Por LEONARDO SACRAMENTO*
Os brancos identitários de hoje, tanto à direita quanto à esquerda, nada mais fazem do que repetir a teoria identitária branca e supremacista da ditadura civil-militar
1.
Segundo documentos recentes outrora sigilosos,[i] a ditadura no Brasil considerava os movimentos negros subversivos porque denunciariam algo inexistente no Brasil: racismo. Para os militares e empresários engajados na ditadura civil-militar, o Brasil seria uma experiência perfeita de “miscigenação” das “três raças”.
Essa teoria é oriunda do alemão Von Martius, naturalista que a expôs em concurso do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1845. Para ele, a raça branca se sobressairia porque biologicamente as raças inferiores se sucumbiriam, emprestando-a algumas características. Se ele criou a teoria da “democracia racial” sem saber, a qual seria refinada por Gilberto Freyre 90 anos e pelos militares 120 anos depois, também pavimentou a teoria do embranquecimento, uma vez que as raças inferiores desapareciam na raça superior, a branca. Para o fundador da teoria racial brasileira, “o sangue português, em um poderoso rio deverá absorver os pequenos confluentes das raças da Índia e da Etiópia”, na exata medida determinista da qual “em todos os países se formam as classes superiores dos elementos das inferiores”.[ii]
De posse desse dado, o descendente direto de escravistas Gilberto Freyre, como todo descendente no começo do século XX, romantizou o escravismo e, portanto, a história familiar. Se José Bonifácio defendia que a mulher indígena deveria se casar com homens brancos, pois indígenas seriam flagrantemente inferiores, indolentes e preguiçosos,[iii] Gilberto Freyre, respondendo em parte a racialização sofrida pelos paulistas em 1932, classificando todos os nortistas (depois chamados de nordestinos) de cabeças chatas e baianos,[iv] pois eram maioria nas tropas varguistas, naturalizou o estupro, inclusive o próprio. Para Gilberto Freyre, “todo brasileiro, mesmo alvo, de cabelo louro, traz na alma” as características espirituais “do indígena ou do negro”. Mas como?
“Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolegando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-do-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem. Do moleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo” (FREYRE, 1963,).[v]
A amamentação é uma cópia cuspida do Joaquim Nabuco, o monarquista que defendeu o fim da escravidão para embranquecer a população, já saturada de “sangue preto”. O estupro é uma constatação de tradição familiar, pois que escolha teria a negra de 12 anos cuidada “como se fosse da família”? Ainda mais de uma família tradicional de Pernambuco, leia-se escravista? É o que chamei de “estupro civilizatório”.[vi]
2.
Mas o que diz os documentos dos militares? Que a denúncia do racismo e o movimento negro vinculado à negritude e à africanidade seriam uma “importação dos EUA”. Portanto, os brancos identitários de hoje, tanto à direita quanto à esquerda, esses tiozões bossanovistas saudosos da origem “miscigenada” brasileira, nada mais fazem do que repetir a teoria identitária branca e supremacista da ditadura civil-militar, usada para vender um país harmonioso ao lado das propagandas da Embratur nos canais europeus com mulheres de fio dental com uma bossa nova de fundo.
Que tal um dia analisarmos como a ditadura financiou a bossa nova e por quê? Bossa nova foi a música estatal da classe dominante brasileira contra a música popular, considerada negra demais para apresentar o país ao “estrangeiro”, leia-se Europa e brancos norte-americanos. A bossa nova é uma solução existencial da elite carioca que abraçou o Golpe. Mas ai de quem falar mal de uma coisa que o brasileiro não sabe que existe, mesmo com toda a propaganda estatal e midiática por décadas, mas que é a representação mais bem acabada da tentativa de expurgar o negro da cultura carioca e brasileira. Felizmente fracassou.
Uma análise de um agente da ditadura, publicada na reportagem, é idêntica ao que é proferido atualmente contra o “identitarismo negro”. Para ele, na “Informação 0361”, de junho de 1977, tudo seria uma importação contrária à gênese brasileira, na qual se resumiria em uma tentativa de “plagiar os blacks norte-americanos”, fomentando o “ódio racial”. Portanto, o racismo existiria somente dos negros contra os brancos, pois o país não teria racismo ou ódios. O argumento é o mesmo reproduzido em 1921 para proibir a entrada de colonos negros norte-americanos.[vii] Que os negros norte-americanos trariam o “ódio” contra os brancos, já que aqui os negros estavam em desaparecimento e não existiria mais racismo. Ou seja, na visão da elite política e econômica branca brasileira, sobretudo a paulista, o racismo desapareceria com a desaparecimento dos negros.
A questão é: a direita e a extrema direita assumirem tal discurso é esperado. Mas e o tiozão branco com chapéu panamá bossanovista que se diz de esquerda? Aquele que tem poster do Chico Buarque e adora um chorinho sentadinho em um bar vazio, que brada contra o “identitarismo importado” do movimento negro supostamente oposto à brasilidade? Vamos classificá-lo como ele é. É um espécime de direita, como Aldo.
Os identitários brancos de esquerda que se arrepiam com o movimento negro se sentiriam muito bem na Ditadura Civil-Militar sobre a questão racial. Aldo Rebelo, agora representante de fazendeiros, que o diga. Grita todos os dias em canais de direita e de esquerda (reforçando a aposta do prefeito desconhecido de São Paulo) que os indígenas e os quilombolas representam um golpe contra a integridade nacional. Ele tem razão, pois representam um duro golpe à propriedade privada fundada na Lei de Terras, o que para a classe dominante é “integridade nacional”.
Para a burguesia, a integridade nacional nada mais é do que a integridade da propriedade privada. Por isso indígenas, negros e quilombolas são os principais alvos de milicias religiosas, principalmente na Bahia, Santa Catarina, Maranhão, Mato Grosso do Sul e até no Rio de Janeiro, como se evidencia com a execução de Marielle Franco. São os únicos hoje que fazem frente ao grande capital com a mera existência sobre uma terra. Eis o busílis do identitarismo branco burguês contra os movimentos negros e indígenas.
*Leonardo Sacramento é professor de educação básica e pedagogo do IFSP. Autor, entre outros livros, de Discurso sobre o branco: notas sobre o racismo (Alameda).
Notas
[i] Militares viram no movimento negro afronta à ideologia racial da Ditadura. Matéria assinada por Maurício Meirelles e Géssica Brandino e publicada em 31 de março de 2024 no jornal Folha de São Paulo. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/03/militares-viram-no-movimento-negro-afronta-a-ideologia-racial-da-ditadura.shtml.
[ii] MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. A História do Brasil. Disponível em https://brasilindependente.weebly.com/uploads/1/7/7/1/17711783/von_martius_como_se_deve_escrever_a_historia_do_brasil_1845.pdf.
[iii] Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil. Projetos para o Brasil. Organização de Miriam Dolhnikoff. Coleção grandes nomes do pensamento brasileiro). São Paulo: Companhia das Letras; Publifolha, 2000.
[iv] WEINSTEIN, Barbara. A cor da modernidade: a branquitude e a formação da identidade paulista. Tradução de Ana Maria Fiorini. São Paulo: Edusp, 2022.
[v] FREIRE, Gilberto. Casa grande e senzala. 12ª edição brasileira; 13ª edição em língua portuguesa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1963.
[vi] O Nascimento da Nação: como o liberalismo produziu o protofascismo brasileiro (Vol. I e II). Disponível em https://editora.ifsp.edu.br/edifsp/catalog/view/107/47/1094 e https://editora.ifsp.edu.br/edifsp/catalog/view/106/46/1093.
[vii] Para um panorama e uma análise sobre a questão, terminando em 1931 com a proibição definitiva após despacho de Octávio Mangabeira no Itamaraty, avô de Mangabeira Unger, ver O Nascimento da Nação: como o liberalismo produziu o protofascismo brasileiro (Vol. II), p. 254-260. Disponível em https://editora.ifsp.edu.br/edifsp/catalog/view/106/46/1093.
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