A estupidez como regra

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Por Iury Tavares*

A estupidez que reduz viver a produzir é a mesma que, diante da finitude inescapável da vida, rouba a dignidade da morte

O debate público no Brasil parece ser conduzido ora pela irracionalidade ora pela canalhice. A barafunda na qual o país está metido ganha contornos surpreendentes até mesmo para aqueles que ainda estavam sob o impacto da relativização de uma pandemia que já ceifou mais de 100 mil vidas.

A defesa inabalável do fim do isolamento social mostrou-se uma decisão errada de Jair Bolsonaro (no Brasil, não foi implantado o confinamento ou lockdown, como em outros países). De ordem prática, é a única medida que permite, até o momento, alguma efetividade na queda de casos de Covid-19 e a consequente diminuição da pressão sobre as redes hospitalares. De ordem política, o Presidente foi desgastado em frentes diferentes. O embate com autoridades pela flexibilização das orientações oficiais o enquadrou como voz dissonante no próprio governo, o isolou institucionalmente ainda mais e o fragilizou ante a disparada da aprovação do ministro da Saúde[i]. Principais antagonistas da postura presidencial, os governadores João Doria (PSDB-SP) e Wilson Witzel (PSC – RJ) estão mais bem avaliados que Bolsonaro em seus respectivos estados em relação ao surto do coronavírus[ii] – vale lembrar que ambos já manifestaram o desejo de concorrer às eleições presidenciais de 2022. Destaca-se que, no Rio de Janeiro e em São Paulo, mais de 50% dos entrevistados pelo DataFolha concordaram que Bolsonaro mais atrapalha que ajuda no combate à pandemia. Nas redes sociais, o ex-capitão também sofreu. Seus pronunciamentos têm sido amplamente criticados, apesar do uso de robôs para impulsionar informações em seu favor[iii].

Acuado, Bolsonaro entendeu que precisava reverter a posição de vulnerabilidade em que se colocou. Ciente de que suas investidas contra o isolamento social ou a relativização da pandemia perderam potência, foi necessário recorrer a uma ferramenta que domina há décadas: a polemização do debate público. Se falhou em negar a realidade do avanço do vírus e as medidas para combate-lo, o mercador de ilusões entrou de corpo e alma na oferta da cura do mal. Como me disse certa vez um veterano que fora deputado estadual, federal e secretário do Executivo, quem dá notícia ruim são os outros. É a lógica da velha política de 28 anos no Parlamento que nunca teve nada de novo a oferecer.

Com isso, Bolsonaro excita a praça pública ao alardear os efeitos da cloroquina no tratamento do Covid-19 e cria mais uma cisão social em torno de uma substância sobre a qual pouco se sabe acerca de sua eficácia. Na Ciência, fazer afirmações requer responsabilidade, mas como tudo o que é sugado pelo bolsonarismo é contaminado pela estupidez, o Presidente estimula a vulgarização do debate como se coubesse aos eleitores a decisão de autorizar ou não o uso do medicamento. A discussão reduz-se ao “você é contra ou a favor da cloroquina?”, o que nem sentido faz para estar errado. O medicamento estava e está liberado para ser prescrito por médicos desde que estes considerem adequado ao caso. O que se busca evitar é a automedicação em massa de um remédio com efeitos colaterais gravíssimos.

O oportunismo nem original é. Em 2016, Bolsonaro foi autor do projeto que liberava a produção da fosfoetanolamina sintética, popularizada como “pílula do câncer”. Após aprovação do Congresso e sanção da ex-presidente Dilma Rousseff (PT)[iv], o Supremo Tribunal Federal proibiu a iniciativa em razão de um risco duplo: a ausência comprovada dos efeitos da substância e o abandono de tratamentos convencionais pelos pacientes. No início de seu mandato, Bolsonaro ainda insistiu ao STF que revertesse a decisão. Agora, repete a tática de manipular a esperança desesperada daqueles que têm pouco ou quase nada, mas lhes resta viver.

O reducionismo favorece ao pensamento estreito, elimina nuances, singularidades que são necessárias quando se quer compreender as dificuldades do país em sua totalidade. Os desafios brasileiros não têm soluções bidimensionais cujas abordagens restringem-se a ser contra ou a favor. O bolsonarismo não inaugurou a lógica, mas aprofundou seu emprego. Entre tantas outras, assim foi em: 1) criticar as ilegalidades da Lava-jato é ser contra o combate à corrupção; 2) defender pautas progressistas é ser esquerdista; 3) proteger minorias é ser a favor de privilégios para poucos; 4) buscar o bem coletivo é ser comunista; 5) preservar o meio ambiente é ser contra a produção agropecuária; 6) ser a favor do Mais Médicos é defender a ditadura cubana etc. Ou seja, as lentes pelas quais o bolsonarismo interpreta o mundo sempre foi esta e não haveria o porquê mudar no governo.

Os efeitos dessa visão espraiam-se para outros setores do governo e encontram seus exemplos mais pronunciados nos ministérios da Educação e das Relações Exteriores. Para citar dois breves exemplos: Abraham Weintraub chamou as universidades públicas de “balbúrdia” que abrigam plantações de maconha e produzem drogas sintéticas; e, não esqueçamos que o chanceler Ernesto Araújo defendeu que nazismo é um fenômeno de esquerda. É assim que trabalha a estupidez como linha mestra deste governo.

A polemização do espaço público serve ainda para Bolsonaro justificar seus insucessos, ideia que recorre com certa frequência. Ele se posiciona como alguém impedido de promover mudanças transformadoras, profundas, pois o sistema tenta enredá-lo em arapucas institucionais. Assim, constrói a imagem de guerreiro incansável na luta contra gigantes poderosos interessados em manter o status quo, sendo ele o único disposto a sacrificar-se pelo Brasil.

O papel de herói solitário serve também para consolidar a imagem do homem de princípios, feito às próprias custas, obstinado, com propósito – qualidades muito apreciadas no discurso neoliberal mais aparentes no lema “empreendedor de si mesmo”. No entanto, embora tais características possam guardar valores positivos em certos contextos, o que se revela na face bolsonarista é a dificuldade de compreender o mundo em suas mudanças como processos plurais. Não entender as múltiplas faces da vida dá medo. O bolsonarismo apropria-se dele para moldá-lo em ódio e potência política[v].

As consequências de políticas públicas – ou da ausência delas – vão além do palmo que os olhos podem enxergar. No entanto, a compreensão bolsonarista da vida é orientada pela crença, o que é diametralmente contrário à ciência. Ou ainda, pelo recorte seletivo de uma espécie de ciência que confirme sua crença[vi], como quando um vídeo descontextualizado do Dr. Drauzio Varella foi utilizado para enfraquecer o isolamento social ou a euforia provocada pela confirmação que um famoso médico havia utilizado a cloroquina em seu tratamento, mesmo que não se possa atribuir à substância sua cura.

A polemização também serve à monopolização dos holofotes, método em desgaste junto à opinião pública: a cada revés, Bolsonaro e suas crias lançam mais um impropério que domina as redes sociais, repercutem na mídia tradicional e agitam o debate virtual. A onda lava, limpa e leva consigo um Pibinho, candidaturas-laranja de seu partido, corrupção nos gabinetes da família, a relação promíscua com milicianos, asfixiando o tempo para o devido escrutínio e assimilação das informações. É o arremedo do que Donald Trump faz, mas até por lá o magnata caiu na real. A gripezinha matou, por enquanto, mais de 20 mil norte-americanos. A imagem de homens abrindo covas coletivas em Nova Iorque deveria ser o suficiente para abater a estupidez. Na distopia brasileira, carreatas verde-amarelas ignoram que o vírus já chegou ao estágio de transmissão comunitária nacional.

Mas não é preciso ir tão ao norte. Na Nicarágua, o ditador Daniel Ortega ignora quaisquer riscos ao promover festivais e convocar atividades em massa. No Equador, o sistema funerário entrou em colapso e os corpos das vítimas do Covid-19 são depositados em caixões de papelão ou deixados na rua, à espera de recolhimento. O Brasil escolheu esperar a onda chegar enquanto acompanhava a alta de casos na China e, depois, na Europa. Manaus caminha em direção ao esgotamento. Na periferia de São Paulo, sem escolas ou creches para oferecer refeições, crianças estão expostas à insegurança alimentar grave. Em várias cidades, os números de internações pressionam os leitos de UTI. O véu fúnebre da pandemia começa a sitiar o país.

A dor é perceber que a letargia é proposital e com propósito, pois Bolsonaro tenta desviar dos desdobramentos das suas ações e inações no Executivo. Aderir à política do isolamento social significa colocar-se como passível de responsabilização por negligenciar a pandemia e suas consequências, além de fortalecer aqueles que o contestaram. O impacto econômico virá e constará devastador em relatórios e balanços, mas certamente muito mais em vidas concretas. A estupidez que reduz viver a produzir é a mesma que, diante da finitude inescapável da vida, rouba a dignidade da morte.

*Iury Tavares é mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa.

Notas


[i] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/aprovacao-do-ministerio-da-saude-dispara-e-e-mais-do-que-o-dobro-da-de-bolsonaro-diz-datafolha.shtml

[ii] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/doria-e-witzel-tem-melhor-aprovacao-do-que-bolsonaro-na-crise-diz-datafolha.shtml

[iii] https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/04/08/A-perda-de-influ%C3%AAncia-de-Bolsonaro-nas-redes-sociais

[iv] Dois meses antes da conclusão do seu processo de impeachment, a presidente Dilma Rousseff sancionou o projeto de lei na busca de melhorar sua relação desgastada com o Congresso, apesar da recomendação negativa de vários órgãos consultivos.

[v] FUNDAÇÃO TIDE SETUBAL. O conservadorismo e as questões sociais [recurso eletrônico]. São Paulo. 2019. Disponível em: < https://conteudo.fundacaotidesetubal.org.br/downloadconservadorismo>. Acesso em: 15 de nov. de 2019.

[vi] https://theintercept.com/2020/03/31/coronavirus-bolsonaro-anti-ciencia/

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