Os incivilizáveis

Imagem: Efrem Efre
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ARACY P. S. BALBANI*

Educar as várias camadas sociais que usam o SUS e conscientizá-las para praticarem a solidariedade cidadã e a corresponsabilidade de cuidar do patrimônio de todos é um desafio

Atos de vandalismo contra unidades públicas de saúde são registrados em todas as regiões do Brasil. Os danos provocados variam: destruição de equipamentos e mobiliário; pichação de paredes recém pintadas; desligamento da chave geral de eletricidade, inutilizando o estoque de vacinas e outros produtos que necessitam de refrigeração, ou a interrupção temporária do atendimento para reparar o patrimônio público depredado.

Para tentar coibir esses crimes, que causam prejuízo considerável aos cofres públicos, muitas administrações instalam câmeras de videomonitoramento e sistemas de alarme no maior número possível de locais.

Mas algumas atitudes de parte dos usuários do sistema universal de saúde, as quais não têm a mesma violência, também prejudicam o serviço à população e escapam a essa vigilância.

Há quem jogue copos descartáveis usados e restos de alimentos no chão; coloque pontas de cigarro e embalagens vazias em vasos de plantas e jardins, ou suje a unidade de saúde pelo costume de apoiar os pés na parede.

Mais problemática é a falta a consultas e exames pré-agendados sem avisar a unidade de saúde a tempo de preencher a vaga com outro usuário que necessita do mesmo atendimento. Consequência: as filas de espera se alongam, enquanto profissionais e equipamentos permanecem ociosos em certos momentos. Detalhe: o pessoal que atua no setor privado de saúde enfrenta situação semelhante.

Há muita discussão sobre as causas desses comportamentos incivilizados e as formas de os minimizar.

Educar as várias camadas sociais que usam o SUS e conscientizá-las para praticarem a solidariedade cidadã e a corresponsabilidade de cuidar do patrimônio de todos é um desafio e tanto.

Apesar da popularização das redes digitais e dos smartphones, muita gente ainda acha que as unidades de saúde do SUS, assim como o resto do patrimônio estatal, são “do governo”, e não do próprio povo. Ódio a um governo ou governante pode desaguar em desprezo pelo equipamento público.

Priorizar a saúde coletiva não é um hábito da cultura nacional. Haja ferramenta de inteligência artificial para lembrar os usuários de seus compromissos marcados no SUS e confirmar o comparecimento automaticamente para não desperdiçar vagas.

O desinteresse de parte significativa da população em participar das reuniões dos conselhos municipais de saúde é crônico. Em vez de exercerem o controle social do SUS, assegurado pela Constituição Federal, muitos preferem buscar gabinetes de vereadores para solucionarem os seus problemas de saúde individuais ou familiares.

Várias pessoas ausentes das instâncias democráticas do SUS para reivindicar direitos e formular políticas públicas comparecem a protestos, nem sempre pacíficos, de grupos políticos radicais acontecidos nos espaços públicos. Exibem selfies da participação nos seus perfis e comunidades. Esses eventos geralmente são planejados, financiados, convocados e coordenados por meio das próprias redes digitais.

Em meio a tantas questões intrincadas que a psicologia social e as ciências políticas tentam elucidar, um fato importante: no feriado de Finados mais recente, não houve notícias de grandes atos públicos em respeito aos cerca de 710.000 mortos por COVID-19 no Brasil.

As iniciativas relevantes para preservar a memória dessas vítimas ainda são o Memorial instalado no Senado Federal em fevereiro de 2022, e o compromisso de abrir o Memorial da Pandemia de COVID-19 no Centro Cultural do Ministério da Saúde no Rio Janeiro.

Neste momento, o mercado financeiro pauta, a ala conservadora do Congresso Nacional exige e o Governo Federal estuda um corte de verbas públicas que pode afetar o SUS. Paralelamente, pesquisadores renomados apontam o impacto das mudanças climáticas na saúde humana e o perigo permanente do negacionismo científico.

A falta de memória coletiva da maior catástrofe da História da saúde pública brasileira e o risco de corte do orçamento para a Saúde acendem o alerta: nem todos os políticos, influenciadores digitais e magnatas incivilizáveis também são inelegíveis.

Para a nossa sobrevivência, não cabe indiferença. A vigilância cidadã democrática e organizada em defesa da saúde pública se faz cada vez mais necessária no país.

*Aracy P. S. Balbani é médica otorrinolaringologista. Atua como especialista exclusivamente no SUS no interior paulista.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Bolsonarismo – entre o empreendedorismo e o autoritarismo
Por CARLOS OCKÉ: A ligação entre bolsonarismo e neoliberalismo tem laços profundos amarrados nessa figura mitológica do "poupador"
Fim do Qualis?
Por RENATO FRANCISCO DOS SANTOS PAULA: A não exigência de critérios de qualidade na editoria dos periódicos vai remeter pesquisadores, sem dó ou piedade, para um submundo perverso que já existe no meio acadêmico: o mundo da competição, agora subsidiado pela subjetividade mercantil
Carinhosamente sua
Por MARIAROSARIA FABRIS: Uma história que Pablo Larraín não contou no filme “Maria”
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
Distorções do grunge
Por HELCIO HERBERT NETO: O desamparo da vida em Seattle ia na direção oposta aos yuppies de Wall Street. E a desilusão não era uma performance vazia
Carlos Diegues (1940-2025)
Por VICTOR SANTOS VIGNERON: Considerações sobre a trajetória e vida de Cacá Diegues
O jogo claro/escuro de Ainda estou aqui
Por FLÁVIO AGUIAR: Considerações sobre o filme dirigido por Walter Salles
Cinismo e falência da crítica
Por VLADIMIR SAFATLE: Prefácio do autor à segunda edição, recém-publicada
A força econômica da doença
Por RICARDO ABRAMOVAY: Parcela significativa do boom econômico norte-americano é gerada pela doença. E o que propaga e pereniza a doença é o empenho meticuloso em difundir em larga escala o vício
A estratégia norte-americana de “destruição inovadora”
Por JOSÉ LUÍS FIORI: Do ponto de vista geopolítico o projeto Trump pode estar apontando na direção de um grande acordo “imperial” tripartite, entre EUA, Rússia e China
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES