Os combates de Abdias do Nascimento

Imagem: Pille Kirsi
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Por PAULA RIBEIRO & PIERO DETONI*

O projeto decolonial de Abdias do Nascimento deseja, antes de qualquer coisa, a liberdade maximizada dos/as afro-brasileiros/as

1.

Este ensaio aborda uma pequena fração do pensamento do intelectual afro-brasileiro Abdias do Nascimento (1914-2011). Autor de obra multifacetada e marcada pelo ativismo negro, Abdias do Nascimento apresenta-se como um importante intérprete do Brasil. Ator, poeta, dramaturgo, artista plástico, professor universitário, político e ativista, encontramos em suas performances de pensamento e de ação a possibilidade de retirar da latência mundos possíveis de matriz africana encobertos pela violência da civilização no Brasil.

Sujeito de rara percepção crítica acerca do universo político-social nacional, Abdias do Nascimento é capaz de reler a história do Brasil “a contrapelo”, restituindo as nossas energias ante as forças que dominam as experiências da história. Lê-lo é, no limite, um gesto de resistência, bem como uma possibilidade de pensarmos e de trabalharmos por um amanhã com mais esperança e igualdade.

2.

Encontramos na obra de Abdias do Nascimento opiniões originais e significativas sobre os horizontes histórico-sociais dos negros no cenário brasileiro, sobretudo, no que diz respeito as consequências nefandas do racismo e da discriminação junto ao âmbito da instituição da cidadania no país. Sabedores da importância da experiência afro-brasileira enquanto eixo daquilo que somos e daquilo que pretendemos ser, a ideia geral deste ensaio é evidenciar, a partir de algumas ideias de Abdias do Nascimento, o seu direcionamento no tempo tanto em termos de denúncia diante da violência que se enreda na duração como, também, demonstrar o caráter de resistência que a acompanha. Ao resgatarmos os seus “combates” temos como horizonte a atualização das suas pautas ativistas visando a sua divulgação para amplas audiências, proporcionando, assim, operações de consciência junto ao real.

Percebemos, em Abdias do Nascimento, o agenciamento de representações sociais, ou formações discursivas, fundamentais para o reconhecimento dos planos de historicidade que envolvem os sentidos de ser, e de não ser, afro-brasileira/o. Os afro-brasileiros passam, dessa maneira, a ser entendidos como “símbolos de um desejo consciente de vida, força pujante, flutuante e plástica, plenamente engajada no ato de criação e até de viver em vários tempos e várias histórias ao mesmo tempo” (MBEMBE, 2014, p. 20).

Na profícua obra do intelectual brasileiro, infelizmente ainda pouco conhecida academicamente e pelo grande público, encontramos um movimento de pensamento que reivindica a resistência e que instaura a denúncia permanente. Entre tantas pelejas travadas em sua trajetória intelectual, e política, certamente a que envolve o racismo é a mais destacada. Enquanto um intelectual negro, falando do martírio dos afro-brasileiros ao longo da história, o estudioso paulista coloca na perspectiva da duração o estado de violência, em um âmbito que abrange passado-presente-futuro, responsável por instituir a realidade social do país.

Em última instância, o motivo das suas ações aponta para a problematização do papel dos negros, e da(s) sua(s) cultura(s), no interior desse espaço de experiência, bem como para novas formas possíveis de percepção e de abordagem dos mesmos em um ambiente público minimante cidadão. Diante dessa situação, a sua obra O genocídio do negro brasileiro (1978), livro de insuspeita dimensão crítica escrito por um brasileiro, evidencia os submundos da civilização no país, sobretudo, a partir de tudo aquilo que é escamoteado pela dita “ideologia da democracia racial” que, desde ao menos o bávaro Von Martius, reifica um artificial convívio harmonioso entre as etnias que formam o Brasil, com a abertura (falsa) para oportunidades iguais e sem prejuízos raciais.

O extermínio do pensamento alheio, que coisifica a alteridade, apresenta-se como uma estratégia de alienação garantidora da engrenagem do capital, bem como um investimento de domínio e de opressão decisivo para impor aos negros a condição de subalternidade e de inferioridade perpétua (PESSANHA, 2019). A mobilização da categoria raça, por exemplo, para designar estados de humanidade e de racionalidade é uma forma acentuada de colonialidade de poder (QUIJANO, 2009; MBEMBE, 2014).

Abdias do Nascimento escancara essa lógica ao perceber a interdição da ação afrodescendente no plano da historicidade. O passado, por intermédio da sua memória cultural, é apagado juntamente com toda a produção de conhecimento de matriz africana. Ademais, o presente não é habitável, pois nele os negros são impossibilitados da promoção social e econômica, seja pela violência contra seus corpos, seja pela impossibilidade de acesso à educação. Enquanto isso o futuro é prefigurado pela “ideologia do branqueamento”, dado que destitui a autoridade da cultura e do saber negros.

Em O genocídio do negro brasileiro percebemos Abdias do Nascimento combatendo o epistemicídio travestido de democracia racial. De acordo com o autor, essa “ideologia” é absolutamente especulativa, porém, afiançada pelas ditas ciências históricas majoritárias. Ela impõe aos afro-brasileiros uma leitura da historicidade que os enreda a partir da suposta harmonia entre negros e brancos, em que há condições de igualdade junto à realidade social, não havendo, portanto, impactos étnico-raciais nessa dinâmica.

A democracia racial, segundo o ativista brasileiro, tem como arauto Gilberto Freyre, o famoso autor de Casa-grande e senzala (1933). Abdias do Nascimento combate a teoria do luso-tropicalismo, que Freyre passa a desenvolver na década de 1940, dado que ela se mostra como um fundamento ideológico que legitima o colonialismo português, impossibilitando uma leitura justa da diáspora africana. Desse modo, a teoria luso-tropicalista de Freyre, partindo da suposição de que a história registrava uma definitiva incapacidade dos seres humanos em erigir civilizações importantes nos trópicos (os “selvagens” da África, os índios do Brasil seriam documentos viventes deste fato), afirma que os portugueses obtiveram êxito em criar, não só uma altamente avançada civilização, mas de fato um paraíso racial nas terras por eles colonizadas tanto na África como na América (NASCIMENTO, 1978 p. 42).

Um dos desejos de Abdias do Nascimento é, então, o de descontruir os princípios ideológico-raciais do luso-tropicalismo encampado por Freyre, mas que se propaga em outros segmentos de pensamento. Este oferece uma “percepção de mundo” que valora positivamente as conquistas e a colonização portuguesa em escala global, tornando possível um modelo sui generis de sociedade amparado pela superioridade racial lusitana, destinada a comandar um novo tipo de civilização avançada mediado pela dita plasticidade implicada no processo de mestiçagem por ela comandada. Essa perspectiva deve ser, para o nosso autor, combatida com fervor pelos “quilombos contemporâneos”.

3.

O quilombismo, alternativa política afro-brasileira, no entender de Abdias do Nascimento, também pode ser considerado como uma postura decolonial. Os estudos decoloniais se fazem presentes na atualidade como parte integrante daquilo que chamamos de paradigma da diferença. Mais: os estudiosos da decolonialidade problematizam a manutenção das marcas da colonização, do âmbito epistêmico ao do poder, no sentido da transcendência e da emancipação das suas formas de dominação e de opressão estabelecidas na duração.

A partir de uma perspectiva (trans)disciplinar se quer valorar os contingentes epistêmicos locais ante a herança (indesejada) legada pela condição histórica colonial. É no interior desse horizonte de preocupações, de grande apelo social, que compreendemos o pensamento político e social de Abdias do Nascimento, especialmente a sua concepção de “quilombismo”, capaz de conceder espaço para as experiências históricas, no caso afro-brasileiras, que enredam localmente os povos oprimidos pela ordem capitalista-colonial.

A relevância projetada junto aos afro-brasileiros enquanto agentes sociais fundamentais em nossa experiência histórica, especialmente a partir da revelação de toda ordem de violência derivada de um universo social marcado por hierarquias raciais, torna possível a Abdias do Nascimento esclarecer não só os fatores que envolvem as “reais consequências da escravidão aos negros brasileiros”, mas, sobretudo, demonstra a “atualidade do debate sobre a condição social” destes no Brasil (PEREIRA, 2011, p. 18).

O nosso autor reverte, de imediato, a perspectiva pacifista, sem conflito, talvez iniciada por um Varnhagen, presente na história brasileira. Esse movimento reflexivo é elaborado através da suspensão de uma visão filantrópica e humanitária referente à escravidão, em que se observa um negro tão somente submisso e disciplinado (TEIXEIRA; FLORES, p 169). É contra essa leitura da história brasileira, em um gesto decolonial, que Abdias do Nascimento se arvora, quer dizer, para ele não existe vínculos de harmonia nas relações entre colonizador e colonizado, muito menos todo um sistema social organizado pela passividade dos afro-brasileiros, no sentido de renúncia à resistência e de compactuação com a ordem genocida vigente.

Nessa direção, o nosso autor argumenta que “Essa rabulice colonizadora pretendia imprimir o selo de legalidade, benevolência e generosidade civilizadora à sua atuação no território africano. Porém, todas essas e outras dissimulações oficiais não conseguiram encobrir a realidade, que consistia no saque de terras e povos, e na repressão e negação de suas culturas – ambos sustentados e realizados, não pelo artifício jurídico, mas sim pela força militar imperialista” (NASCIMENTO, 2002, pp. 89-90).

A decolonialidade do quilombismo “propõe romper com os pensamentos gravados nas mentes e corpos por gerações”, representados pelas culturas eurocentradas, assimilando, então, “o pensamento dos povos originários (índios) e da diáspora forçada (negros)” enquanto repertório epistêmico autorizado para a vida social dos países colonizados (COSTA NETO, 2016, p. 51). Percebe-se que o Brasil escamoteia, em sua visão, seus liames com o continente africano.

As classes dominantes não deixam, na visão do estudioso, de disseminar, sendo uma norma muitas das vezes mascarada, os seus preconceitos para com as culturas afro-brasileiras, erradicando formas possíveis de afeto entre brasileiros e brasileiras e a África, entendida como conjunto de nações, pátria ou terra nativa. Abdias do Nascimento declara o seguinte, inserindo o próprio corpo na experiência da história: “Entretanto, nenhum empecilho teve o poder de obliterar completamente de nosso espírito e da nossa lembrança a presença viva da mãe África” (NASCIMENTO, 1985, p. 19). A decolonialidade presente no projeto intelectual do autor desnaturaliza as grandes metanarrativas de sentido da modernização eurocentrada, evocando vozes, corpos sensíveis, experiências diferenciais, memórias culturais de grupos e de comunidades subalternas, no caso as africanas e afrodescendentes.

A luta do autor está condicionada a percepção de que os afro-brasileiros nunca foram e não são tratados a partir do selo da igualdade dos segmentos brancos do país que mantém a exclusividade do poder, do bem-estar e da renda do país. O negro brasileiro, na atualidade que Abdias do Nascimento escreve, estava à margem do sistema de empregos, situando-se, muitas das vezes, no subemprego ou no semi-emprego. Para não falarmos do trabalho análogo à escravidão. Além disso, os afro-brasileiros experienciam, segundo a sua percepção, a segregação geográfico-residencial, isto é, eles habitam “guetos” com variadas denominações: favelas, mocambos, porções, alagados, invasões, vilas, conjuntos residências, etc. Vivem a brutalidade da polícia e as prisões arbitrárias por simplesmente serem negros. Compreende-se “por que todo afro-brasileiro consciente não tem a menor esperança de que uma mudança progressiva possa ocorrer espontaneamente em benefício da comunidade afro-brasileira” (NASCIMENTO, 1985, p. 24).

É exatamente a partir daí que o intelectual paulista remonta a tradição histórica de resistência dos quilombos como caminho possível para a atuação dos afro-brasileiros no cenário contemporâneo. A experiência quilombista deve compor o quadro de lembranças desses sujeitos, na medida em que ela pode simbolizar ativamente, em um gesto absolutamente decolonial, os horizontes da liberdade e da luta dos negros ao resistirem ao cativeiro pari passu à instituição de comunidades livres no território brasileiro.

Os quilombos, vistos no amplo âmbito das transformações históricas, apresentam-se como legítimos movimentos sócio-políticos e econômicos expansivos, críticos e permanentes. Eles são espaços de resistência física e cultural, oferecendo continuidade à herança africana. O movimento quilombola, presente na história brasileira, é uma forma de transcendência da alienação dos negros ante os impactos da dominação. O quilombismo implica na insubmissão, na defesa da exploração, na superação da humilhação, no enfrentamento da violência do escravismo visto na perspectiva da duração. Eleé uma “práxis afro-brasileira de resistência a opressão e de auto-afirmação política […]” (NASCIMENTO, 1985, p. 24).

Essa tradição quilombista existiu e existe por toda a América. A leitura quilombista da história enfatiza a resistência ante as formas de domínio próprias da civilização eurocêntrica, ao passo que projeta a performance de passados não-ocidentais no presente, o que resulta, de alguma forma, na tomada de consciência por parte dos afrodescendentes (e de toda sociedade) de planos democráticos de historicidade, abrindo margem para a transformação histórica e projeção de mundos possíveis. A partir desse movimento recusa-se a cultura do silêncio, bem como se supera as marcas históricas do colonialismo presentes na memória cultural dos afro-brasileiros.

O que Abdias do Nascimento procura realizar é a construção de um sentido a partir da experiência histórica brasileira que sinaliza para a luta intermitente dos afro-brasileiros em favor da liberdade. De certa maneira, o autor mostra o outro lado da história brasileira, isto é, aquele que não é o dos vencedores, mas que nem por isso deixa de resistir. Não é uma história da identidade brasileira pelo espectro afro-brasileiro, mas a própria narrativa da diferença que enreda historicamente essas populações. Nessa direção, o quilombismo se performa como uma alternativa cosmopolita para a organização política das populações negras. “Com efeito, o quilombismo tem-se revelado um fato e capaz de mobilizar disciplinarmente as massas negras devido ao seu profundo apelo psicossocial cujas raízes estão entranhadas na história, na cultura, no sangue e na vivência dos afro-brasileiros” (NASCIMENTO, 1985, p. 25).

O quilombismo, parte constituinte da experiência da história brasileira, a partir da ótica de um passado não-ocidental, atua como uma espécie de ideia-força, apresentando-se, igualmente, como uma forma de energia que inspira estruturas de organização no âmbito da duração. De certa maneira, Abdias do Nascimento vê no quilombismo um processo de reatualização. Portanto, ele mostra-se como uma latência que movimenta a ação dos(as) negros(as) ao longo da história brasileira. Latente em razão de ser reprimido pelas estruturas dominantes.

Abdias do Nascimento esclarece que esse movimento sócio-existencial é nacionalista-cosmopolita, isto é, em combate com o imperialismo organiza-se um pan-africanismo que sustenta a solidariedade entre os povos africanos e afrodescendentes no sentido de promover a luta contra a exploração, a opressão, o racismo e as desigualdades raciais, de cor, religiosa, de sexo e de ideologia. É, então, uma uniformidade sem rosto em nome da solidariedade, que se enraíza na identidade cultural e na experiência da história. O sentido do quilombismo está, para Abdias do Nascimento, tão vivo quanto esteve no passado, na medida em que o flagelo negro no Brasil perduraria em estruturas sociais invariáveis.

4.

O quilombismo está em sintonia com a decolonialidade, dado que ambos suspendem as formas de produção, e de acedência, do conhecimento a partir da episteme eurocêntrica. Abdias do Nascimento tinha consciência que os afro-brasileiros, para além de combater na arena sistema social vigente, deveriam propor o enfrentamento junto a intelligentsia dominante, responsável pela cobertura ideológica que os oprimiam através de teorizações que vão no sentido, por exemplo, da inferioridade biossocial, da miscigenação sutilmente compulsória, do mito da “democracia racial”, etc. O esforço decolonial do nosso autor caminha na direção da suspensão da pretensa universalidade vinculada ao conhecimento de matriz euro-ocidental e ao predomínio dessa cultura, além de revelar as violências (simbólicas e físicas) subjacentes a tal colonialidade do poder (QUIJANO, 2009).

Essa dita “ciência da história” atrelada a esse horizonte de pensamento ainda vigoraria de alguma maneira: “Essa ‘intelligentsia’, aliada aos mentores norte-americanos europeus, fabricou uma ‘ciência’ histórica ou humana que ajudou a massacrar e explorar os africanos e seus descendentes, justificando esse crime através da desumanização. Prova-se dessa forma que a ciência europeia e/ou euro-brasileira não é apropriada para o povo negro. Uma história que não serve às necessidades históricas do povo ao qual se refere nega-se a si mesma” (NASCIMENTO, 1985, p. 29).

O escopo decolonial do quilombismo não consiste tão somente na descolonização, mas implica no resgate e até na restituição das epistemologias próprias das populações de matriz africana, violentamente atacadas e suprimidas no decorrer da história.

Uma questão acompanha o itinerário de Abdias do Nascimento: como as ciências humanas podem ser úteis para aos africanos e seus descendentes, tendo em vista o seu espectro analítico, temático e problemático universal?

Para o estudioso: “A raça negra conhece na própria carne a falaciosidade do ‘universalismo’ e da ‘isenção’ dessa ‘ciência’ eurocêntrica” (NASCIMENTO, 1985, p. 29). Se constata, contudo, que a ideia de uma ciência histórica pura e universal, própria das sínteses destituídas de empiricidade, está ultrapassada. Se quer invocar a diferença, aquilo que não está na padronização universalizante da ciência da história. Isso possibilita revisitar a história brasileira à contrapelo. Abdias do Nascimento chega a falar em crimes do eurocentrismo científico em razão de promulgarem dogmas sobre os afrodescendentes como marcas ígneas da verdade definitiva.

O estudioso brasileiro volta a confrontar a matriz colonial de poder: “devolvemos ao obstinado segmento ‘branco’ da sociedade brasileira as suas mentiras, a sua ideologia de supremacismo europeu, a lavagem cerebral com que pretendia roubar a nossa humanidade, a nossa identidade, a nossa dignidade, liberdade e autoestima. Proclamando a falência da colonização mental eurocentrista, celebramos o advento da libertação quilombista” (NASCIMENTO, 1985, p. 29).

A verdadeira democracia no Brasil emerge, então, pelo quilombismo, na medida em que ela abarca os destituídos e deserdados do país. Se deseja a transformação radical das estruturas em voga. Se confia na mobilização do conhecimento crítico e inventivo das instituições dos afro-brasileiros, historicamente escamoteadas pelo colonialismo e pelo racismo. Esse é caminho do quilombismo. Quilombo não é o local de reunião de escravos fugidos, conforme pontuou Abdias do Nascimento.

Mas significaria um horizonte, no passado, no presente e no futuro, fraterno e livre. Instância que abarcaria, no limite, a solidariedade, a convivência e a comunhão existencial. Esse instrumento conceitual é embebecido na experiência da história. O seu repertório conceitual chega até mesmo a se constituir como método de análise social, mediante a compreensão e a definição de uma experiência concreta. Assim, o quilombismo, uma proposta decolonial autêntica, legítima e necessária, “expressa uma teoria científica inextricavelmente fundida à nossa prática histórica” (NASCIMENTO, 1985, p. 30).

O quilombismo é uma iniciativa político-intelectual-cultural que combate a colonialidade epistêmica, a colonialidade do poder, a colonialidade da natureza e a colonialidade dos seres a partir da mobilização, do diálogo e da aceitação de saberes e de experiências que extrapolam o universo acadêmico e o espectro eurocêntrico. Ele “tem seu ponto focal e seu pivô no ser humano, como ator e sujeito, dentro de uma visão de mundo em que a ciência constitui apenas uma entre outras vias de conhecimento” (NASCIMENTO, 1985, p. 31).

O projeto decolonial de Abdias do Nascimento deseja, antes de qualquer coisa, a liberdade maximizada dos/as afro-brasileiros/as, considerados subalternos no interior de uma cultura eurocentrada, reconhecendo a autenticidade histórico-cultural que os acompanha.

*Paula Ribeiro é doutoranda em história na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

*Piero Detoni é doutor em história social pela Universidade de São Paulo (USP).

Referências

COSTA NETO, Antonio Gomes da. A Denúncia de Cesáire ao Pensamento Decolonial. Revista EIXO, v. 5, n. 2, 2016.

FLORES, Elio Chaves. TEIEIRA, Elisa Ferreira. Abdias do Nascimento: experiências e escritos para a educação étnico-racial. Anais do XVII Encontro Regional de História. Guarabira: UFPB, 2016.  

MIGNOLO, Walter. Colonialidade. O lado mais escuro da modernidade. Revista brasileira de ciências sociais, vol. 32, n. 97, 2017.

MIGNOLO, Walter. Desafios descoloniais hoje. Epistemologias do sul, vol. 1, n. 1, 2017.

NASCIMENTO, Abdias do. O Brasil na mira do pan-africanismo. Salvador: EDUFBA: CEAO, 2002.

NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro. Processo de racismo mascarado. São Paulo: Paz & Terra, 1978.

NASCIMENTO, Abdias do. O quilombismo: uma alternativa política afro-brasileira. Afrodiásporas. Revista de Estudos do Mundo Negro, ano 3, n. 6 e 7, abr./dez. 1985.

PEREIRA, André Luís. O pensamento social e político na obra de Abdias do Nascimento. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFRGS, Porto Alegre, 2011.


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