Opção preferencial pelo agronegócio?

Imagem: Tom Fisk
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Por JEAN MARC VON DER WEID*

Ao colocar restrições em função dos desmatamentos, os europeus deixam o governo Lula numa saia justa

A mídia convencional e as redes sociais são unânimes (fora da bolha bolsonarista, é claro), aqui e no exterior: Lula foi “um estouro” nesta viagem à Europa. Apoteótico, estadista mundial, genial, foram alguns dos adjetivos empregados para descrever o sucesso do nosso presidente.

Longe de mim minimizar este resultado espetacular. Mas quero discutir algumas contradições que me parecem complicar a epifania que domina a cena. Vamos lá:

Lula questionou, em primeiro lugar, os termos da carta anexa ao acordo Mercosul/União Europeia. Segundo o discurso, que reiterou um outro feito na presença da chefe máxima da União Europeia, Ursula van der Leyen, aqui no Brasil, a carta faz ameaças aos países do Mercosul, no caso de não cumprimento das cláusulas referentes aos acordos sobre o clima.

Lula apontou o fato de que os países ricos não estão cumprindo as mesmas cláusulas e que seria puro protecionismo aplicar penalidades às exportações do agronegócio brasileiro. Lula também introduziu no discurso uma referência à necessidade do combate ao aquecimento global se articule ao combate à pobreza e às desigualdades sociais. Em outro momento, Lula fez referência à uma legislação votada no parlamento europeu impedindo exportações de produtos agrícolas oriundos de áreas desmatadas após 2020. Em conversa com o presidente francês Emmanuel Macron, Lula colocou esta legislação em debate no acordo.

Examinando a argumentação do Lula podemos constatar algumas coisas:

(i) A preocupação com o combate à pobreza e à desigualdade não tem relação com a questão das ameaças de restrição de importações da União Europeia em função das preocupações ambientais. A ênfase do presidente neste tema é justíssima e cabe em um discurso mais amplo sobre as relações internacionais no quadro do combate ao aquecimento global. No quadro das negociações do acordo Mercosul/União Europeia, ele fica fora de lugar, sobretudo quando o contencioso se relaciona com exportações do agronegócio, o grande beneficiário da suspensão de restrições à importação de produtos agrícolas por parte da União Europeia.

(ii) O protesto contra a cláusula que exige o cumprimento dos acordos internacionais sobre o clima é mais que justificado, já que nenhum país, “rico” ou “pobre”, está cumprindo os protocolos decididos na reunião da COP em Paris, em 2015. No entanto, o alvo do presidente é sobretudo a legislação europeia, recém aprovada (e não citada na carta anexo ao acordo em debate), proibindo importações agropecuárias a partir de áreas desmatadas.

(c) A acusação de protecionismo por parte da União Europeia ao colocar estas restrições é uma meia verdade. Por um lado, o histórico de protecionismo na União Europeia, por pressão de seu próprio agronegócio, é mais do que conhecido. Mas este protecionismo poderia ter sido acionado por outras medidas, tais como as já muito usadas exigências sanitárias, sobretudo em relação aos índices de contaminação por agrotóxicos, muito mais elevados aqui do que lá.

Ao colocar restrições em função dos desmatamentos, os europeus deixam o governo Lula numa saia justa. Afinal de contas, este acordo só não foi assinado no quatriênio do governo Bolsonaro por causa das restrições dos governos europeus (que não faziam parte dos termos do acordo) em relação ao intenso processo de desmatamento provocado diretamente pelo energúmeno sentado na cadeira de presidente do Brasil.

A saia é ainda mais justa, porque Lula denunciou o desastre ambiental do governo Bolsonaro e anunciou gloriosamente para o mundo que a meta do governo era o desmatamento zero “em todos os biomas”, promessa feita na COP de Sharm-el Sheik, em novembro passado.

Se o governo brasileiro tem o mesmo objetivo dos governos europeus, ou seja, zerar os desmatamentos, por que protestar contra uma medida dos importadores que facilitaria a ação contra o agronegócio brasileiro predador da natureza? Lula tem dito que quer convencer o agronegócio a adotar uma posição “moderna” em relação ao meio ambiente e tem usado as restrições dos importadores como argumento para mostrar este caminho. Como justificar agora este evidente recuo?

O argumento do presidente Lula de que “não cabem ameaças de sanções em um acordo entre amigos” não faz sentido. Só falta agora fazer acordos trocando fios de barba ou cuspindo na mão e apertando a do parceiro. É só imaginar o que ocorreria se Jair Bolsonaro tivesse ganho a eleição, ou o que ocorrerá se ele, ou um seu avatar, ganhar a próxima. Acordos entre países não são acordos entre pessoas e eles são assinados para durarem muitos anos, depois que os atuais dirigentes já estiverem aposentados.

Ao defender a suspensão das sanções Lula passa um recado que não foi compreendido por um mundo atordoado pelos aplausos merecidos à performance do presidente em Paris. O que ele quer dizer é que tomou as dores do agronegócio brasileiro para si e para seu governo. A outra hipótese é que esta encenação não seja para o público externo, mas para o interno, ou seja, para o agronegócio brasileiro.

Afinal de contas, a chance de negociar a retirada das sanções, tal como definidas na carta anexa, é bastante razoável, até por serem bastante genéricas e, como já se disse, carecem de legitimidade quando impostas por governos que também não seguem a cartilha dos acordos do clima. Mas as restrições não mencionadas na carta, ou seja, a legislação europeia restringindo importações oriundas de áreas de desmatamento, não são dirigidas ao Brasil ou ao Mercosul, mas a todo o mundo. Elas estão sendo ratificadas pelos parlamentos de cada país membro da União Europeia e não estão sujeitas a qualquer acordo bilateral ou multilateral.

Nesta hipótese de Lula estar fazendo um show para se cacifar junto ao agronegócio, mesmo sabendo que as restrições vão acontecer com ou sem o acordo incluí-las, acho que ele vai pagar um preço dobrado.

Em primeiro lugar, o agronegócio e os ambientalistas europeus não vão deixar de apontar a incoerência entre os discursos ambientalista e ruralista de Lula e a saia justa tenderá a ficar mais evidente, diminuindo o brilho internacional do presidente.

Em segundo lugar, o agronegócio brasileiro não vai ficar de bem com o Lula por ele ter defendido o seu “direito a desmatar”. Eles não querem saber de intenções, mas de resultados. Se as restrições vierem por dentro do acordo ou por fora dele, a ira do agronegócio será voltada contra o presidente “que não soube defendê-los”.

Na sua intenção reafirmada de chegar ao desmatamento zero, Lula deveria agradecer as medidas assumidas pelos parlamentos dos países da União Europeia. Se dependesse do governo estabelecer restrições mais fortes ao agronegócio predador as dificuldades seriam imensas, dado o peso da bancada ruralista no Congresso. Com as restrições vindo de fora, tudo fica mais fácil pois, como o próprio Lula já argumentou, o governo passaria a defender o setor “moderno” que se ajustaria às exigências, separando-o do setor predador que continuaria nas mesmas práticas.

O controle do desmatamento, como já tive oportunidade de escrever em outra oportunidade, vai exigir mais do que acionar o Ibama e o ICMBio, com o apoio da Polícia Federal. Isto vai ser uma batalha contra os madeireiros, grileiros e mineradores, ou seja, contra a economia ilegal. Isto já vai ser uma batalha cruenta e que, para funcionar com eficácia, vai precisar de controlar o escoamento dos produtos ilegais com muito investimento em inteligência para pegar os elos entre as atividades ilegais e o mercado, nacional e internacional.

Isto poderá dar conta da economia ilegal, se o esforço for sustentado e amplo. Entretanto, há desmatamento legal, permitido pelo Código Florestal ou pelas imensas brechas na legislação. É provável que o governo tenha que usar meios indiretos de restrição, como por exemplo suspender os financiamentos dos proprietários que tenham desmatado. Mas a guerra judicial vai ser grande e a capacidade de pressão do governo é notoriamente pequena. Métodos de estímulo via créditos facilitados e subsidiados, visando a diminuição dos desmatamentos e a introdução de práticas menos predatórias poderão ser questionados e trazidos para o debate legislativo.

É por essas dificuldades que Lula deveria agradecer aos seus orixás as restrições impostas pela União Europeia. Elas não se referem à legalidade ou não das práticas do agronegócio brasileiro. Elas restringem todo o desmatamento, legal ou ilegal. E a forma mais óbvia vai ser a cobrança de um georreferenciamento de todos os produtos, de forma a ser possível cruzar com os dados, hoje muito precisos, das áreas desmatadas. Tudo isto é tecnicamente viável embora não garanta o fim dos desmatamentos.

A forma mais prática de driblar as restrições dos europeus é algo que já existe, parcialmente. Trata-se de exportar a partir de regiões sem desmatamento e trazer para o mercado interno a produção das áreas em que ele vai continuar. Reparem que os europeus não restringem as importações do Brasil, de forma geral, mas dos produtos oriundos de áreas de desmatamento. Os grandes frigoríficos já fazem esta separação, com parte da carne de gado criado no Cerrado e na Amazônia sendo dirigida para o consumo nacional e a de outras regiões sendo exportada.

Mas até hoje esta separação é bem limitada, em função de exigências de compradores específicos. Se for preciso fazer isso de forma massiva vai ficar mais complicado pois o volume de carne oriundo das áreas desmatadas excede o mercado interno. O rearranjo vai ser maior ou menor dependendo do comportamento do nosso maior importador de produtos agrícolas, a China.

Tudo isso é para mostrar que podemos até nos acertarmos com os europeus, integrando as exigências ambientais nos produtos para lá exportados enquanto o desmatamento continua impávido. Para segurar o desmatamento será preciso enfrentar o agronegócio de forma mais abrangente, e para isto o apetite do governo é bem menor. Para que fique claro este fato basta ver que este governo ainda não modificou a política de aprovação acelerada de novos agrotóxicos, inaugurada no governo de Michel Temer e ampliada em muito no governo de Jair Bolsonaro. Em menos de seis meses já foram quase 200 novos produtos, sendo que pouco menos da metade com alto grau de toxidez.

Outros pontos colocados pelo presidente Lula na parte do seu discurso contestando pontos do acordo Mercosul/União Europeia merecem mais atenção. O mais importante é a cobrança de igualdade de condições das indústrias europeias em relação às brasileiras, no que tange às compras governamentais. Isto eliminaria qualquer orientação das compras públicas da merenda escolar, por exemplo, priorizando a agricultura familiar. Os europeus querem por em concorrencia a Danone com as indústrias de laricinios familiares ou comunitárias. Neste ponto o bicho pega e pega pesado.

Finalmente, cabe resgatar a posição mais ampla assumida pelo Lula, cobrando um engajamento real dos países ricos para financiar a transição dos países em desenvolvimento na direção de uma economia verde. Não gosto muito do argumento indicando que o aquecimento global é culpa dos países ricos e que portanto eles devem fazer o maior esforço para diminuir as emissões de gases de efeito estufa.

Isto dá a impressão de que estamos autorizados a emitir mais gases para compensar a culpa histórica dos outros. Todos temos que derrubar as emissões, se quizermos sobreviver e não nos esqueçamos de que hoje o Brasil é o quinto maior emissor de GEE no mundo. Mas sim, os mais ricos tem mais responsabilidade até porque tem mais condições para financiar um esforço coletivo mundial.

*Jean Marc von der Weid é ex-presidente da UNE (1969-71). Fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA).

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