Os eletrochoques da emergência conjuntural

Imagem: Edoardo Botez
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Por MILTON PINHEIRO*

A reação às PECs mostrou a força da mobilização, mas a esquerda não pode depender eternamente dos erros da direita. O desafio urgente é forjar um programa mínimo unificado e travar a disputa ideológica para pautar sua própria ofensiva e alterar a correlação de forças

1.

O último período da política brasileira foi marcado por uma conjuntura de emergência que conseguiu desvelar contradições centrais das movimentações de forças políticas no campo da institucionalidade. O governo federal e seus aliados que dirigem, a partir da aliança burgo-petista, o frágil governo de união nacional, conseguiram novo fôlego na dinâmica da disputa política em virtude dos erros das lideranças de direita e extrema direita a partir dos acontecimentos animados por Donald Trump e pelo quadro de julgamento dos golpistas de 8 de janeiro de 2023.

A interpretação da política não pode ser capturada pelos analistas da mídia corporativa que apenas leem o que o patronato deseja. Afinal é falso o discurso que o problema do Brasil é a polarização. O Brasil é um país politizado centralmente por dois campos em disputa: uma extrema direita que lidera a direita institucional, vulgarmente chamada de Centrão, termo midiático criado para fugir a uma definição ideológica mais rigorosa e os progressistas, onde se situam o PT, organizações do campo proletário e popular, liberais democratas clássicos e entidades representativas do bem comum.

A questão é que nessa bifurcação da politização, e não polarização, a liderança da extrema-direita que dirige o campo da direita, opera o neofascismo, o racismo, a LGBTfobia, o machismo e a misoginia, o ódio aos pobres e pretos das mais diversas periferias, a destruição do meio ambiente, cultivam as fake news e o ódio de classe, agem para deseducar a proteção da vida social quando caluniam as vacinas e criminalizam a ciência.

Contudo, no campo progressista o discurso e a prática são frágeis, recortados por identidades descoladas da classe, generalidades difusas para repercutir interesses da cidadania e a incapacidade de operar a disputa ideológica necessária para desvelar a cena política. A centralidade da luta política se dá entre aqueles que dizem que é de direita e faz um discurso pautado em “deus, pátria e família”, tão apelativo na atual quadra histórica, e o outro pólo que apenas afirma ser difusamente democrata. Com essa lógica de debate e ação política a derrota é previsível.

No entanto, um novo eixo articulador da política ganhou força. O controverso estoque de banalidades, narrativas fictícias, fake news e ações estúpidas desenvolvidas pelo presidente dos EUA, em especial o tarifaço e os ataques contra o Brasil, criaram uma ordem unida para alimentar os discursos, entrevistas e atos deliberadamente bizarros da direita e extrema direita no Brasil, tendo como porta-voz desse apocalipse, o deputado Eduardo Bolsonaro.

Esse comerciante da política, deliberadamente traidor dos interesses do Brasil, encontrou um eixo aglutinador para exercer suas ações vulgares nos EUA, sempre a serviço do líder da extrema direita, Donald Trump, e da campanha pela impunidade de seu pai e figuras congêneres.

Os ataques do governo estadunidense ao Brasil, a tentativa de Donald Trump de emparedar as instituições da República, com ameaças e sanções por conta do devido julgamento do criminoso Jair Bolsonaro, fizeram com que os subalternos ao imperialismo estadunidense aprimorassem suas ações no Brasil, atacando a soberania do país e propondo trocas promíscuas como a diminuição do tarifaço/retirada de sanções contra ministros do STF pela impunidade de Jair Bolsonaro e de membros da organização criminosa que pretendia assaltar o poder comandada por ele.

2.

Nesse processo, a cena política começou a ser desvelada, amplos segmentos sociais saíram em defesa da soberania popular, questionando o papel subalterno da família Bolsonaro e do partido porta-voz do imperialismo no Brasil, o PL. O governo de união nacional percebeu, nessas contradições da cena política em aberto, a possibilidade de encontrar um fio condutor para se posicionar em relação ao governo de Donald Trump, o bolsonarismo, o balcão do Congresso Nacional e o mundo político exterior. Lula empreendeu uma nova trilha, muito bem posicionada na propaganda dentro das redes de contágio, iniciando o contra-ataque político, mesmo que de forma inicialmente tímida.

Nessa conjuntura, ainda no seu processo inicial, as frações burguesas que estão muito bem posicionadas no bloco no poder (agronegócio/rentismo) se postaram sempre com muitas reservas diante do governo federal, claudicaram sobre o que fazer diante do tarifaço, mesmo com a sinalização de Lula/Fernando Haddad/Geraldo Alkmin de que o pacote de proteção estava sendo construído no laboratório do governo federal para uma nova bolsa burguesia.

Essa tergiversação burguesa, apoiar o posicionamento da extrema direita ou ficar no balcão do governo, foi o tempo suficiente para que a articulação política do Palácio de Planalto operarasse na mídia, ampliando seu acesso ao conjunto da população, mas também desenvolvendo ações para abrir outros mercados internacionais para a burguesia e seus produtos.

Coube, portanto, ao governo, aumentar o impasse dentro das principais frações burguesas, impedindo que elas marchassem de forma articulada para os braços da direita palaciana (governadores bolsonaristas), ao tempo que rompia o cerco internacional ao ampliar novos mercados para essas frações. Esse quadro por si só já seria um grande eletrochoque na correlação de forças dentro da conjuntura.

Contudo, a extrema direita, vanguarda burguesa em período de crise capitalista, decidiu aprofundar o eixo operado por seus líderes. Ou seja, o crime organizado no parlamento brasileiro viu sua chance de criar um imenso arcabouço de impunidade para poder realizar seus negócios e agir impunemente, também, na vida privada.

3.

Entrou em cena o segundo eletrochoque, esse de caráter decisivo, que foi a votação da PEC da blindagem ou como ficou conhecida, a PEC da bandidagem. Esse movimento de grande repercussão no parlamento brasileiro foi ao plenário com caráter de celeridade e contou com algo em torno de 350 votos, inclusive com 12 votos de parlamentares do PT. Essa impostura política de imediato sofreu ataques de diversos segmentos: governo federal, artistas, entidades e personagens do campo popular e proletário, Igreja Católica e outras lideranças religiosas, deputados e senadores, mas também da imprensa corporativa.

O desiderato da extrema direita com a PEC da blindagem fomentou também o avanço no sentido da votação da chamada PEC da anistia (impunidade aos golpistas) diante da votação que obtiveram com a PEC da blindagem, essa pauta da extrema-direita funcionou como um terceiro eletrochoque na emergência conjuntural, embora, agora, o questionamento tenha funcionado em bloco.

Esse quadro de afronta política e social, executada pela extrema direita, encontrou uma grande reação não só na sociedade democraticamente organizada, mas na difusa cidadania encapsulada pela ideologia do senso comum. Setores do esgarçado tecido social se posicionaram contra as duas PECs.

A cena política foi desvelada, ou seja, evidenciaram-se quais eram os fins últimos das duas PECs. Isso possibilitou que, em tempo recorde, se organizassem manifestações pelo Brasil. Atos políticos, shows de protestos, passeatas, repúdio generalizado ao escárnio que representavam as duas PECs. O dia 21 de setembro se transformou na possibilidade, agora sim, de um disparo de eletrochoque na esquerda da ordem, suas centrais sindicais, movimentos sociais do campo e das cidades. Essa grande movimentação social impactou o senado que reverteu o quadro da votação na câmara, terminando por sepultar a PEC da blindagem.

Somado a esses movimentos organizados do dia 21 de setembro, o discurso do presidente Lula no plenário da ONU, mas, em especial, o discurso dele em um evento sobre a questão da democracia e o impacto da direita no mundo, também na ONU, permitem estimular a abertura das comportas que consigam romper o dique do imobilismo social e contribuam para superar a conciliação política do governo e seus aliados no campo popular e proletário. Será que podemos desvelar esse cenário político e marchar para o enfrentamento em outra correlação de forças?

O real e concreto nesse momento, analisando a partir da relação entre política de Estado e bloco no poder, independente do que ocorreu no dia 21 de setembro, e do protocolo de intensões apresentado por Lula da Silva fora do Brasil, podemos confirmar duas questões: a primeira é que o governo de união nacional do Brasil opera uma dialética que afirma um neoliberalismo de Estado para funcionar entre a lógica de recursos máximos para o capital e recursos escassos para projetos sociais.

Segundo, a emergência conjuntural do último ciclo de ações, incluindo o dia 21 de setembro, confirmam que a esquerda não tem pauta que mobilize a sociedade, não tem programa que construa uma unidade de ação e que as trilhas por onde marchamos foram abertas pela obtusidade da radicalização exercida pela direita e extrema-direita dentro e fora do parlamento.

Lutamos vagamente contra a burguesia a partir dos erros do inimigo de classe, demos passos tímidos, ainda estamos operando a partir dos confrontos que existem entre os inimigos, tudo isso é importante, contudo, isso não define um novo ciclo de lutas. Falta a esquerda um programa mínimo que possa construir uma férrea unidade de ação, sem hegemonismos, mas com forte impacto na luta de classes e com possibilidade de, para além das ações do governo federal, organizar uma intervenção popular e proletária centrada nas questões mais importantes do ponto de vista tático para nossa classe.

Precisamos de um bloco de lutas, frente popular de mobilização, coordenação nacional de lutas sociais, seja lá o nome que o consenso nos permitir, que possa convocar plenárias nacionais, reproduzidas pelos estados e cidades no sentido da construção dessa frente de lutas.

Temos um conjunto diverso de pontos: taxação das grandes fortunas, redução da jornada de trabalho para 30h sem redução salarial, fim da escala 6X1, redefinição do orçamento da união para contemplar investimentos sociais, reexame nacional da imensa fortuna que o poder público destina à burguesia através de subsídios, rever as diversas reformas trabalhistas e previdenciárias que causaram desemprego e estrangularam a previdência social, revogar a reforma do ensino médio, reestatizar empresas que foram criminosamente doadas à iniciativa privada, acabar com a lei do teto de gastos, não permitir que os pisos constitucionais sejam atingidos, criar a lei de responsabilidade social no lugar da lei de “responsabilidade” fiscal, impedir o novo golpe da reforma administrativa, avaliação da dívida pública que é fonte inesgotável de transferência de riqueza para a burguesia, rever a “independência” do Banco Central, fazer a regulação das redes de contágio, etc.

Todavia, uma grande questão necessita fazer parte desse debate: precisamos entrar em cena para fazer a disputa ideológica. O que é ser de esquerda, porque somos comunistas, porque defendemos a liberdade de culto e o Estado laico, porque fazemos greve, etc. A extrema-direita saiu do lixo da história para se afirmar enquanto tal e a esquerda se esconde nas palavras difusas da cidadania burguesa. Esse debate tem que ser central na disputa ideológica.

É com essa disputa ideológica sem trégua, com um programa mínimo unificado e uma férrea unidade de ação, tendo a bandeira vermelha no posto de comando da militância política, que nós faremos avançar a luta social no espaço vivo da sociedade de classes, contribuindo para mudar a relação de forças e criando espaços de poder popular. Afinal, como nos informa Sofia Manzano: “O comunismo é a proposta mais generosa que a humanidade já produziu”.

Portanto, está na hora da esquerda pautar a sua ofensiva!

*Milton Pinheiro é professor titular de história política da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e militante do PCB.


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