Os supridores

Eliezer Markowich Lissitzky, Composição, 1922.
image_pdf

Por DANIEL BRAZIL*

Considerações sobre o romance de José Falero

Vez em quando surge na literatura contemporânea um autor que parece ter surgido do submundo, sem influências ou referências de estilo, e causa impacto pela originalidade, frescor e, quase sempre, contundência temática, permeada por uma certa revolta de classe. Não é um fenômeno brasileiro, algo parecido deve ocorrer em todas as línguas, uma vez que não há nação em que as desigualdades sociais sejam completamente ocultadas.

Lima Barreto, Plínio Marcos, Maria Carolina de Jesus, Ferréz, Paulo Lins e, mais recente, o carioca Geovani Martins, são alguns nomes geralmente citados como paradigmas dessa corrente. Alguns argumentam que até mesmo Machado de Assis poderia ser um exemplo vindo da mesma origem, mas do que falamos aqui é de construir uma obra de voz popular, como porta-voz de seus semelhantes, e não buscando absorver a linguagem e a temática universal dos mestres de sua época. Não basta ter nascido na favela, é preciso transportá-la, traduzi-la em sua escrita.

Obviamente, estamos aqui falando apenas da prosa, sob forma de conto, crônica ou romance. Por vários motivos, a poesia sempre foi um veículo mais versátil para traduzir as angústias nas periferias sociais e culturais de nosso planeta. Até pelo fato de que dispensa papel e gráfica, basta um muro e um pedaço de carvão. Ou a própria voz.

O prosador José Falero é um notável representante dessa linhagem. Nascido na periferia de Porto Alegre, conviveu com a pobreza e a barra pesada do tráfico, da discriminação e da violência policial. Estreou com o volume de contos Vila Sapo, e em 2020 lançou o romance Os supridores, vencedor de vários prêmios.

A narrativa começa de forma cautelosa, introduzindo os personagens e o cenário central do enredo. Um supermercado, onde trabalham Pedro e Marques, os supridores do título. Mais conhecidos como repositores em outras regiões do Brasil, são aqueles funcionários que arrumam as mercadorias nas prateleiras e cuidam para que estejam sempre abastecidas.

Pedro é apresentado como leitor e sonhador inconformado. Almeja uma vida melhor, como todos, e carrega uma instintiva revolta contra a situação de pobreza. Chega a citar Marx nos diálogos com o amigo, que é casado e acaba de receber a notícia de que a mulher está grávida pela segunda vez. Marques acaba sendo convencido de que o único jeito de saírem da miséria é passarem a vender maconha no bairro, nicho em desuso pela preferência dos traficantes da região por cocaína e crack. Passam, portanto, a serem supridores de outra categoria.

Em linguagem que oscila entre a norma culta e a reprodução da fala cotidiana das periferias, cheia de palavrões e sem muita sutileza, José Falero constrói uma trama envolvente, que ganha fluência e contornos de thriller policial na segunda metade da narrativa.

Personagens secundários vão ganhando relevância, como Angélica, a mulher de Marques, o segurança do supermercado, o adolescente Luan, os chefes do tráfico para quem eles pedem autorização para operar, o gerente do supermercado. Delineia-se todo um universo à margem da lei e da ordem, que delimita regras de convívio, que institui uma ética própria de comportamento social. E onde a justiça é feita com as próprias mãos, graças à inércia do Estado.

José Falero conduz a narrativa com segurança, e trabalha na medida certa o perfil psicológico dos personagens até o desenlace eletrizante da trama. A repetição de palavrões pode enjoar alguns leitores mais sensíveis, mas o autor sempre terá o álibi de que “na quebrada se fala desse jeito, tá ligado?”

Os supridores é um romance essencial para compreender a realidade das periferias metropolitanas brasileiras, deste imenso mundo de excluídos que de vez em quando consegue se expressar através de tortuosas vias. Remete ao sonho universal de subir na vida a qualquer preço, e enfoca personagens que acabam pagando um preço alto na gôndola de oportunidades que o supermercado-mundo oferece. E o autor não observa com um binóculo, de longe, como se fosse um acadêmico, mas com uma mirada próxima, na altura dos olhos, com a sabedoria inata de irmão.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

Referência


José Falero. Os supridores. São Paulo, Todavia, 2020, 304 págs. [https://amzn.to/3rxSPpx]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
3
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
4
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
5
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
6
A riqueza como tempo do bem viver
15 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: Da acumulação material de Aristóteles e Marx às capacidades humanas de Sen, a riqueza culmina em um novo paradigma: o tempo livre e qualificado para o bem viver, desafio que redireciona o desenvolvimento e a missão do IBGE no século XXI
7
A crise do combate ao trabalho análogo à escravidão
13 Dec 2025 Por CARLOS BAUER: A criação de uma terceira instância política para reverter autuações consolidadas, como nos casos Apaeb, JBS e Santa Colomba, esvazia a "Lista Suja", intimida auditores e abre um perigoso canal de impunidade, ameaçando décadas de avanços em direitos humanos
8
Norbert Elias comentado por Sergio Miceli
14 Dec 2025 Por SÉRGIO MICELI: Republicamos duas resenhas, em homenagem ao sociólogo falecido na última sexta-feira
9
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
10
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
11
Ken Loach: o cinema como espelho da devastação neoliberal
12 Dec 2025 Por RICARDO ANTUNES: Se em "Eu, Daniel Blake" a máquina burocrática mata, em "Você Não Estava Aqui" é o algoritmo que destrói a família: eis o retrato implacável do capitalismo contemporâneo
12
A anomalia brasileira
10 Dec 2025 Por VALERIO ARCARY: Entre o samba e a superexploração, a nação mais injusta do mundo segue buscando uma resposta para o seu abismo social — e a chave pode estar nas lutas históricas de sua imensa classe trabalhadora
13
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
14
Benjamim
13 Dec 2025 Por HOMERO VIZEU ARAÚJO: Comentário sobre o livro de Chico Buarque publicado em 1995
15
Violência de gênero: além do binarismo e das narrativas gastas
14 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Feminicídio e LGBTfobia não se explicam apenas por “machismo” ou “misoginia”: é preciso compreender como a ideia de normalidade e a metafísica médica alimentam a agressão
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES