Por RENATO NUCCI JR. & LEONARDO SACRAMENTO*
O termo pobre de direita é um meio de segmentos da esquerda se livrar da responsabilidade que têm pela situação política e social que nos encontramos
Um espectro ameaçador ronda a realidade brasileira: o espectro do pobre de direita. Contra ele se unem a intelectualidade progressista, segmentos médios que despertam para a luta política e até mesmo parte da esquerda institucional, que encontraram no termo um meio de se livrarem da responsabilidade que têm pela situação política e social que nos encontramos. Viram no termo um meio eficaz de ocultarem seu papel de ala esquerda do grande arranjo conservador que domina a economia, a política e a cultura brasileira.[i]
Mas quem é o pobre de direita? Sucintamente seria um sujeito que, apesar de sua condição de explorado, votaria ou apoiaria até com certo grau de consciência, medidas e projetos políticos contrários aos seus interesses. O pobre de direita seria o principal responsável pela reprodução da sua miséria.
Não foi possível saber quem inventou o termo, mas ele começa a circular pelas redes sociais pelo menos desde 2018. Quem mais o difundiu foram blogs e sites de esquerda que passaram a empregá-lo como uma espécie de ressentimento contra os setores populares que apoiaram o impeachment de Dilma, as reformas regressivas de Temer e a eleição de Bolsonaro. Mas, a ideia de utilizá-lo como categoria científica é de Jessé Souza, a quem existiria uma ideologia a priori para a classe trabalhadora. Aqui temos o primeiro erro, um mergulho no idealismo repleto de aspectos moralistas.
Quando a ideologia da classe dominante não foi a ideologia hegemônica? O paralelismo idealista pressupõe que, necessariamente, a classe trabalhadora deveria votar em candidatos que Jessé considera de esquerda – o que tem sentido diferente para o autor, como veremos abaixo. Se existisse esse paralelismo, esse correspondentismo exato, a surpresa seria com a classe média, que vive bem em seu condomínio ou prédio com porteiro no centro das cidades e se propõe a ser de uma esquerda limitada em processos de transformação. Se vive bem, deveria ser de direita, e não de uma esquerda, mesmo politicamente limitada. Sob esse paralelismo sem sentido, se o pobre de direita é uma excrescência, a classe média de esquerda é uma excrescência ainda maior.
Esse paradoxo só se desfaz se o autor considerar que a consciência é o fator determinante para a assunção de uma ideologia. Logo, o sujeito estudado seria um ser consciente que romperia com a alienação cotidiana, restando aos trabalhadores precarizados serem “pobres de direita” enquanto a classe média branca caminha ao paraíso.
Atribuindo-lhe quase um status científico, o fato é que o conceito pobre de direita é um não-conceito. É imprestável para explicar a realidade, pois no fundo expressa uma condenação moral: a culpa pela pobreza e miséria das massas não seria do capitalismo, mas do próprio pobre de direita, principal responsável pela reprodução da sua miséria. Seu pressuposto intrínseco é a da condição adjudicada da consciência de classe, imputando-lhe determinada forma de interpretar e agir sobre a realidade.
Trata-se muito mais de uma expectativa criada por setores médios da intelectualidade sobre como as classes sociais, principalmente os pobres, que não são uma classe, mas uma condição de vida que existe em maior ou menor quantidade de acordo com a realidade da classe trabalhadora de cada país, deveriam se comportar política e eleitoralmente. Se os pobres não se comportam como esperado pela intelectualidade, atribui-se a isso um comportamento irracional, como um desvio moral coletivo de natureza patológica.
Blogs, sites e editoras estão se especializando nessa anticiência porque, assim como autoajuda e coaching, possui público cativo que moralmente se arvora como dotados por natureza de superioridade moral. De quebra, preserva a política econômica do governo de críticas, colocando movimentos sociais e a classe trabalhadora como bodes expiatórios para os fracassos da esquerda socialdemocrata.
Mas, quem está pelejando na militância política classista há bastante tempo não se surpreende com a existência de posições politicamente conservadoras no interior da classe trabalhadora. Essa é a situação mais comum. Na maior parte do tempo, reinam a confusão, a apatia e a despolitização. Algumas lutas por reivindicações imediatas por salários e outras melhorais até são feitas. Mas, a consciência de classe para si, que assume uma condição revolucionária cujo sintoma aparece quando os de baixo não querem mais viver como viviam e os de cima não conseguem mais mandar como mandavam, só aparece em condições históricas muito específicas. E isso porque a classe trabalhadora, pelo simples fato de ter que trabalhar, é incapaz de viver em estado de permanente mobilização. Ela só atinge esse estágio quando luta pelo poder de Estado.
Quem exibiu surpresa com esse comportamento supostamente anômalo foram segmentos médios influenciados por um liberalismo de esquerda, que despertou para a luta política a partir da conjuntura aberta nas Jornadas de Junho de 2013. Esse despertar foi acompanhado, ao mesmo tempo, por um refluxo nas lutas de natureza operária e popular, resultado da reforma sindical e da profunda desregulamentação do mercado de trabalho por ela causada, cuja consequência devastadora é o alto grau de informalidade, precarização e individualização das relações de trabalho. O espaço da luta popular foi ocupado por esses setores médios, com demandas de natureza democrática pouco vinculadas ao conflito capital x trabalho, ou por ampliação de políticas públicas universais como educação e saúde. O golpe contra Dilma em 2016 e a vitória eleitoral de Bolsonaro em 2018 acentuaram a consciência em torno das questões democráticas.
Para esses segmentos, ao emergirem para a luta social, eram-lhes incompreensível que os pobres pudessem manifestar posições de direita. Por isso algumas linhas acima identificamos no uso do não-conceito pobre de direita a ideia da condição adjudicada da consciência. Porque qualquer manifestação fora dos efeitos pertinentes que ela deveria gerar só podem ser explicados por um desvio moral ou mesmo patológico. O pobre de direita seria mais uma das jabuticabas brasileiras; um produto típico da iconoclastia nacional.
Contudo, Piketty (Capital e Ideologia, 2020) demonstra que o fenômeno da “pobre de direita” não é uma peculiaridade brasileira. Tanto na Europa como nos Estados Unidos se observaria, desde a década de 1980/1990, uma mudança no perfil sociológico dos eleitores socialdemocratas. De partido amplamente apoiado no voto da classe trabalhadora, transformou-se “no partido dos diplomados no ensino superior” (2020, p. 47).
As razões dessa mudança são complexas. Mas sua hipótese para esse deslocamento é a de que “as categorias populares foram pouco a pouco se sentindo abandonadas pelos partidos de esquerda, que teriam, progressivamente, se voltado para outras categorias sociais (e, sobretudo, para os com maior grau de instrução)” (2020, p. 653).
Por ser um socialdemocrata clássico, Piketty não vai a fundo às causas subjacentes desse divórcio. Mas o fato, admitido parcialmente por ele, é de que há um giro da socialdemocracia ainda maior à direita do espectro político depois da debacle do campo socialista. Num contexto de constantes políticas de ajuste neoliberal, a socialdemocracia se tornou peça fundamental na aplicação de medidas que causaram um aumento na desigualdade social.
O economista situa o deslocamento das classes populares à direita por estas se sentirem “abandonadas pelos partidos de esquerda”. A responsabilidade dos partidos de esquerda nessa situação fica diluída, pois o distanciamento destas e das classes populares é resultado de uma “sensação” de abandono.
Sem a ameaça do campo socialista, que ao desaparecer em vários países fez esfumaçar a perspectiva anticapitalista representada pelo movimento comunista, a socialdemocracia não precisou mais cumprir seu papel de força política de contenção do movimento operário através de concessões econômicas. Se ocorreu um deslocamento à direita das classes populares e dos segmentos mais precarizados e empobrecidos da classe trabalhadora é porque há um deslocamento idêntico da socialdemocracia, que se tornou uma espécie de administradora do ajuste neoliberal com uma face mais humana, transformada em expressão político-ideológica de segmentos de renda médios e de uma certa intelectualidade orientada por uma ideologia liberal de esquerda.
É no papel cumprido pelos partidos que pretendem reformar o capitalismo, mas que o reformam não em favor do trabalho, mas do capital, é que parece residir a funcionalidade do não-conceito pobre de direita. Porque se o fenômeno é descrito como parcelas do povo que votam ou apoiam candidatos e políticas contrárias aos seus interesses, fazem-no porque a socialdemocracia, quando chega ao governo, governa contra os interesses populares. As diferenças políticas ficam diluídas e mesmo alternativas de rompimento ao menos com o neoliberalismo são bloqueadas.
Como e por que Jessé Souza se tornou representante da “esquerda esclarecida”
O PT realizou nos últimos trinta anos uma viragem epistemológica. Substituiu trabalhadores por pobres, tornando o projeto de intervenção da esquerda brasileira, a partir de 2006, sobretudo após a crise imobiliária de 2008 e o aumento das commodities em virtude do crescimento chinês a partir de 2000, em um problema de renda. Vigorou o marketing da “nova classe média”, propagandeando aos quatro cantos o sonho do “empreendedorismo individualista” que prometia ao trabalhador sair da classe trabalhadora, ou na perspectiva da Teologia da Prosperidade, sair da classe que sofre.
Desigualdade é um produto da exploração. Ignorando a categorização, pode-se facilmente tratar a exploração como resultante da desigualdade e da pobreza, como aconteceu com as explicações mais aceitas no petismo. Exploração seria uma superexploração para além dos limites considerados socialmente aceitos, e não a relação entre capital e trabalho. Como exemplo dessa corrente, pode-se analisar o caso de Jessé Souza, para quem a burguesia não teria um projeto nacional.
Importante pontuar que Jessé Souza não é marxista. Considera-se socialdemocrata antissocialista, como disse expressamente no livro Elite do Atraso. Para tanto, o autor trata a Alemanha como uma idealização de sociedade, uma espécie de utopia socialdemocrata. Contudo, a Alemanha é a Alemanha tão-somente porque se consolidou como potência imperialista no século XIX. Depois no século XX por intermédio de seus complexos industriais-financeiros. Apesar do neoliberalismo soft dos governos conservadores e socialdemocrata, ainda consegue manter relações salutares entre os seus cidadãos dentro de suas fronteiras, dispondo de mecanismos de participação dos trabalhadores no controle e nas decisões de suas empresas.
Mas o que seria da Volkswagen no Brasil sem a sua cooperação com a Ditadura Civil-Militar e o seu desapego aos dispositivos de participação dos trabalhadores brasileiros justamente no controle e nas decisões, bem longe do padrão “democrático” alemão para os alemães? O que seria do ilibado suíço e da social-democracia semiprivada suíça em todo o século XX se não fossem os recursos da lavagem de dinheiro de quase toda a burguesia planetária e de sua participação bancária no financiamento do tráfico de africanos nos séculos anteriores? Ou o que seria da eficiência do Estado francês sem a sua experiência genocida na Argélia, no Vietnã e no roubo sistemático de países africanos, como Costa do Marfim e Senegal? Será que a segurança energética dos franceses na segunda metade do século XX existiria sem Niger, Burkina-Faso e Mali, países que tiveram o seu urânio e outros minerais roubados por décadas?
Esse tipo de análise sobrevive se os conceitos de imperialismo, divisão internacional do trabalho e exploração forem ignorados. Segundo o autor, foi de sua experiência pessoal na Alemanha que formou o seu fundamento teórico, o seu tipo ideal: “o capitalismo regulado e não o socialismo estatizado era a forma mais perfeita de organização social” (SOUZA, 2017, p. 158).
Curiosamente, a sua experiência individual produz falseamentos em virtude da idealização sobre o alemão e a classe média progressista. Trata-se de um falseamento que leva a posições políticas não muito diferentes da buarquiana, como se houvesse uma hereditariedade histórica, um pecado original, o que é diferente de entender quais estruturas no escravagismo superestruturam o modo de produção capitalista e como: “A escravidão, como vimos, dificultava a formação de famílias negras e combatia qualquer forma de independência e autonomia do escravo. Não é por acaso, portanto, que nossos pobres tenham famílias monoparentais e tenham dificuldade de desenvolver um padrão que reproduza a contento os papéis de filho, pai e irmão de toda família de classe média” (SOUZA, 2017, p. 99).
Além de subverter a análise bourdeuniana, Jessé Souza faz uma contra-análise: a composição familiar como elemento fundante de reprodução, e não a reprodução como elemento fundante e estrutural da composição familiar. Há pesquisas de antropologia que demonstram o papel das relações econômicas na composição familiar dos trabalhadores, como as realizadas sobre os efeitos do Bolsa Família na redução da taxa de natalidade e no empoderamento da mulher.
O elemento fundante da reprodução do escravismo é o direito à propriedade e à coisificação, reproduzido na família ou na não família, uma vez que todos eram propriedades. Entretanto, não é esse o elemento fundante do modo de produção capitalista contemporâneo. Jessé conclui que a dificuldade das famílias negras de “desenvolver um padrão que reproduza a contento os papéis de filho, pai e irmão de toda família de classe média” se deve a uma herança escravagista, uma herança da história plasmada na dificuldade e no comportamento de negros, como se fosse transmissão de um imperativo criado no escravagismo que continua como inconsciente coletivo nos negros.
Para tanto, acaba por ignorar os mecanismos de controle sobre as mobilidades da burguesia e da classe média sobre os trabalhadores negros. Aqui temos um péssimo uso de Bourdieu e uma percepção racializada sobre os trabalhadores negros baseada em uma hipótese intangível e não provada, a da transmissão cognitivo-comportamental dos escravizados aos negros, por gerações a fio, no que se refere à composição familiar.
A necessidade de Jessé em provar que o liberalismo e o marxismo compartilham de mesmo ponto de partida, o combalido “economicismo” (SOUZA, 2017, p. 87), fê-lo construir uma análise compartimentada em um weberianismo mecanicista. Não faz o que Bourdieu fez, a crítica à transformação da cultura dominante, uma entre muitas, em A Cultura, que estrutura todas as culturas, transformando-as em subculturas ou não culturas. Ou seja, não é possível desvincular cultura e ideia das relações materiais. A desnaturalização depende da análise econômica, ou do “economicismo”, como diz o autor, o que não faz porque compreende a realidade com uma grande luta de ideias e moralidades.
E é aqui que temos a maior falsificação de Jessé. Sua defesa pela socialdemocracia passa por uma experiência individual quando, ainda jovem, residia na Alemanha. Para ele, o que viu foi o que julgou ser a sociedade mais perfeita, em que o “presidente da Mercedez-Benz poderia ter sido meu médico também”, expressando-se no “orgulho dos alemães de não terem uma saúde diferenciada para cada classe social”.
Isso sem “comprometer a eficiência e o dinamismo da economia como um todo”, diferenciando-se dos economistas brasileiros: “O mantra de nossos economistas conversadores desde sempre, de que é necessário achatar o salário dos trabalhadores para se ter crescimento econômico, mostrava sua falácia. A Alemanha que conheci como jovem refletia riqueza por todo lado. O país possuía, como ainda hoje possui, de quatro a cinco grandes corporações de alta tecnologia em todos os ramos industriais de importância. Quase sempre com capital dividido entre o Estado e o capital privado. Para mim, aquilo tudo era como a realização concreta do ‘paraíso comunista’ de Karl Marx: a cada um segundo a sua necessidade. Aprendi que o capitalismo regulado e não o socialismo estatizado era a forma mais perfeita de organização social” (JESSÉ, 2017, p. 157-158).
Ocorre que o capitalismo regulado somente pode dar certo em um país se este subordinar os capitais e as forças de trabalho de outros países por meio da exportação de capitais, do rentismo e da desregulamentação da relação capital-trabalho no país periférico. No mesmo período que Jessé teve a sua experiência transcendental, praticamente todas as grandes empresas alemãs participavam da Ditadura Civil-Militar brasileira. Essa conclusão só é possível em virtude de o imperialismo não existir como categoria analítica. Por conseguinte, não existe movimentação de capitais, desigualdade de valor da força de trabalho, e, se existe, é como se fosse obra exclusiva da moralidade de suas elites locais.
Sua experiência pessoal na Alemanha, a qual teria forjado seu pensamento político, fê-lo acreditar que a socialdemocracia alemã estava assentada na inteligência de sua elite enquanto a elite brasileira representava o seu oposto, a qual, como afirmara em A Tolice da Inteligência Brasileira (2015), atribuiria um comportamento pré-moderno para os trabalhadores brasileiros, fazendo com que não surgisse uma ordem “democrática e competitiva”. Logo, na Alemanha haveria uma ordem “democrática e competitiva”, mesmo que suas empresas explorassem ao redor do planeta, como no Brasil nas décadas de 1970 e 1980 – será que os alemães enxergavam um comportamento pré-moderno sobre os brasileiros, assim como a elite brasileira, enquanto Jessé vivia o seu sonho socialdemocrata de uma sociedade “democrática e competitiva”?
O problema do Brasil seria a constituição de uma modernidade periférica fundamentada em um conjunto de valores sócio-morais, ou um habitus desvinculado da “existência prévia de um contexto cognitivo e moral explícito, articulado e autônomo que possa se contrapor, limitando ou estimulando, a lógica própria dos imperativos funcionais que emanam de práticas institucionais consolidadas” (2006, p. 100). Em suma, faltaram valores que pudessem construir, com a Proclamação da República de 1889, uma sociedade “competitiva”.
Em contrapartida, Jessé idealiza as sociedades europeias e a “belle époque”, objeto de crítica de Thomas Picketty por não ter qualquer relação factual com processos de redução da desigualdade e da concentração de renda. Em O Capital no século XXI, Picketty conclui que “a natureza formal do regime tem pouco peso em comparação à relação de desigualdade r > g” (2014, p. 356), no qual r é renda de capital e g é crescimento econômico.
Conclui o francês que somente rupturas exógenas podem atuar efetivamente contra a concentração. No caso europeu, foram duas guerras de grandes proporções e o medo do comunismo. Não foi inteligência, moralidade, competitividade e racionalidade. Se a guerra for entendida humanitariamente como irracionalidade, resta concluir que sobrou irracionalidade. A idealização, como vimos, passa por uma adolescência feliz em Heidelberg e o esquecimento da ação dos capitais alemães pelo mundo, inclusive no Brasil.
O que Jessé possui, no fundo, é um ressentimento por não existir uma elite brasileira como ele projeta idealisticamente, que fosse comparável à elite alemã que viu para os alemães. No fundo, é um viralatismo que diz tanto combater. A mesma elite alemã explorava e matava ao redor do planeta sem qualquer constrangimento, como vimos com a Volkswagen no Brasil, sua aliança com a ditadura civil-militar e sua fazenda de escravizados durante as décadas de 1970 e 1980, agora processada pelo Ministério Público do Trabalho.[ii] A Siemens estabeleceu as suas fábricas no Brasil justamente na Ditadura, com o bônus de não ter movimento sindical e deter controle absoluto sobre o valor da força de trabalho. A BAYER apoiou Pinochet e a BASF se consolidou no Brasil em contexto idêntico a Siemens. Fica fácil construir uma sociedade “perfeita”, como afirmou Jessé, quando capitais de outros países, produzidos pela escravização e controle absoluto sobre a força de trabalho assalariada, são transferidos aos alemães para financiarem a sua “socialdemocracia” para os alemães brancos.
Para Jessé, a permanência de um modelo altamente concentrador de recursos seria explicada pelas elites brasileiras com base em justificativas que atribuem suas causas a um comportamento pré-moderno da maioria da população. Logo, seria este o motivo principal para uma ordem “democrática e competitiva” não ter sido forjada em nosso país, naturalizando-se por esse meio as desigualdades sociais. Logo, seria um problema de uma elite má e atrasada. Mais uma vez, o moralismo é o parâmetro analítico.
Por isso, Jessé foi coerente em sua análise sobre as famílias negras, pois os “nossos pobres” possuiriam dificuldade de fazer famílias porque a escravidão teria plasmado algo em suas mentes, que se se imporia em negros independente dos condicionantes sociais. Os “nossos” pobres é um ato falho interessante de quem não é pobre e se vê em outro polo, seja de classe, seja no âmbito da consciência. É só mais uma posição racista e conservadora disfarçada de progressista, como quase todo o progressivismo. É diferente do que a elite brasileira concluiria?
Jessé não para por aí. Constatando que o seu sonho socialdemocrata alemão estava em ruínas diante do avanço do neoliberalismo, responsabilizou as líderes feministas: “Os grandes aliados de guerra contra os sindicatos foram o desemprego tornado estrutural possibilitando a ‘flexibilização’ do regime trabalho, por um lado, e a massiva entrada do trabalho feminino, que foi percebido como ‘libertação’ por muitas líderes feministas” (SOUZA, 2017, p. 158- 159). O problema é que foi. O capital caminha para a universalização da força de trabalho sem retirar as suas diferenças sociais – reproduzindo-as em desigualdade –, o que permite ao capital potencializar o exército industrial de reserva e se distribuir entre as diferentes taxas de exploração, uma vez que as diferenças/desigualdades devem estar cristalizadas na reprodução da força de trabalho. É a uniformidade desigual da força de trabalho. Uma mera citação sobre exportação de capitais alemães ou mesmo a implantação de políticas alemãs em favor do capital seria suficiente para não responsabilizar o movimento feminista pelo fim do sonho socialdemocrata na Alemanha.
Mas é em seu livro mais recente, O Pobre de Direita: a vingança dos bastardos, que toda essa concepção preconceituosa sobre o trabalhador brasileiro se revela. Jessé tem uma conclusão apriorística: o problema da esquerda está no trabalhador branco sulista e no trabalhador negro evangélico. Por quê? Porque teriam sido o reduto do bolsonarismo na última eleição. Por isso, ignora o Nordeste, região que por toda a década de 1990 votou no PSDB, enquanto o sul e regiões do sudeste votavam em peso no PT. A sua premissa precisaria responder por qual motivo os trabalhadores nordestinos votavam no PSDB e passaram a votar no PT e como os trabalhadores do sul e do sudeste passaram a votar em peso em candidatos de oposição ao PT, inclusive em centros industriais. Mas os dados em Jessé são tratados de forma imóvel e estática.
Sem critérios estabelecidos e superação de contradições e paradoxos nas escolhas das varáveis, ele registra as entrevistas nos próprios capítulos, míseras seis entrevistas de sulistas, sendo uma mulher, e seis entrevistas de evangélicos, sendo duas mulheres. Por óbvio, a quantidade ínfima de entrevistas não permite qualquer generalização sobre o país.
De toda forma, ignorando essas questões, o argumento central de Jessé está pautado no ressentimento do branco sulista e no moralismo do negro periférico evangélico, desvinculando os seus votos da questão econômica. O PT, portanto, representaria o negro e pobre, enquanto o branco sulista ressentido se identificaria com Bolsonaro. Mais uma vez, essa hipótese deveria ter enfrentado o fato de o Nordeste sempre ter votado, da redemocratização a 2002, no PSDB. Por si, a sua hipótese não passaria por uma banca rigorosa de mestrado, por exemplo. Há claramente um erro ao não se confrontar com um dado básico. O que teria acontecido com o Nordeste? Eis o que Jessé ignora. E não importa se é por lapso ou propositadamente. O não confronto invalida a sua hipótese por completo.
Em nenhum momento do livro Jessé faz qualquer análise entre crise do capitalismo, financeirização, desindustrialização, precarização e avanço da extrema-direita, assim como não realiza qualquer crítica ao PT por não fazer qualquer enfrentamento ao mercado financeiro. Ao contrário, trata, sem explicitar, o PT como se fosse um partido que fizesse necessariamente oposição aos financistas, ignorando todos os ajustes do arcabouço fiscal de 2023 e do corte de investimentos sociais no ano de 2024.
Se antes o problema moral era a elite, agora o problema moral é o “pobre de direita”, o trabalhador que não enxerga o quão a esquerda socialdemocrata financista é boa para ele. E por que não enxerga? Porque o trabalhador é moralista. Para Jessé, temos uma classe trabalhadora aquém moralmente e intelectualmente da esquerda ilustrada que reside nos centros das capitais brasileiras.
Em participação no programa Na Linha, em 13 de dezembro, Jessé Souza afirma: “A principal luta política é a luta sobre a hegemonia das ideias dominantes. O que me dá um desespero é que a gente tem dirigentes na esquerda, no campo democrático, que parece não entender isso. O cara não vê um palmo além do próprio nariz, não tem nenhuma coisa de longo prazo […] O tema do conhecimento, ele é fundamental e essa batalha tem que ser travada.”[iii]
É coerente. Se não existe imperialismo, exportação de capitais e apropriação de capitais dos países centrais sobre os periféricos, por que existiria luta de classes? Existe prioritariamente a luta de ideias. Quais ideias? As relativas da socialdemocracia alemã? Se as ideias dominantes são da classe dominante, é detalhe fortuito e sem relevância. O sociólogo passa a ser, portanto, a principal representação de uma classe média que se declara progressista e de esquerda, independentemente de seu real significado político, que lutaria no campo das ideias em favor da classe trabalhadora, apesar da classe trabalhadora. Como dizia há 18 anos, é um problema cognitivo que se expressaria em uma completa inexistência de “pré-condições cognitivas para um desempenho adequado ao atendimento das demandas (variáveis no tempo e no espaço) do papel de produtor, como reflexos direitos no papel de cidadão” (2006, p. 170). Se é um problema cognitivo, é um problema moral, agora direcionado à classe trabalhadora.
O não conceito de “pobre de direita” mimetiza uma espécie de autorredenção dessa classe média sobre a sociedade brasileira, expurgando os seus pecados políticos em nome de uma posição mais conciliatória, sobretudo no âmbito da economia política. A extrema-direita avançaria, por conseguinte, por moralidade e ideias, como se tivessem sido criadas por geração espontânea, sem qualquer vínculo com as relações sociais e econômicas, mas com enorme capacidade de se impor sobre as mesmas relações sociais e econômicas.
Essa visão idealista e moralista encontra espaço nos nichos da esquerda mais abastada que não pode, materialmente, ser enquadrada em “pobre de direita”. Jessé ignora ou não dedica nem uma linha para analisar como as forças majoritárias da esquerda brasileira, nas últimas décadas, desistiram de encabeçar até mesmo um projeto reformista digno desse nome. Não possui uma teoria revolucionária do Brasil, condição fundamental para uma prática no mínimo reformista, o que a desprovê da estratégia de realizar profundas transformações políticas e sociais. Seu horizonte político se resume a gerir de maneira “humanizada” a aplicação dos intermináveis ciclos de ajuste ultraliberal.
A consequência dessa conversão ao centro do espectro ideológico faz a esquerda se mover de acordo com os fluxos e refluxos da conjuntura e da cena política. Seu horizonte histórico é curto. Move-se exclusivamente pelo calendário eleitoral, orientada pelo senso comum, por modismos intelectuais, por chavões, pela falta de criticidade. Em resumo, move-se guiada pelo oportunismo eleitoral e defende, de acordo com a conjuntura, as pautas e debates do momento, mas por um viés conservador.
Por fim, o não conceito “pobre de direita” vem sendo instrumentalizado para justificar uma nova guinada à direita da esquerda brasileira, na qual se busca uma conciliação com um suposto e fantasmagórico conservadorismo do “povo brasileiro”, que seria natural e imanente ao trabalhador, demasiadamente religioso, ressentido e moralista. Na prática, o uso do não conceito defende uma espécie de ontologia dos trabalhadores brasileiros, como fez Sérgio Buarque de Holanda, ao mesmo tempo que empodera grupos mais à direita que habitam, por motivos diversos, a esquerda institucional brasileira.
*Renato Nucci Jr. é ativista da organização comunista Arma da Crítica.
Leonardo Sacramento é professor de educação básica e pedagogo do IFSP. Autor, entre outros livros, de Discurso sobre o branco: notas sobre o racismo e o apocalipse do liberalismo (Alameda). [https://amzn.to/3ClPH5p]
Referências
PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução Monica Baumbarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. [https://amzn.to/4grpWj6]
PIKETTY, Thomas. Capital e Ideologia. Tradução: Maria de Fátima Oliva do Coutto. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020. [https://amzn.to/3BQmgZ3]
SOUZA, Jessé. A Construção Social da Subcidadania. Belo Horizonte, UFMG, 2006. [https://amzn.to/3ZPeN4m]
SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira. Editora Leya, São Paulo, 2015. [https://amzn.to/3VNqHuu]
SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017. [https://amzn.to/3BtqqpT]
SOUZA, Jessé. O pobre de direita: a vingança dos bastardos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2024. [https://amzn.to/41J8r9i]
Notas
[i] O presente texto foi elaborado com base nos escritos de Nucci Jr (2016) e Sacramento (2023, cap. VI). Disponível, respectivamente, aqui e aqui.
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