Sobre a importância de escutar

Imagem_Stela Maris Grespan
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por Érico Andrade *

Wittgenstein já tinha dito que não existe linguagem privada. Ninguém é proprietário da linguagem. Ninguém é proprietário do tema do racismo. Mas o que devemos aprender é que não podemos falar pelas pessoas sobre a sua experiência subjetiva do racismo e do seu enfrentamento

Ninguém está autorizado a silenciar ninguém. Nem esse é o propósito da crítica estética ao texto da Lilia Schwarcs, nem muito menos é isso que está presente no conceito de lugar de fala. Ir por esse caminho afasta o debate de dois pontos centrais da discussão que se entrelaçam. O lugar do discurso intelectual em relação aos movimentos sociais e os limites da experiência subjetiva do racismo.

Uma crítica importante ao texto de Lilia Schwarcs é ao ar professoral que o texto exala. Ele está presente nos imperativos que o recheiam e no subtítulo, não colocado pela autora: “tem que entender”. A intelectualidade que não percebe isso no texto, como Wilson Gomes, parece subscrever, diferentemente da própria autora, que o intelectual tem o poder de normatizar os movimentos sociais: a sua dinâmica e a sua pauta. Ora como justificar a assertiva de Lilia Schwarcs que assere que a juventude negra não vai se reconhecer na obra de Beyoncé? É nesse ponto que opera o conceito de lugar de fala e que parece que a intelectualidade insiste em fazer vistas grossas. Ao afirmar a priori qual será a recepção do público negro de uma obra, produzida por uma cantora negra, Lilia Schwarcs se autorizou a falar pela negritude. Isto é, ela toma a palavra das pessoas negras para falar por elas sobre a recepção de uma obra de uma artista negra.

Esse me parece ser o ponto. Ou seja, Lilia Schwarcs como qualquer pessoa branca não apenas pode como deve falar sobre a produção cultural e intelectual da negritude porque o racismo embora seja uma criação dos brancos, ele só pode ser desfeito numa relação dialética que envolva pessoas brancas e negras. O racismo precisa ser falado, conversado por todas as pessoas, mesmo por aquelas que não estão ligadas diretamente ao movimento negro como afirma estar Maria Rita Kehl. Então, o lugar de fala não é para silenciar as pessoas brancas quanto às questões negras ou só permitir que elas falem apenas quando forem próximas de pessoas negras, mas é para orientá-las a não falar pelas pessoas negras da experiência subjetiva da negritude.

E aqui entro no segundo ponto: a experiência subjetiva do racismo. Fanon é contundente quando narra a experiência por meio da qual ele tornou-se negro. O caráter fenomenologicamente subjetivo dessa experiência não é acessível às pessoas brancas. É por isso que as pessoas brancas não podem falar, desde o ponto de vista subjetivo, da experiência existencial do racismo. Isso, contudo, não quer dizer que elas não possam falar sobre o racismo como uma estrutura social de opressão, nem muito menos que elas não podem ter empatia pela causa negra. Aliás, elas devem falar disso e avaliar em que medida não estão reproduzindo essas estruturas.

Wittgenstein já tinha dito que não existe linguagem privada. Ninguém é proprietário da linguagem. Ninguém é proprietário do tema do racismo. Mas o que devemos aprender é que não podemos falar pelas pessoas sobre a sua experiência subjetiva do racismo e do seu enfrentamento. E isso não impede ninguém de discutir esteticamente uma obra produzida por pessoas negras, mas apenas pontua que não se deve falar por elas sobre o modo como irão recepcionar a obra. O que escapa da branquitude é essa experiência subjetiva do racismo. Sobre ela a branquitude não pode falar e, parafraseando Wittgenstein, é melhor escutar.

*Érico Andrade é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Alexandre Aragão de Albuquerque João Lanari Bo Fábio Konder Comparato Alexandre de Lima Castro Tranjan Boaventura de Sousa Santos José Micaelson Lacerda Morais Fernão Pessoa Ramos Andrew Korybko Luciano Nascimento Ronald Rocha Luiz Carlos Bresser-Pereira Eduardo Borges Osvaldo Coggiola Sandra Bitencourt Valerio Arcary Vinício Carrilho Martinez Heraldo Campos Walnice Nogueira Galvão Alysson Leandro Mascaro Celso Favaretto José Costa Júnior Gabriel Cohn José Geraldo Couto Luiz Bernardo Pericás Eugênio Bucci Fernando Nogueira da Costa Tarso Genro Sergio Amadeu da Silveira Mariarosaria Fabris Michel Goulart da Silva Eleutério F. S. Prado Marcos Aurélio da Silva Celso Frederico Claudio Katz Otaviano Helene Antonio Martins Vanderlei Tenório Annateresa Fabris Tadeu Valadares Jean Marc Von Der Weid Julian Rodrigues Slavoj Žižek Plínio de Arruda Sampaio Jr. Daniel Costa Jorge Luiz Souto Maior Ricardo Antunes Lincoln Secco Renato Dagnino Henri Acselrad Everaldo de Oliveira Andrade Ricardo Abramovay José Dirceu José Raimundo Trindade Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Jean Pierre Chauvin Luiz Renato Martins André Singer Vladimir Safatle Gilberto Maringoni Thomas Piketty Leonardo Sacramento Bernardo Ricupero Atilio A. Boron Lucas Fiaschetti Estevez Igor Felippe Santos Armando Boito Flávio R. Kothe Gerson Almeida Carlos Tautz Dênis de Moraes Ari Marcelo Solon Samuel Kilsztajn Marilena Chauí Elias Jabbour Afrânio Catani André Márcio Neves Soares Bruno Machado Milton Pinheiro Benicio Viero Schmidt Luiz Roberto Alves Paulo Sérgio Pinheiro Ricardo Musse Luiz Marques Manuel Domingos Neto Ronaldo Tadeu de Souza Flávio Aguiar Yuri Martins-Fontes Denilson Cordeiro Carla Teixeira José Luís Fiori João Adolfo Hansen Luis Felipe Miguel Remy José Fontana Érico Andrade Paulo Capel Narvai Lorenzo Vitral Rafael R. Ioris Valerio Arcary Marjorie C. Marona Luís Fernando Vitagliano Paulo Fernandes Silveira Eleonora Albano Manchetômetro Marcelo Módolo Marcos Silva Marcelo Guimarães Lima Paulo Nogueira Batista Jr Ronald León Núñez Juarez Guimarães Salem Nasser Chico Alencar Paulo Martins João Carlos Salles Airton Paschoa Mário Maestri Francisco Pereira de Farias Gilberto Lopes Marilia Pacheco Fiorillo Rodrigo de Faria Michael Roberts Andrés del Río Bento Prado Jr. Berenice Bento Kátia Gerab Baggio Caio Bugiato Leda Maria Paulani João Paulo Ayub Fonseca Marcus Ianoni Rubens Pinto Lyra Liszt Vieira Daniel Brazil Bruno Fabricio Alcebino da Silva Eugênio Trivinho Ricardo Fabbrini João Carlos Loebens Tales Ab'Sáber Antônio Sales Rios Neto Maria Rita Kehl Chico Whitaker Luiz Eduardo Soares Leonardo Boff Luiz Werneck Vianna João Sette Whitaker Ferreira Dennis Oliveira Daniel Afonso da Silva Michael Löwy Henry Burnett Matheus Silveira de Souza João Feres Júnior Priscila Figueiredo Jorge Branco Anselm Jappe Leonardo Avritzer Alexandre de Freitas Barbosa Francisco Fernandes Ladeira Antonino Infranca Francisco de Oliveira Barros Júnior Eliziário Andrade José Machado Moita Neto Ladislau Dowbor

NOVAS PUBLICAÇÕES