvez potencialmente promissor é explorar aquilo que é característico de toda ideologia, a saber, sua “contradição performativa”. No caso dos bolsonaristas (como de qualquer um que busque o rompimento total com tudo o que está aí), é sempre problemático articular coerentemente aquilo que se diz com aquilo que se faz. Essa dificuldade cresce exponencialmente no caso do líder máximo. O presidente luta todos os dias para manter o seu discurso ideológico o mais coerente possível: ataca o tempo todo todas as instituições; critica o congresso, critica os deputados e senadores, critica governadores, critica o sistema eleitoral; critica a OMS, deixa todos os procedimentos usuais de lado para falar diretamente ao “povo”. Ao mesmo tempo, se rende às instituições porque não pode deixar de fazê-lo; beneficia com privilégios atrás de privilégios os interesses mais consolidados da sociedade brasileira (os grandes empresários e os bancos); pratica, ele e sua família, os mesmos velhos “delitos” das raposas tradicionais; entrega cargo, negocia com o “centrão”, faz, enfim, a velha política (a demissão de Sérgio Moro é a mais contundente manifestação atual dessa contradição performativa bolsonarista). Essa contradição insolúvel é um dos terrenos em que Bolsonaro deve ser sistematicamente atacado. Evidentemente, isso não basta, sobretudo porque a um bolsonarista, como para qualquer indivíduo apaixonado, a prova do erro do “mito” tende a funcionar, pelos menos inicialmente, como o seu contrário, como evidência de sua virtude. Mas a contradição performativa é potencialmente desestabilizadora e deve fazer parte de um contradiscurso permanente que ofereça uma saída dessa encruzilhada entre o “autoritarismo dos outros” (os políticos, os técnicos, os cientistas, os movimentos sociais) e o autoritarismo deles (o do “povo”), que permita tirá-los do colo do fascismo e da aliança entre classes médias e classes dominantes que este pressupõe. Um bom começo seria conter o nosso desejo de ridicularizá-los e tentar entendê-los, sem jamais tolerar sua sanha autoritária e violenta.
*Renato Perissinotto é professor de ciência política na UFPR. Autor, entre outros livros, de Classes dominantes e hegemonia na República Velha (Unicamp).
- S. Agradeço a Adriano Codato, José Szwako e Vinicius Figueiredo pela leitura e comentários.
Notas
[i] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/05/12/cntmda-avaliacao-negativa-de-governo-bolsonaro-chega-a-434.htm
[ii] Como exemplo, ver http://dagobah.com.br/pesquisa-na-avenida-paulista-durante-o-26-de-maio-de-2019/