Por SAMUEL KILSZTAJN*
A segmentação da saúde espelha e amplia a desigualdade social, convertendo cidadãos em clientes e a saúde em mercadoria. A verdadeira cura para o sistema só virá com a equidade radical de um SUS único e robusto, financiado por quem mais tem
O Sistema de Saúde no Brasil é hoje segmentado em três categorias – Sistema Único de Saúde (SUS), Planos de Saúde (Saúde Suplementar) e Desembolso Direto. O SUS é universal e gratuito; os Planos de Saúde oferecem serviços mediante pagamento de mensalidades; e o Desembolso Direto é usado em pagamentos por serviço prestado: consulta, exame e internação hospitalar.
Cerca de 150 milhões de brasileiros, 71,0% da população, utilizam exclusivamente o SUS, 23,4% os Planos de Saúde e 5,6% o Desembolso Direto. Existem duas modalidades de Planos de Saúde: para pessoas físicas (individual e familiar); e para pessoas jurídicas (planos coletivos) – que abrangem, respectivamente, 6,2% e 17,2% da população. Vale lembrar que o SUS é responsável pela vigilância epidemiológica e sanitária, vacinas e transplantes.
Os planos coletivos atendem empresas (planos empresariais) e associações (planos por adesão). A maior parte dos Planos de Saúde, 13,5%, é contratada por empresas, tendo seus funcionários e dependentes como beneficiários (algumas empresas pagam os planos integralmente, outras subsidiam apenas uma parcela do valor). As associações (entidades jurídicas de caráter profissional, classista ou setorial) são responsáveis por 3,7% dos Planos de Saúde.

A segmentação do sistema de saúde reflete diretamente a distribuição da renda entre as camadas sociais da população. As camadas de alta renda utilizam principalmente o Desembolso Direto e os Planos de Saúde para pessoas físicas. Os Planos de Saúde empresariais, essencialmente, foram disseminados por pressão dos trabalhadores organizados do mercado formal de trabalho. As camadas de baixa renda ficam sujeitas a filas e longos períodos de espera para consultas e, principalmente, para exames e internações pelo SUS.
As experiências com o SUS são muito diversas. De qualquer forma, os pontos mais críticos do SUS são o subfinanciamento, o acesso e o tempo de espera para o atendimento. Nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), deve-se passar obrigatoriamente e esperar, dependendo da cidade, por cerca de dois meses para ser atendido pelo clínico geral; um tempo variado e longo para ser atendido por um especialista; e outro tempo variado e longo para exames e eventuais internações hospitalares.
No extremo oposto, o Desembolso Direto garante rápido acesso e, para quem pode arcar com os custos, internações hospitalares com hotelaria cinco estrelas. A grande desvantagem do Desembolso Direto, sem falar no dindim, é que tanto a equipe médica como o hospital podem eventualmente confundir uma pessoa com um freguês – o que eu acho um tanto quanto problemático. E, talvez, dado o protocolo e os procedimentos padronizados, a equipe médica nem saiba mais quais são os limites entre a saúde do paciente, por um lado, e seu interesse financeiro e o da instituição para a qual trabalha, por outro.
Vou me permitir, perdoem a ousadia e a indelicadeza, narrar uma experiência minha com o setor automotivo. Não tenho, mas já tive carro e contratei uma companhia de seguros, que me presenteou com um exame gratuito dos amortecedores do automóvel. A empresa luxuosa, instalada em amplo ambiente, possuía impressionantes equipamentos modernos e computadorizados.
Colocaram meu carro sobre um chassis vibrante, colheram desenhos mirabolantes, me entregaram um laudo técnico e disseram, “a decisão é sua, mas o senhor está pondo em risco a sua família”. Contudo, o profissional e incorruptível mecânico Branko Hubsch, que é descendente de mecânicos e pai do Alexandre (que hoje ocupa o posto do Branko, que se aposentou), sentou em cima do capô, chacoalhou o carro e disse, “os amortecedores estão perfeitos, pode viajar sem susto”. E eu ainda corria o risco de a empresa luxuosa trocar os originais do meu automóvel por amortecedores de segunda linha.
Do ponto de vista da saúde, considero que o segmento mais trágico é o dos Planos de Saúde. A equipe médica muitas vezes solicita desnecessários exames e intervenções porque “não vai lhe custar nada” (por outro lado, existem planos que se omitem, que se recusam a autorizar necessários exames e internações). Você não vai pagar nada, mas a clínica vai receber recursos de seu Plano de Saúde e conseguir amortizar os seus equipamentos.
Se você entrar numa clínica ou num hospital para um procedimento prosaico, pode acabar passando por exames “objetivos” que nem os patologistas, nem os clínicos, necessariamente sabem decifrar; e pode acabar sofrendo uma desnecessária intervenção cirúrgica, que também não vai lhe custar nada, nada além de sua saúde.
Os custos financeiros de seus exames desnecessários e internações duvidosas vão ser diluídos entre milhares de usuários e só vão lhe atingir marginalmente nos reajustes anuais dos planos. Mais uma vez, vou me permitir comparar o mercado da saúde com o setor automobilístico, em uma associação livre entre o seguro do automóvel contra sinistros com os Planos de Saúde que são usados para “sinistros” e “manutenção”.
Você contrata um serviço de seguro do carro para cobrir possíveis colisões e, passado um ano, você se dá conta que jogou dinheiro fora, porque não bateu o carro e pagou o seguro desnecessariamente. Você vai sair pelas ruas trombando seu automóvel só para justificar o seguro que pagou, porque não vai ter que pagar o conserto? Você paga seguro do automóvel, assim como o Plano de Saúde, para não usar (sua saúde só vai bem quando você não sente o seu corpo e nem precisa de “manutenção”).
De acordo com a legislação brasileira, as camadas sociais que utilizam o Desembolso Direto e pagam Planos de Saúde ainda se beneficiam deduzindo suas despesas médicas de seus rendimentos tributáveis, isto é, pagam menos imposto de renda.
Embora o Sistema de Saúde seja segmentado, as três categorias – SUS, Planos de Saúde e Desembolso Direto – podem também se sobrepor. A complexidade do sistema de saúde brasileiro, com o SUS garantindo acesso universal e o setor privado complementando ou substituindo os serviços públicos, acaba ainda por propiciar certa promiscuidade entre os seus segmentos – em várias situações, o setor privado da saúde transfere os seus usuários para o SUS (vários planos vêm sofrendo deterioração e há também notificações de rupturas unilaterais de contratos).
Além disso, as parcerias que o SUS tem estabelecido com as OSS (Organização Social de Saúde) para gerenciar as UBS e hospitais, ao invés de melhorar a qualidade dos serviços de saúde, têm colaborado para a precarização do sistema público.
Equidade e democracia
Não existe democracia sem equidade social. A saúde é direito do cidadão e, para acabar com a cultura do privilégio, indigentes e ricaços deveriam contar com o mesmo acesso e cuidados à saúde. Imoral? Sim, privilégios são imorais. O sistema de saúde do Canadá é único no sentido de que os serviços médicos são os mesmos para toda a sociedade.
Todos os cidadãos são atendidos de maneira igualitária, independentemente da classe social. Um político canadense flagrado atravessando a fronteira para tratar de sua saúde nos Estados Unidos vai ter que deixar o seu cargo. Os políticos devem usar os serviços de saúde que propiciam aos cidadãos que representam no governo.
Minha recomendação é que o sistema privado de saúde seja totalmente abolido, tanto o Desembolso Direto como os Planos de Saúde. Que o Sistema Único de Saúde passe a ser único para toda a população, de indigentes a ricaços; que acabem as filas e se resolva o problema do subfinanciamento, do acesso e do tempo de espera para o atendimento do SUS; que se acabe com a dicotomia pessoa e freguês do Desembolso Direto; e que se acabe com o protocolo médico do “não vai lhe custar nada”.
O SUS é financiado por impostos. A taxação dos super ricos e transferência dos recursos para o SUS vão também beneficiá-los de duas formas, porque vão reduzir as suas despesas médicas; e porque eles vão deixar de ser vítimas do sistema privado, além de que, ninguém merece viver se sentindo uma pessoa especial – isso faz mal à saúde.
Mas isso é pura utopia! A realidade, entretanto, foi feita para ser construída. Há muitos interesses “intransponíveis” em jogo, desde a manutenção dos privilégios dos cidadãos de primeira categoria ao fortíssimo lobby dos Planos de Saúde, passando pelas lucrativas empresas do ramo.
Outro dia apanhei uma van para uma corrida de uma hora entre dois municípios no sertão da Bahia. Todos os demais passageiros da van, lavradores de baixa renda, estavam indo da cidade onde moravam para uma maior, para usar as clínicas particulares de saúde. Disseram que os médicos do SUS da cidade onde moravam eram ruins; que a primeira coisa que os médicos particulares da cidade grande faziam era desautorizar os diagnósticos e as receitas dos médicos do SUS. Minha impressão era de que, embora pobres, queriam utilizar o sistema de saúde dos ricos.
Estudo de caso: a saúde dos idosos
A população, ao envelhecer, é transferida, em peso, dos Planos de Saúde para o SUS. Quando economicamente ativos, os trabalhadores podem pagar os Planos de Saúde e, em várias firmas, dispõem de Planos de Saúde empresariais. Quando se aposentam, deixam de ter condições de pagar os planos individuais e perdem os planos empresariais. Além de que a mensalidade dos Planos de Saúde para idosos é seis vezes maior que à dos adultos jovens.
Pior ainda, os idosos são naturalmente, e de longe, os usuários preferenciais do sistema de saúde, consultas, exames e internações hospitalares. Ou seja, as pessoas pagam os Planos de Saúde quando são relativamente saudáveis e não os utilizam; e ficam sem o plano quando envelhecem e passam a demandar os serviços de saúde em larga escala. Considere-se ainda que a população brasileira está em franco processo de envelhecimento. Em 1970, apenas 5% da população brasileira tinha 60 ou mais anos de idade (5 milhões); essa participação atingiu 16% em 2025 (32 milhões).
No início dos anos 2000 foi publicada a pesquisa Planos privados e assistência à saúde do idoso no Brasil, sugerindo a criação de centros de saúde para o idoso, que hoje, felizmente, já estão em operação na forma de Unidades de Referência à Saúde do Idoso e Ambulatórios Médicos de Especialidades para Idosos. Ainda são poucos os centros reservados para os idosos, mas a partida já foi dada.
Mais um estudo de caso: os manicômios
A chamada Reforma Psiquiátrica tem como objetivo a desospitalização de pacientes indevidamente internados por transtornos mentais. Mas são muitos os interesses em jogo.
O SUS, que é federal, financia os hospitais psiquiátricos privados; enquanto faltam recursos para a reintegração dos internos aos lares de seus familiares (Programa de Volta Para Casa), para a criação de residências terapêuticas (Serviços Residenciais Terapêuticos) e para a expansão dos Centros de Atenção Psicossocial – CAPS. Leitos hospitalares e reforma psiquiátrica no Brasil elucida o intrincado círculo vicioso estabelecido entre os agentes envolvidos na manutenção dos manicômios, as esferas públicas federal, estadual, municipal e o setor privado.
Contudo, podemos caminhar para desmontar esse jogo de interesses e desencalacrar esse sistema perverso que alimenta instituições que veem em cada paciente um cifrão.
*Samuel Kilsztajn é professor titular em economia política da PUC-SP. Autor, entre outros livros, Economia Social no Brasil. [https://amzn.to/478TRei]
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