Por DANIEL AFONSO DA SILVA*
O ano de 2024 inteiro passou sem uma palavra ao encontro de nosso memorialista maior. Abandono. Indiferença. Silêncio. Exato contrário diante do estrondo de 1972
Estrondo: barulho, barulho alto, ruído forte, rumor prolongado. Furacão, ventania, tempestade. Estampido. Rompendo harmonias. Estocando convenções. Sacudindo estruturas. Secas e molhadas. Tragédia e novação. Transtorno e convulsão. Quase nunca em salvação. Quase sempre em mutação. Anunciando tempo feio. Sem alvorada nem dias bom.
Foi isso que se viu, sentiu, agiu no Brasil naquele distante 1972. Ano triste. Que, em definitivo, não foi bom. Ano-símbolo do milagre econômico. Quando o país cresceu muito e cresceu bem. Mas – em adendo – matou muita gente também. Era o momento mais cruento do regime. Linha dura e braço forte.
Era o apogeu da presidência do general Médici. Muito aquém do Brasil Potência e muito além do Pra frente Brasil.
A referência era o pau de arara. Sentando a pua. Sem moderação nem escrúpulos. Aliás, dizia-se “as favas escrúpulos de consciência”.
A transição do período Castello Branco, do AI-1 e da promessa de retornos civis em 1965 – agora, em 1972 – não passava de quimera fugidia. O empilhamento de Atos Institucionais havia deformado qualquer possibilidade de volver a los 17. O frescor da boa bossa anterior desmanchava-se – Ato após Ato – no ar. “Brigas nunca mais” virava saudades. Saudades mil. Inauguradas na incontinência do adeus.
Adeus sorrisos dos tempos de JK. Adeus ilusões das vésperas de 1964. Adeus desafinados com algum coração. Pois, doravante, nos peitos dos desafinados os corações deixavam de bater.
Os filhos da pátria foram tornados filhos da outra. E, por determinação, eram obrigados a calar-se. “Cale-se”.
Era assim, foi assim. Um momento tíbio. Triste. Confuso. 1972.
Com o pior – sem o melhor – de todos os carnavais. Cheio de enredos e sinais. Agonias, anomias. Reinações de 1937-1945, 1946, 1954, 1961, 1964 e, claro, 1968. Estado Novo e depois. Anos de chumbo. Nervos de aço. Corações arpoados, diminuídos em ternura e sem Celly Campelo pra consolar.
Gilberto Gil estava Back in Bahia. Havia retornado em Expresso. Banhado de calor, cor, sal, sol. Mas era pouco. Muito pouco. Tudo era pouco. Até que “a terra parou”.
E parou não por um dia nem por uma só semana. A terra parou por gerações inteiras, pela eternidade, por momentos atemporais. Tudo por conta de um livro: Baú de Ossos. Uma intenção: Memórias. E um autor: Pedro Nava.
Todos sabem e o mundo viu: foi tempestade. Otto Lara Resende acentuou se tratar de “livro fundador, no sentido de que é um livro que sozinho dá notícia da cultura. Mais importante para a literatura brasileira que Marcel Proust para a cultura francesa. Simplesmente genial”. O poeta maior, cidadão de Itabira, restringiu-se a dizer tudo dizendo apenas “baú de surpresas”. O historiador Francisco Iglésias, também em síntese, tudo diria com “acontecimento”.
Era isso e era assim. Efeméride. Surpresas linha a linha, página a página.
Soco no estômago. Aturdimento integral.
Quem com algum cultivo do espírito entendeu logo do que se tratava. Baú de Ossos era a chave necessária para se abstrair e ignorar instantaneamente a existência da presidência Médici, aquela gestão horrenda, aquele Brasil sem destino e aquele povo sem razão. Eis o caráter perturbador da obra, fornida em camadas.
Quem com mais cultura viajou por ela, arrepiou-se, olhou para trás e ficou perplexo. O melhor da mais alta memorialística brasileira de todos os tempos – Nabuco, Graciliano, Gilberto Amado – transpirava em todas as partes. A começar por Minha formação (1900), Memórias de Cárcere (1953) e História de Minha Infância (1954) que pareciam almas gemias de Baú de Ossos. O melhor da interpretação do Brasil – Paulo Prado, Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre – também. Assim como o melhor de todas as Artes. Das artes plásticas ao urbanismo à música. Achegando-se, com firmeza, à poesia e à prosa.
Quem, assim, fechava os olhos lendo Baú de Ossos poderia, em algum momento, abri-los lendo Alguma Poesia. Quem adentrava a trote largo a obra, em alguma curva, perceber-se-ia em Sagarana ou Corpo de Baile. E, não dificilmente, atolado perdido em esquinas de Grande Sertão: Veredas.
Baú de Ossos foi isso: algo espetacular, perturbador, desconcertante. E era apenas o início das Memórias de Pedro Nava que foram concluídas em seis volumes: Baú de Ossos (1972), Balão Cativo (1973), Chão de Ferro (1976), Beira-Mar (1978), Galo-das-trevas (1981) e O Circo Perfeito (1983).
E, mais, Baú de Ossos inaugurou o transe que conduziu a sociedade brasileira letrada a profundas meditações. Que, em sério, até hoje seguem relevantes e aduzem dilemas essenciais contidos em questões como: o momentum 1972 teria alguma equivalência com o momentum 1956 ou com o momentum 1930 – 1930: momentum Drummond; 1956: momentum João Guimarães Rosa?
Com a aceleração da redemocratização, mediante uma abertura “lenta, gradual e segura”, essa reflexão esmaeceu. Mas, para quem escolheu ser gauche na vida, a questão permanece. E, sendo assim, imortaliza Pedro Nava. Que foi prodígio, do início ao fim da vida.
Nascido em Juiz de Fora em 1903, migrou para Belo Horizonte para cursar medicina e passou a integrar, positiva e intensamente, a avant-garde mineira dos anos de 1920. Seus amigos e cúmplices, compagnon de route, eram Emílio Moura, João Alphonsus, Abgar Renault, Afonso Arinos de Melo Franco, Ciro dos Anjos, que criaram A revista, em 1925, que seria um dos mais importantes vetores do modernismo mineiro de braço com o modernismo paulista de 1922.
Pedro Nava foi central nessa publicação. Confeccionando impressões, artigos, críticas e poemas. Sendo O defunto, de 1928, a sua peça poética mais destacada. Que deixou Mário de Andrade desconcertado. E Vinícius de Morais, Manuel Bandeira e Murilo Mendes também. Foi onde ele, Pedro Nava, explicitou a sensibilidade de seu primor.
A ponto de, na época, Mário de Andrade confidenciar a Carlos Drummond de Andrade que “a critiquinha que ele [Pedro Nava] publicou na Revista sobre pintura me deixou impressão forte de espírito bem organizado para crítica”. “Quanto à poesia dele não sei não ainda porém me parece que será o mais batuta de vocês todos. Com a sua poesia” (vide A lição do Amigo, cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, editado por Drummond em 1982).
“O mais batuta de vocês todos. Com a sua poesia.” Poderia ser. Mas não foi. Pedro Nava se dedicaria às ciências médicas, publicando, doravante, majoritariamente, nessas áreas. Deixando absorto o circuito efetivo das altas e belas letras. O seu poema O defunto seria inserido na Antologia de Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos de Manuel Bandeira, em 1946. Mas só. Depois disso, apagão. Todos imaginavam que o médico havia canibalizado o artista. Mas, não.
Perto dos setenta anos ele começou a tornar pública a sua obra maior. Obra de vida, iniciada com Baú de Ossos. Um retrato de “minha gente” (…) “assim como é, racialmente, o retrato da formação de outros grupos familiares do país. Com todos os defeitos. Com todas as qualidades”. Zero clichê e zero estereótipo. E, assim, quase história, quase memória, quase poesia, quase literatura, quase genealogia, quase testemunho, quase documento e quase tudo num só momento. Com forte sátira e formoso engenho. Fazendo seu leitor reviver, aqui e ali, o melhor de Camões, Vieira e Machado. E, ali e acolá, o melhor de Drummond, Rosa, Nabuco.
Aos quarenta anos da morte de Pedro Nava – que morreu dramaticamente na Glória, na cidade do Rio de Janeiro, em maio de 1984, após complicações pessoais moralmente complexas –, espanta o silêncio. 2024 inteiro passou sem uma palavra ao encontro de nosso memorialista maior. Abandono. Indiferença. Silêncio. Exato contrário diante do estrondo de 1972.
*Daniel Afonso da Silva é professor de história na Universidade Federal da Grande Dourados. Autor de Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas (APGIQ). [https://amzn.to/3ZJcVdk]
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