O parque do Bexiga

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Por JAIR SANCHES MOLINA JR.*

A área do Bixiga foi preservada pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp).

Em 14 de março deste ano, o ex-prefeito em exercício da cidade de São Paulo, vereador Eduardo Tuma, tentou vetar o projeto de lei que criará o Parque do Bixiga com argumentos equivocados e de maneira rasa ao citar que: 1) parques são planos de competência privativa do Executivo e 2) haveria uma despesa de “grande vulto” na justificativa proposta pela Câmara Municipal de São Paulo, de autoria de Gilberto Natalini e coautoria de 25 vereadores de diferentes partidos.

Localizado a 760 metros do nível do Oceano Atlântico, o Parque do Bixiga tem o tamanho aproximado a um campo de futebol com 10.800 metros quadrados.

Situado na área central de São Paulo, entre as ruas Abolição, Jaceguai, Santo Amaro, Bixiga e Japurá, no setor 06, da quadra 56, no Subdistrito da Sé, atualmente avista-se um cenário desértico tomado por terra no chão e sem paredes nem teto ou qualquer edificação: um sítio arqueológico.

À maneira das áreas verdes da floresta de Mata Atlântica desmatadas da antiga Chácara do Bexiga, os rios Saracura, Anhangabaú e Bixiga se tornaram poluídos e estão canalizados nos subterrâneos do bairro, dando lugar ao asfalto das avenidas 9 de Julho e 23 de Maio, ruas Humaitá e Japurá e Vale do Anhangabaú.

A partir da década de 1970, a prática viciada da demolição de prédios históricos do bairro, iniciada com a construção do Elevado (rodovia inspirada em freeways e autobahns estrangeiras), segue com o empreendimento estruturado pelo Grupo Silvio Santos, que passou a comprar e demolir casas, moradias, vilas e edifícios históricos da cidade.

A área do Bixiga foi preservada pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp), na Resolução n˚ 22, em 2002. Apesar da clareza, diversos patrimônios históricos foram demolidos no bairro após a Resolução de 2002 nas ruas Abolição e Jaceguai, justamente na área localizada onde encontra-se o Parque do Bixiga.

O edifício público da Fazenda do Estado de São Paulo, na Rua da Abolição, altura do número 415, esteve sob a responsabilidade administrativa do Conselho do Patrimônio Imobiliário da Secretaria do Governo do Estado de São Paulo entre 1990 a 2006. Com área de terreno de 768 m² e área de construção de 5.121 m², o edifício público foi vendido para o Grupo Silvio Santos em 2006 e demolido pelo mesmo grupo entre os anos de 2008 e 2009.

Após solicitação via acesso à informação pública, até o presente momento o Governo do Estado de São Paulo, ex-proprietário da área, não conseguiu encontrar nem as plantas arquitetônicas do patrimônio que esteve sob sua responsabilidade.

Outro edifício histórico era o Templo Israelita Brasileiro Ohel Yaacov, a primeira sinagoga de São Paulo, na Rua da Abolição, entre 457 a 473. Fundada em 1924 pela comunidade judaica Israelita Sefaradi, a sinagoga foi inaugurada em 1928 e reformada em 1961. Muitos imigrantes judeus de diferentes nacionalidades do mundo todo vieram para São Paulo durante o período entreguerras na Europa, principalmente palestinos e egípcios: os principais fundadores desta congregação.

Apesar do multiculturalismo pacífico representado por judeus e árabes de diversas nacionalidades, o edifício foi vendido e demolido pelo Grupo Silvio Santos, entre 2003 e 2004. Persiste e sobrevive arqueologicamente uma única ruína, que comprova a memória do antigo templo: um muro preservado e uma porta concretada. Seria esse o “muro das lamentações” do templo judaico-paulistano? A “porta da esperança” da comunidade do Bixiga? Ou, simplesmente, a abolição do privatismo e a recuperação de uma área degradada para se tornar área reflorestada em nome da saúde pública?

Em 2006, o Departamento de Patrimônio Histórico (DPH), o Conpresp e a Prefeitura da cidade multaram o Grupo Silvio Santos pela demolição da sinagoga em nome da BF Utilidades Domésticas, em dez vezes o valor venal das duas construções existentes no terreno. Pelo IPCA-IBGE, o valor das multas, em julho de 2020, estaria em 854 mil reais.

Além da emissão das multas, o Conpresp manifestou-se favorável à prestação de contrapartidas e aprovou o projeto para recuperação ambiental nos baixos do Elevado, no trecho entre a Rua da Abolição até a Rua Quatorze de Julho e entorno. Em 2013, o Ministério Público do Estado de São Paulo abriu um processo para investigar o acordo não cumprido entre o Grupo Silvio Santos e o município.

O edifício Ana, na Rua da Abolição, altura do número 483, ao lado da sinagoga, era um edifício residencial com oito apartamentos, todos comprados pelo Grupo Silvio Santos entre 1998 e 2001 e demolidos pelo mesmo grupo em 2003 e 2004. E o edifício Ernesto, na Rua da Abolição, altura do número 499, esquina com Jaceguai, era mais conhecido pelos empórios populares onde se davam animadas rodas de samba em lojas do andar térreo. Os apartamentos residenciais e lojas foram comprados pelo Grupo Silvio Santos entre 1998 e 2000 e demolidos pelo mesmo grupo entre 2003 e 2004.

Entre as inúmeras residências, vilas e edifícios comprados e demolidos na Rua Jaceguai, dois se destacam por integrarem o sítio arqueológico do Parque do Bixiga. A sede da Sociedade dos Homens de Cor, fundada na década de 1970, era conhecida pelas rodas de samba e capoeira no terreiro do quintal comunitário na Vila de Jaci de Fino, na Rua Jaceguai, 556. Em 1982, a vila foi vendida para o Grupo Silvio Santos e demolida nos anos seguintes.

E uma das sedes do Grupo Silvio Santos na Rua Jaceguai, 510, foi demolida pelo próprio grupo imobiliário em 2008, após a data da resolução do tombamento do bairro. Ainda na Rua Jaceguai, no número 520, (re)existe o Teatro Oficina Uzyna Uzona, vizinho ilustre ao parque, considerado o teatro mais bonito do mundo pelo jornal britânico The Guardian. Local onde a diretora franco-brasileira Catherine Hirsch e o autor e diretor Zé Celso Martinez Corrêa são as pontas-de-lança pela preservação do bairro por estarem junto tanto ao cordão Teatro Oficina (grupo fundado em 1958) como a todos os outros cordões e sedes de teatro que existem no bairro e no País.

Oswald de Andrade, morador do Bixiga e um dos líderes do movimento modernista e antropófago, já aspirava por um “teatro de estádio para tornar uma realidade o teatro do amanhã” no manifesto “Do Teatro, que é bom”, em 1943. Na década de 1980, a arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi e o arquiteto Edson Elito apresentam uma versão de área verde reflorestada e teatro de estádio para esta mesma quadra entre a Rua Jaceguai e Abolição. Em 2019, as arquitetas Marília Galmeister, Carila Matzenbacher, Tânia Parma e os arquitetos Marcelo X e Newton Massafumi reafirmam a proposta de Lina, e acrescentam um lago natural para simbolizar o Rio Bixiga, no projeto intitulado Teatro-Parque do Rio Bixiga.

Em relação aos argumentos elencados pelo ex-prefeito no veto em março, algumas observações. Quanto ao primeiro ponto, que os parques deveriam estar previstos em planos de competência privativa do Executivo, tal justificativa desconsidera a legítima possibilidade do Legislativo em se fazer representante das necessidades sociais por áreas verdes e áreas públicas.

De acordo com o Sistema de Áreas Protegidas, Áreas Verdes e Espaços Livres elencado no artigo 268, são diretrizes do Plano Diretor do município, desde 2014:

I – ampliar a oferta de áreas verdes públicas;

II – recuperar os espaços livres e as áreas verdes degradadas, incluindo solos e cobertura vegetal.

Quanto ao segundo ponto do veto, que haveria uma despesa de “grande vulto”, resolvemos levantar cada um dos valores que puderam ser aferidos para a mesma área por diferentes setores da sociedade, a saber: no mercado imobiliário, na prefeitura de São Paulo e nos contratos de compra e venda publicados em cartórios municipais. Dentro das condições mercadológicas e imobiliárias pesquisadas em julho de 2020, haveria um hipotético “potencial construtivo”, estimado em seis mil reais o metro quadrado. E o terreno custaria, aproximadamente, 65 milhões de reais.

Em consulta aos cadastros de imóveis e valores da Prefeitura de São Paulo em julho de 2020, o valor venal dos terrenos está oficialmente aproximado a 42 milhões de reais. Nos contratos de compra e venda declarados nas matrículas publicadas nos cartórios, aplicamos a cada um destes valores uma porcentagem inflacionária até julho de 2020 indicada pelo IPCA-IBGE e encontramos um valor aproximado de 30 milhões de reais pagos pelo grupo aos ex-proprietários dos lotes que formam o terreno atual do parque.

Nos casos em que a propriedade privada não atende a uma função social exigida legalmente, o direito individual do proprietário pode ser relativizado, sofrendo limitações e intervenções do Estado em nome do interesse público, conforme legislação vigente. E, após a Declaração de Utilidade Pública (DUP), o custo do terreno deverá ter um desconto de 30% no valor final para a desapropriação, qualquer que seja o valor definido pelas perícias técnicas da prefeitura e do Judiciário, solicitadas após a sociedade civil confirmar o interesse em declarar esta terra privada em terra pública.

De modo que o montante financeiro necessário (o “grande vulto” citado pelo ex-prefeito) para a desapropriação pública poderá ser obtido tanto pela iniciativa privada Grupo Silvio Santos, pelas irregularidades evidenciadas no local, quanto pela Secretaria do Governo do Estado de São Paulo, através da Fazenda do Estado, que pode ser responsabilizada pela ausência de proteção dos patrimônios históricos, após 2002.

Em tempos de se buscar pelo equilíbrio ecológico, é sempre bom lembrar: a declaração de utilidade pública para a floresta de Mata Atlântica do Parque do Bixiga vem aí.

*Jair Sanches Molina Jr. é pesquisador em Meios e Processos Audiovisuais na Escola de Comunicações e Artes da USP

Publicado originalmente no Jornal da USP.

Referência


ANDRADE, Oswald. “Do Teatro, que é Bom”. In: Ponta de lança. Rio de Janeiro: Editora Civilização, 1971.

 

 

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