O primeiro dia do resto de nossas vidas

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Por ALEXANDRE DE FREITAS BARBOSA*

Não comungamos do mundo estático dos economistas neoliberais e tampouco do universo tacanho dos cientistas políticos e jornalistas presos à conjuntura

O título deste artigo pretende dar a justa dimensão do significado do dia primeiro de janeiro de 2023, especialmente para um fragmento de geração que compreende os brasileiros nascidos entre 1960 e 1980. Este horizonte temporal pode ser ampliado conforme as vivências de cada um e as suas disponibilidades para o engajamento no processo histórico. Trata-se de uma baliza flexível.

Utilizo aqui uma tirada de Florestan Fernandes – “fragmento de geração”, pois uma “geração é como um saco de gatos, uma vez que existem gatos de todas as cores” –, da qual me apropriei no meu livro mais recente para estudar um grupo de integrantes de outra geração. Nascidos entre 1905 e 1925, eles apostaram no desenvolvimento nacional, concebendo projetos, interpretações e utopias que contribuíram para moldar o país na segunda metade do século XX.

Tais personagens engajados disputaram o sentido da nação durante o Brasil desenvolvimentista (1945-1964),[i] enfrentando-se com outros intelectuais e segmentos de classe, mas também com as estruturas econômicas, sociais e políticas sobre as quais eles atuaram, até serem expulsos das engrenagens de poder no pós-1964, e apenas “oficialmente” do debate público.

Muita água correu debaixo da ponte nos anos subsequentes. No período 1964-1985, as alavancas da acumulação de capital funcionaram a pleno vapor, levando à sociedade mais desigual do planeta e àquilo que Furtado se referiu como um caso de “mau subdesenvolvimento”. Na prática, o subdesenvolvimento foi entronizado e assumiu novas configurações.

Durante os anos 1980, quando o debate econômico ficou circunscrito à conjuntura, erigiu-se a Constituição de 1988, estipulando as bases do “contrato social”. Este contrato foi remodelado durante os anos 1990, especialmente durante a gestão FHC, para dar conta da sua agenda econômica. Não deu certo. Tivemos uma estabilização monetária sem desenvolvimento. Os governos do PT, que vieram em seguida, procuraram ampliar as bases do contrato, estendendo o tapete vermelho para o “mercado” e um amplo arco de forças políticas, enquanto acionavam políticas públicas de inclusão social e recuperavam, em alguma medida, o papel do Estado.

Vivemos então um ciclo expansivo e na baixa do ciclo caímos num alçapão, que liberou todos os traumas da sociedade brasileira. Não era uma caixa de Pandora, mas um verdadeiro esgoto, resultante da transmutação de uma sociedade escravista numa sociedade capitalista dependente.

Por baixo da superfície dos indicadores louvados pelas gestões petistas, estava uma estrutura social armada em torno do mandonismo e da dominação de classe e de status. A acumulação de capital nas suas várias formas, desde as mais primitivas até as mais modernas, avançou repleta de tensões. Em seguida, os bárbaros invadiram a cena.

Ainda precisamos entender como políticas de domesticação do capitalismo à brasileira, sem reformas de estrutura e sem penalização dos estratos dominantes, ou talvez por isso mesmo, fizeram rugir o monstro? Com a sua truculência característica, o demo empenhou-se em destruir o contrato de 1988 e as bases de convivência democrática – isso, nunca é demais lembrar, numa das sociedades mais desiguais do planeta.

A resposta à pergunta acima deve ser dada, daqui em diante, na práxis e na “teoria”, uma modelando a outra, dialeticamente. Depois da Nova República (1985-2016) e do interregno não republicano (2016-2022), um novo ciclo da história se inicia e não temos tempo a perder. Vinte anos depois da primeira posse de Lula podemos realizar uma inflexão na história brasileira, a ser completada pelos que nasceram depois de 1980.

O “nós”, portanto, refere-se ao fragmento de geração nascido entre 1960 e 1980, alguns dos quais viveram o crepúsculo da ditadura militar e a campanha das Diretas Já, enquanto os mais jovens já se encontravam em idade madura quando Lula assumiu o poder em 2003. Situado geralmente à esquerda, nos seus vários matizes, do espectro político, e incorporando hoje segmentos importantes do centro, este “nós” atua nas universidades, nos movimentos sociais, em carreiras do Estado, nos vários tipos de imprensa e nas mais variadas profissões, manuais e intelectuais, dando densidade à vida social brasileira.

Não se sugere aqui um conflito intergeracional. Muito pelo contrário. Os nascidos antes e depois desta baliza podem e devem comparecer com suas experiências e repertórios na luta por um país mais justo, inclusive assumindo posições de liderança nas suas respectivas searas, tanto no governo como na sociedade. Estes fragmentos de geração podem se soldar, a partir das suas várias posições sociais, fortalecidas ou enfraquecidas durante o ciclo 1985-2022, gestando assim um novo bloco histórico.

A título de ilustração, se nos concentramos apenas nos ministros do novo governo, mais de 2/3 se enquadram na baliza temporal sugerida, percentual que se mostra ainda mais elevado nos quadros de segundo ou terceiro escalão, como também nos postos estratégicos da sociedade civil.

Por meio de uma consciência política, de classe (raça e gênero) ou de contraelite, enraizou-se neste amplo fragmento de geração, uma concepção de processo histórico. De que o passado resiste e o futuro se constrói a partir de projetos e disputas travados no presente.

Como nos ensina Marc Bloch,[ii] o passado não é “a ciência do passado”. O conceito mais amplo de “duração” impede fracionar o passado e destacá-lo do presente. Na prática, a fronteira se desloca constantemente, o passado sempre compondo com o presente – “um instante que morre uma vez parido” – para dar o ar da sua graça ou da sua miséria. Na irreversibilidade do seu élan, o tempo histórico é “o plasma onde se banham os fenômenos, assim como a sua intelegibilidade”.

Portanto, a ação motivada pela compreensão histórica, e vice-versa, é o caldo de cultura em que nos movemos, transcendendo o imediatismo e olhando adiante na linha do horizonte. Em face dos constrangimentos estruturais de todos os tipos, o “onde” queremos chegar é o que importa. Se Lula simboliza a capacidade de renovação, ressignificando-se e reconectando-se com a história, “nós” representamos a matéria viva que é capaz de impulsioná-lo adiante, para além do mero apaziguamento de conflitos.

Não comungamos do mundo estático dos economistas neoliberais, com suas análises binárias, e tampouco do universo tacanho dos cientistas políticos e jornalistas presos à conjuntura, onde tudo se transforma em manobras para assegurar a “governabilidade”. Sabemos que o redencionismo rastaquera da extrema direita reacionária veio para ficar e que a sua superação exige, além das ações coordenadas do novo governo, de muita formação política e cidadã, especialmente para os deserdados do sistema.

Portanto, se os mais velhos e os mais jovens fazem parte desta história, o sentido de suas vidas ultrapassa o ciclo que se inicia, pois estamos falando de uma trajetória que transcende o tempo curto. O que será do Brasil e do mundo nos próximos vinte anos – caso as contradições de nossa sociedade tiverem chegado num outro patamar – depende do que está sendo gestado a partir do primeiro de janeiro de 2023, o primeiro dia do resto de nossas vidas.

Ou este fragmento de geração se dedica de corpo e alma à refundação nacional, conciliando desenvolvimento, democracia e redução das desigualdades, ou o que criamos como professores, estudantes, militantes de movimentos sociais, representantes de entidades profissionais e de classe, quadros do Estado, artistas e intelectuais, corre o risco de tornar nossas existências desprovidas de sentido.

Quando Getúlio Vargas voltou à presidência, depois de seu “exílio” no Sul entre 1945 e 1950, pediu à sua filha Alzira que se informasse sobre os jovens que estavam na máquina do Estado, dotados de informações sobre o país e com ideias novas. Da mesma forma, Lula, depois da prisão ilegal e da campanha presidencial, se depara com um país diverso daquele que deixou em 2010. Mas agora o conhecimento não está mais restrito ao “Estado”, tal a diversidade de narrativas, propostas e concepções formuladas nos diversos poros de nossa sociedade.

Uma das características da nossa sociedade tão desigual é que, apesar da desigualdade, ou talvez por conta dela, estamos munidos de quadros competentes e compromissados, cujo principal desafio é justamente combatê-la em todas as suas dimensões e manifestações, inclusive incorporando mais recentemente segmentos importantes que a sofreram diretamente na pele.

Durante o interregno não republicano, aprendemos a seguinte lição: apenas “nós” somos capazes de governar o Brasil – o que não se faz apenas atuando no “governo” –, emprestando assim novo sentido às nossas vidas e às daqueles que nos inspiraram e não mais aqui estão. Nossas trajetórias – fundadas na luta pela solidariedade e no pleno aproveitamento da criatividade e da diversidade da cultura brasileira – encontram-se atadas a este novo ciclo histórico.

Por isso, o primeiro de janeiro é o primeiro dia do resto de nossas vidas, o que vale também para aqueles cujas atividades profissionais transcendem o espaço propriamente dito da política. Seu papel é estratégico, pois a política precisa encontrar novos ancoradouros nesta sociedade, que não é a mesma de Florestan Fernandes, Celso Furtado e Darcy Ribeiro.

Compreender que sociedade é esta para transformá-la significa subir a rampa com Lula, Raoni e os demais representantes desta civilização neolatina, mestiça e negra. Eu estava lá, no gramado da esplanada, na minha cidade natal, rodeado por gente de todas as cores, origens sociais e territórios que dão sentido à nossa nacionalidade feita de múltiplas caras. A cadela vira-lata Resistência zanzava para lá e para cá, sem qualquer complexo, carregando consigo uma nova promessa de país. Mais atrás vinham o presidente e o vice, suas mulheres, e os representantes do povo a passarem a faixa para Lula, o “guerreiro do povo brasileiro”, como entoávamos num coro repleto de lágrimas.

No dia seguinte, depois dos discursos do presidente, contundentes como pediam o momento, tivemos as falas de vários dos novos ministros. Brasília era uma festa! – que começou antes do dia primeiro, e se estendeu adiante.

Uma semana depois da posse, algo que ninguém esperava, mas muitos temiam, as hostes errantes de desordeiros destruíram os palácios dos três poderes, os mesmos que mancomunados feriram a democracia no dia 17 de abril de 2016.

No apagar das luzes do interregno não republicano, as cores verde e amarela avançaram como um monstro hediondo destruindo o patrimônio nacional. Enquanto isso, o capitão passeava na Disney, repetindo o seu bordão “a nossa bandeira jamais será vermelha!”, abraçado ao Tio Patinhas. O seu ódio, destilado durante seis anos, desde o arroto com que pronunciou o seu voto contra Dilma, comporta apenas destruição.

Quando um novo ciclo histórico se inicia, ele se faz sobre os escombros daquele que se encerra. Os sinais se misturam. Três dias depois da marcha sobre a esplanada, Anielle Franco e Sônia Guajajara assumiram as suas pastas. Retomamos a narrativa. O turbante e o cocar tomaram posse.

É difícil delinear no momento da onda a sua trajetória. O único que podemos dizer é que não podemos ficar de braços cruzados. As primeiras semanas de 2023 devem ser vistas como um caleidoscópio da nossa história, juntando passado e futuro, que como num jogo de várias combinações comportam as possibilidades do nosso presente.

A bola está conosco e temos de longe o melhor time, apesar de estarmos atrás na tabela. Mas não existe jogo fácil. O jogo precisa ser jogado, comandante Lula. Estamos a postos. Trazemos o coração nas chuteiras e não hesitaremos em propor mudanças nas escalações e nos esquemas táticos. Afinal, ganhamos juntos. Chegou a nossa vez. O seu governo inaugura o primeiro dia do resto de nossas vidas.

*Alexandre de Freitas Barbosa é professor de economia no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). Autor, entre outros livros, de O Brasil desenvolvimentista e a trajetória de Rômulo Almeida (Alameda).

Notas


[i] BARBOSA, Alexandre de Freitas. O Brasil Desenvolvimentista e a trajetória de Rômulo Almeida: projeto, interpretação e utopia. São Paulo: Alameda, 2021.

[ii] BLOCH, Marc. Apologie pour l’histoire ou métier d’historien. Paris: Dunod, 2020, p. 69, 74-75, 83-84.

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