Por ELIZIÁRIO ANDRADE*
A guerra atual não se resume ao território ucraniano, ela se alastra em todas as sociedades capitalistas
A metáfora de Hegel: “Onde se vê a árvore não se vê a floresta”, é um pensamento da totalidade dialética do mundo real que convertido à materialidade histórica do método dialético de Marx e Engels, nos auxilia na investigação objetiva do fato que impacta, no momento, as sensibilidades e percepções aparentes e fracionadas das sociedades burguesas e do imperialismo hegemônico: a natureza e significados da guerra na Ucrânia como expressão do agravamento de conflitos maiores que ainda estão por vir, os quais só podem ser explicado a partir do contexto geral da crise imperialista e estrutural do capital.
No seu conjunto, esse processo tem como pano de fundo o deslocamento do polo anterior da hegemonia burguesa capitalista imperialista ocidental, que se encontrava em expansão e agora vem sendo contida pelo novo eixo de poder político, econômico, científico e militar protagonizado pela Rússia e China em escala global.
Certamente, estamos diante de uma transição que não será pacífica nem linear, mas sim marcada por fases de sérios e ameaçadores conflitos de relevância mundial, ora controlada por instáveis momentos nas relações entre os conflitos de interesses imperialistas em disputa, ora orientada para resolver os impasses pela via da força, através de guerras. São fatos que podem conduzir a humanidade para um estado de guerra mais avassalador e destrutivo em escala global; uma possibilidade que será sempre evitada devido ao seu inevitável resultado catastrófico que atingirá todos os domínios da economia mundial e nacional, como também a sobrevivência da própria espécie humana. Mas, nem mesmo este cenário é capaz de frear a lógica do capital e seus interesses objetivos, pois sempre são incontroláveis e irracionais no interior do seu processo de produção e reprodução em uma ordem social e econômica submetida à lógica autofágica de sobrevivência e de renovação do sistema.
Portanto, a inobservância apurada da dinâmica dialética concreta no interior do movimento das contradições contemporâneas da crise, para saber em que mundo as sociedades burguesas se encontram mergulhadas, pode nos deixar cegos ou limitados na compreensão do conjunto das relações e interesses entre os Estados-nação e o grande capital no mundo capitalista em sua crise estrutural; haja vista que essa guerra da Ucrânia em particular representa apenas um fato que culmina e exacerba o desenvolvimento quantitativo e qualitativo das contradições da totalidade de outros conflitos em curso entre as potências do mundo submetido à égide da lógica imperturbável da reprodução social total do capital.
Em todo o Leste europeu – no quadro das disputas geopolíticas – a contradição existente se desnuda em toda a sua profundidade. A hipocrisia, o cinismo político da burguesia liberal e neoliberal vêm à tona de maneira espantosa e desvergonhada; uma burguesia que demoniza seus inimigos através de suas máquinas de propaganda, dissolvendo os fatos e suas determinações reais para reapresentá-los como imagens de guerra e sem sentido, como se fosse uma realidade fragmentada e incompreensível. Esses protagonistas se revestem com paredes de vidro para bradar a quatro cantos seu falso mundo de “direitos humanos”, divide-se o mundo entre o bem e o mal, recorre-se às mais fanáticas crenças medievais e ficamos diante de um confronto entre Deus e satanás, convocando todos para se enfileirarem em uma cruzada dos soldados de Deus (EUA-União Europeia e seus braços armados: a OTAN e a NATO) contra os infiéis que ousam desafiar a hegemonia do mundo capitalista hegemonizado pelo imperialismo norte-americano e seus vassalos europeus.
Por isso, não devemos nos enganar, pois tem sido o capital financeiro-neoliberal, impulsionado pelos monopólios e corporações multinacionais, o FMI, bancos e agências financeiras várias, capitaneado pelos EUA e seus sócios menores da União Europeia que sempre estiveram por trás dessa estratégia de querer ocupar e controlar toda essa região do Leste europeu, inclusive adentrar pela própria Rússia desde o fim da União Soviética. Essa foi uma estratégia de expansão posta em marcha pelo imperialismo dos EUA desde 1991, a favor do grande capital que já vinha pondo este plano em marcha através de várias guerras que contaram com os braços armados violentos e brutais da OTAN.
Ao mesmo tempo, se adotava a doutrina do choque neoliberal devastador para desmontar todo o arcabouço dos fundamentos do Estado russo a favor da rapinagem do capital financeiro internacional. E paralelamente, o avançar sobre a zona anterior de influência da URSS para ocupá-la, colocando governos fantoches e inserindo esses países na circulação mundial do capital financeiro. Assim ocorreu com a guerra na Iugoslávia, Kosovo, Moldávia. Cazaquistão, Síria, Iraque, Iran, Líbia, Afeganistão e Yemen. Não houve tergiversação, o objetivo principal era impor a “hegemonia global”, vista sempre pelos seus ideólogos norte-americanos como uma dominação de “amplo espectro”, como se fossem os novos “donos do mundo”.
E não podia ser diferente, pois, é por isso mesmo que a China e a Rússia passaram a ser encarados como inimigos, obstáculos a serem vencidos, derrotados ou subjugados por conta dos desafios que encarnam e manifestam, ora de forma dissimulada, ora de forma explícita e objetiva como promotores da criação de um novo polo hegemônico no mundo. Tudo isso passou a assustar os “donos do mundo”, principalmente no início de 2022, com o ultimatum russo que exige de forma inegociável, o refazer das atuais fronteiras da OTAN, com o objetivo de empurrar as forças da Aliança do Atlântico Norte com suas armas atômicas e bases militares para limites longe das fronteiras russas. E, como se isso não bastasse, em 7 de janeiro de 2022, surgiu um documento – na forma de um manifesto – assinado pela Rússia e China que deixou em pânico aqueles que achavam que poderiam continuar surfando em ondas revoltas, mas dominadas pelo imperialismo norte-americano e europeu.
A explicitação da necessidade de redefinir os parâmetros e relações de poder para a construção de uma nova correlação de forças e influência entre os países europeus e a Rússia, expressou, na verdade, novos interesses econômicos, políticos do Estado russo e de sua base oligarca capitalista. A necessidade de garantia do Estado e nação russa, em condições mais favoráveis de poder desse país, se tornou inegociável. Garantias e proteção, independente das falsas campanhas midiáticas de guerra, se tornaram reivindicações legítimas e legais no contexto do avanço da OTAN em regiões sensíveis para a defesa da Rússia.
Por isso, temos de admitir que a reivindicação da Rússia é legal e se ampara nos acordos firmados na Declaração de Istambul – 1999 e na Declaração de Astana em 2010, os quais, entre outras coisas reconhecem que nenhum Estado pode construir condições armadas para a sua segurança às custas da insegurança de outros. Além do próprio compromisso “verbal” anunciado entre o governo da URSS e dos EUA, quando da reunificação da Alemanha e do acordo de não expansão da OTAN sobre as antigas repúblicas soviéticas.
De igual modo, devemos também entender que a OTAN não constitui uma associação de países iguais e com direitos comuns, mas sim uma federação armada, hierárquica, belicista de países sob o comando e hegemonia dos EUA, que converte outras nações em objetos que se encontram submetidos a uma relação de vassalagem: obediência e lealdade para combater e destruir governos e Estados que não se submetem aos ditames dos seus interesses políticos e econômicos hegemônicos.
Por isso, a Rússia com aval da China deixou de manter uma posição recuada que tinha desde 1991, quando os EUA ainda reinavam de forma “unipolar” e não dispunha de meios para fazer frente ao “império” norte-americano. Assim, de maneira destemida passou a ter um papel de desafiador dessa hegemonia na condição protagonistas da construção de uma nova hegemonia de poder capitalista no mundo. Por isso, a Rússia diante da arrogância impositiva do imperialismo estadunidense foi levada, como último recurso, a intervir militarmente na Ucrânia.
Isso significa que a Rússia abandonou a atitude defensiva e de colaboração com os EUA, quando nada podia fazer contra a ação da OTAN e da NATO durante a invasão da Iugoslávia, onde morreram mais de 150 mil pessoas em consequência da expansão imperialista na região do Leste, sempre com o objetivo de subjugar os governos e nações que faziam parte da União Soviética e sua zona de influência. Além do recurso direto das guerras, sempre recorreram à sabotagem econômica, conspirações políticas, “revoluções coloridas”, a exemplo da que ocorreu na Georgia em 2008 e o golpe na Ucrânia em 2014. Nesse processo, o saque do capitalismo neoliberal sobre o leste europeu foi muito extenso e profundo, causando o desmonte da economia estatal e a destruição das conquistas históricas dos trabalhadores, forjados desde a Revolução Socialista de 1917.
De outro lado, tudo isso ocorre numa realidade interna da Rússia, que se encontra sob o domínio do capital estatal, associado a oligarquias financeiras que dão sustentação ao governo nacionalista de Putin e dos seus quadros políticos que dirigem hoje as políticas de Estado; e, apesar de combater em certa medida o neoliberalismo devastador e barbarizado, não renuncia ao modelo de exploração capitalista mantido no país com autoritarismo que sufoca e reprime as lutas operárias e os movimentos sociais e políticos de oposição, embora muitos deles se encontrem influenciados e financiados pelo neoliberalismo e o bloco da OTAN.
Assim, temos o quadro de uma realidade histórica e estratégica desse conflito marcado, de um lado pelas ações do imperialismo decadente dos EUA com os seus aliados vassalos dos Estados europeus e, de outro lado o ressurgimento da manutenção do poderio russo, que não é apenas militar, mas também científico, tecnológico e econômico. E que detém as maiores fontes de commodities do mundo: gás, petróleo, metais e minerais diversos, além da agricultura: sendo o segundo maior exportador de trigo do mundo. Poderio fortalecido, ainda, pela relação estratégica com a China em todos os campos, principalmente militar, econômico e tecnológico. Conformando assim um novo polo de disputa no mundo capitalista, intensificando as contradições intercapitalistas no interior da própria OTAN, que enfrenta interesses particulares de capitais distintos no interior da aliança imperialista hegemonizada pelos EUA; a exemplo da burguesia alemã e francesa que buscam se desenvolver e expandir seus negócios a partir de novas relações com a China e Rússia. Por isso, deixam de ser tão contundentes em relação às restrições e imposições hegemônicas da política externa norte-americana, no terreno econômico e nos negócios internacionais.
Consciente desse movimento de contradições, o imperialismo norte-americano – através de um esforço desesperado – procura minar e bloquear as relações econômicas entre a burguesia alemã e outras nações europeias com a burguesia oligarca russa e chinesa que influenciam fortemente o Estado e a política macroeconômica interna e externa. É nesse jogo que tudo vale, desde as sanções econômicas destrutivas, até chantagens e ameaças militares. Ainda mais porque a violência e as guerras passaram a ser expedientes comuns na relação de mercado.
Pois, na lógica atual do capital que chega aos seus limites históricos de contradições, a competição do capitalismo busca vencer seus competidores, não apenas pela via da competição “natural” de mercado – mas também pelo aniquilamento físico, material e pela via da sabotagem, do poder judicial e até prisional dos oponentes representados por nações, empresas, partidos e indivíduos. É neste ponto que nos encontramos, e partir do qual devemos compreender as determinações da vida real, o que move as ações políticas e militares desses dois polos na disputa no mundo.
Se abstrairmos tais condicionantes, deixaremos de entender que a ação de intervenção militar russa hoje na Ucrânia, é mais uma reação defensiva e de recuperação do território perdido, na fase pós-soviética e do cerco ao qual foi submetida. Não se trata de uma ação voluntarista e isolada, mas sim calculada e corroborada com o seu principal aliado, a China, com a qual vem construindo um novo caminho para a mudança do “eixo de poder”, com o objetivo estratégico de desbancar os EUA e os seus aliados que seguem como carro-chefe hegemônico no mundo capitalista.
Essa nova estratégia se inicia com a intervenção russa na Síria, bloqueando o eixo OTAN, que tentou conquistar aquela região com a utilização de mercenários e terroristas profissionais, para depois avançar pelo Irã e dominar, enfim, todo o oriente médio, expulsando, por último, os russos da região. O fracasso desse plano, como o da ocupação do Afeganistão, Iraque e da Líbia, marcam uma nova fase da expansão imperialista dos EUA que agora se vê enganchada com a sua própria crise interna política e econômica e impossibilitada de continuar marchando na mesma linha de antes.
O início de uma nova correlação social, econômica, científica e militar parece emergir nos marcos dessa crise, porém, é no interior dessas transformações que a humanidade corre risco, diante da fera ferida e desafiada do imperialismo norte-americano, uma vez que o capital se depara com seus próprios fantasmas e limites de reprodução, com um mercado internacional saturado e levado a querer resolver suas contradições e limites pela via militar e repressiva diante da inflexão política, econômica interestatal para um novo centro de poder de força econômica e militar.
Por essa razão a guerra na Ucrânia, com a intervenção militar do Estado russo, embora se manifeste, aparentemente, como uma tentativa de ocupação e expansionismo consciente, não revela a verdade em sua totalidade, uma vez que os laços entre esses dois povos são históricos e profundos, quer seja no campo da cultura, da língua, dos costumes e tradições. Além disso, é bom lembrar que os trabalhadores e a maioria do povo durante a guerra civil (1017-1921) estiveram irmanados com os russos pela defesa da Revolução e no combate contra as forças contrarrevolucionárias.
Com a formação da União Soviética, a Ucrânia passou a ser uma das 15 repúblicas com autodeterminação dos povos propostas e colocadas em prática por Lênin. A república de Donbass, que era de enorme importância industrial desde o Império czarista, converteu-se não só em base industrial, mas também num grande celeiro de produção agrícola para a URSS, que contava ainda com enormes reservas de carvão juntamente com Donetsk. Com o fim da União Soviética, a perda da influência russa sobre essas e outras repúblicas exprime o desastre da própria autodissolução da URSS em seu processo de crise e de debaque generalizado de sua economia e hegemonia sobre essas repúblicas.
Como consolo, os países capitalistas e imperialistas vitoriosos da guerra fria, capitaneados pelos EUA, fizeram vãs promessas em não expandir seu poder sobre essas repúblicas através da OTAN e da NATO. Mas, como os interesses econômicos e políticos não são contidos e limitados em sua expansão por meros compromissos morais, acordos palavreados ou escritos – mas sim diante da correlação de poder político e material – avançam sobre essas repúblicas principalmente a partir da década de 1990, aproveitando o momento de completa fraqueza econômica, política e militar do Estado russo.
Nesse estado de fragilidades os reclamos e protestos dos governos russos não foram levados em conta, mas sim desdenhados e ignorados. As repúblicas das ex-URSS foram quase todas absorvidas pela OTAN e a União Europeia, excluindo a Rússia do que eles chamariam de “casa comum europeia”, que era nada mais nada menos que um eufemismo da expansão imperialista do capitalismo ocidental. Pois, procuravam construir um isolamento total da Rússia no plano econômico, político e militar, impondo uma geopolítica esmagadora de poder e influência.
A partir de 1999, a Rússia ressurge dos escombros como uma fênix, procurando lentamente se erguer e retomar as rédeas do controle econômico, político e militar; recompor a sua influência sobre as repúblicas da antiga URSS, particularmente sobre a Ucrânia e Bielorrússia que possuem enorme e decisivo papel geoestratégico e de segurança para a Rússia que se encontrava acuada e sob cerco desde 1991.
Diante dessa realidade, esse país busca se reposicionar no jogo de xadrez geoestratégico de influência e poder sobre a Ucrânia que representa uma fronteira decisiva para a segurança estratégica da Rússia; lembrando que foi através dessa fronteira ucraniana que Napoleão e Hitler penetraram nesse país com os seus exércitos para chegar até Moscou. Fatos que marcaram de forma trágica e épica, a memória do povo dessa nação, que durante a segunda guerra mundial viu morrer, aproximadamente, 27 milhões de russos na ofensiva militar da Alemanha nazista. Por isso, o limite da chamada linha vermelha para a expansão da OTAN, não é uma expressão metafórica, figurativa de uma linguagem militar, mais a necessidade de defesa objetiva, material e histórica de um povo que sofreu de forma inimaginável as dores causadas pela ideologia e ação política e militar nazifascista, engendrada na crise do capitalismo daquela época.
Analisando, portanto, o conflito atual no Leste europeu de um ponto de vista histórico e das disputas interimperialista pela hegemonia no mundo, me parece um grande equívoco político, alimentar a ideia da falsa “invasão russa” que busca se recompor para construir sua defesa contra os seus algozes históricos que, no fundo, torciam pela derrota da URSS na segunda guerra mundial. Em verdade, diferente das invasões e guerras de ocupação e destruição de nações perpetradas pelos EUA, a exemplo das mais recentes como a do Iraque, Afeganistão, Líbia e Síria, trata-se de uma ação legítima de defesa e prevenção contra a sanha do imperialismo ocidental. Observe que o proposto pela Rússia no tratado de Minsk, chancelado, inclusive pela ONU, foi uma tentativa de fazer parar a guerra e criar na Ucrânia um estatuto de país neutro, desmilitarizado, preservando a sua autonomia e livre de bases militares estrangeiras, assegurando uma situação de segurança para a defesa da Rússia e do Leste europeu.
Desse modo, este país não se propunha extinguir a autodeterminação da Ucrânia como Estado-nação. Trata-se de uma forma inconteste de reagir à expansão da OTAN e de sua força militar destrutiva que busca concluir o seu processo de expansão, controlando de vez as ex-repúblicas de influência russa que ainda restam no tabuleiro geopolítico para completar o seu isolamento nessa região euroasiática. Assim, entendo ser um equívoco interpretar essa intervenção russa na Ucrânia como expressão de uma política expansionista ou neocolonialista como ocorreu no contexto da guerra fria que deixou de existir, uma vez que o mundo não conta mais com a existência de economias que se opõem por logicas antagônicas de produção e acumulação das riquezas produzidas socialmente. Todas elas estão entrelaçadas numa dinâmica ampliada de produção, comercialização e de atividades financeiras que controla o mercado e a produção industrial.
Dessa maneira, igualar a recente decisão e ação do Estado russo às invasões típicas do imperialismo ocidental, comandadas pelos EUA e seus sócios europeus – que buscam repartir entre si as novas zonas de influência e operar, num segundo momento, os saques econômicos e destrutivos dos recursos das fontes energéticas e de minerais – só pode nos convencer se abstrairmos por completo a natureza desses fatos históricos, os interesses econômicos das burguesias que perpassam esses Estados, ou desconsiderar as contradições oriundas da política e do universo das diferenças culturais, étnicas e de escala de valores. E de igual modo, teríamos também que negar a realidade de que desde a queda da URSS, a Ucrânia foi pendendo para o lado ocidental, fortalecendo no aparelho de Estado a presença de vários elementos representantes de forças sociais e partidos de natureza político-ideológica neonazista, que atuam abertamente na Ucrânia desde 1914.
Grande parte dessas forças políticas neonazistas e nacionalistas estão inseridas e bem instaladas tanto na institucionalidade da ordem social montada no pós EuroMaidan, como no próprio exército onde se formaram vários batalhões de fanáticos e criminosos neonazistas, a exemplo do mais famoso conhecido como batalhão AZOV. Somado a isso, estar o chamado “Setor direto”, liderado por Pravyy, ultranacionalista, os reacionários como o partido Syoboda do ex-presidente Poroshenko, que em grande parte estão influenciados pela figura mítica neonazista de Stepan Bandeira que colaborou com os nazistas alemães para derrotar os russos na guerra de extermínio. E mais recentemente, o presidente Zelensky aprovou erguer na praça de Kiev uma escultura em homenagem a essa figura nazista considerado como herói nacional. Nessa sequência, nomeou também o líder neonazista Dmitro Yarosh como conselheiro especial do chefe das forças armadas da Ucrânia.
Todas essas forças assaltaram o poder na Ucrânia em 2014 e instalaram um regime de terror, perseguição e assassinatos contra, não só os russos mas, também, contra os socialistas, comunistas, intelectuais e mesmo liberais progressistas de centro; culminando com o decreto da ilegalidade do partido comunista na Ucrânia ou de qualquer outro movimento que confesse publicamente seus ideais de esquerda e socialistas.
O comportamento da burguesia internacional perante esses fatos sempre esteve marcado pelo cinismo, acobertamento dos crimes e torturas promovidos pelos bandos ultranacionalistas e neonazistas orientados e financiados pela CIA. A hipocrisia é tanta, que seus verdadeiros financiadores e promotores internos e externos, como a OTAN, que bradam o discurso da autodeterminação, democracia, liberdades e a favor dos “direitos humanos”, mas que nunca conseguiram encobrir os rastros de crime e terror nas diversas invasões perpetradas no mundo e nas articulações de golpes sangrentos para instalar ditaduras em várias partes do mundo. Atuam abertamente, fechando os olhos ao caráter neofascista e nazista dessas forças políticas e partidárias que se desenvolvem no seio da sociedade ucraniana marcadas pela intolerância, ódio, racismo e extermínio daqueles que pensam diferente de suas doutrinas.
A impunidade dos crimes cometidos é sustentada e acobertada pelas instituições, partidos, polícia, parlamento e exércitos do Estado ucraniano com consentimento e subordinação do imperialismo norte-americano. O fato mais trágico e abafado pela mídia, controlada por corporações dos meios de comunicação foi o massacre no prédio do sindicato em Odessa, situada às margens do mar negro. Nesta cidade, a tragédia perpetrada pelas gangues de milicias neonazistas e nacionalistas com aval da polícia foi indescritível. Dezenas de ativistas antifascistas, trabalhadores, socialistas que se encontravam refugiados num prédio de sindicato operário foram queimados vivos e muitos alvejados com balas de rifles com lentes teleobjetivas. Doloroso testemunho histórico do que representa esse governo e o Estado ucraniano e sua burguesia mercenária, oligarca, que junto com a OTAN tem financiado e preparado organizações paramilitares neonazistas.
Todos eles são responsáveis pela execução de inúmeros crimes, com destaque para o Right Sector e outras milícias fascistas, que nunca foram objeto de manchetes acusando-os dos crimes hediondos cometidos contra os seus opositores. Os grandes meios de comunicação em nenhum momento denunciaram ou revelaram os crimes contra os “direitos humanos” e a vida.
A responsabilidade dos crimes e barbaridades que vêm sendo cometidos, em nome da “liberdade” e da “democracia” na Ucrânia e em outros países destruídos pela OTAN, faz parte de uma grande realidade trágica, deliberadamente ocultada e abafada pelos senhores que controlam e dominam os meios de comunicação do mundo capitalista. Isto, conformando uma cumplicidade global em torno desses crimes, que contam com o consentimento da OTAN. Operada através de várias agências internacionais de inteligência norte-americana e europeia.
O caminho a seguir pelos trabalhadores e a maioria do povo está para além desses fatos e realidade horrenda fomentada e criada pelas classes dominantes ocidentais imperialistas sob a direção dos EUA, juntamente com os seus sócios europeus que compartilham a divisão dos espólios das riquezas naturais de várias nações e daquelas geradas pelos que vivem do trabalho. Os trabalhadores, em nível internacional, devem construir uma linha de autonomia política de classe nesse confronto.
Isto porque, mesmo não podendo igualar a intervenção Russa na Ucrânia às invasões que o imperialismo norte-americano e seus aliados europeus têm realizado em toda a sua história, não podemos perder de vista, o que Valéria L. Ribeiro chama atenção de forma precisa: “A Rússia, embora atuando em um quadro de imperialismo marcado pela afirmação dos Estados Unidos, não está fora do sistema capitalista e nem propondo outra forma de organização social. Ela atua como um Estado capitalista, dentro de uma ordem capitalista, procurando manter as condições estruturais de sua economia e sociedade. Nesse sentido ela atua recorrendo a violência na invasão da Ucrânia, como observamos nas últimas semanas, para resistir sim, e confrontar o império americano, mas também para sustentar sua economia nacional”.[1]
Dessa maneira, tanto os EUA como seus vassalos europeus lutam e agem a favor dos interesses oligárquicos e capitalistas no marco da disputa internacional do mercado e em suas próprias relações econômicas e sociais internas. Por isso mesmo, o conflito atual de guerra entre EUA, OTAN, UE e Rússia na Ucrânia representa países ou união de países que não são pacíficos, tampouco referenciados em padrões éticos-morais e culturais centrados na paz. Essa guerra e suas atrocidades que emociona e assusta a todos, é uma guerra de classe, em prol da defesa de interesses das classes dominantes de cada nação em confronto. Portanto, não cabe a classe trabalhadora e a maioria do povo derramar o sangue ou torcer pelos interesses dos seus senhores que sempre querem se impor como “donos do mundo” e da condição humana.
Mas, não basta publicar declarações de princípios políticos, ideológicos e doutrinários como demarcação política estratégica nos marcos desse conflito e de outros determinados no interior do mundo capitalista em crise. É preciso articular e construir movimentos internacionais amplos à esquerda que sejam capazes de confrontar e desnudar a hipocrisia e falsidades perpetrados por meio da mídia capitalista que atua como cão de guarda da ordem social dominante. Caso contrário, o movimento internacional dos trabalhadores continuará como um grande ausente, massacrado ideologicamente pela maquinaria de guerra da mídia escrita, aberta e virtual.
Lutar pela paz sem um novo horizonte de sociabilidade humana e de relações entre os povos fundado na cooperação e solidariedade não conduzirá a nenhuma transformação desse modelo civilizatório fundado na violência e na guerra de conquistas e de apropriação de territórios, riquezas naturais e financeiras. A guerra atual não se resume ao território ucraniano, ela se alastra em todas as sociedades capitalistas através de várias facetas de um mundo cada vez mais desigual e marcado pela superexploração e opressão em todos os níveis da relação social e humana. É hora dos justos se levantarem para tomar o destino da história e de suas vidas em suas próprias mãos.
*Eliziário Andrade é professor titular de história na UNEB.
Nota
[1] “O imperialismo contemporâneo”. In: A Terra é Redonda.