Literatura na quarentena: Nunca houve tanto fim como agora

Imagem: Elyeser Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por Daniel Brazil*

Comentário sobre o mais recente livro de Evandro Affonso Ferreira

De tudo que li durante o ano passado, nada me marcou tanto quanto o romance Nunca houve tanto fim como agora. Demorei meses remoendo a narrativa, acordando no meio da noite a relembrar imagens saídas de suas páginas, me surpreendendo com a linguagem inovadora.

Evandro Affonso Ferreira é um escritor consagrado, que domina como poucos o vernáculo, um inventor absoluto, embora pouco conhecido do grande público. Transita por uma estrada literária que pouquíssimos ousam trilhar, sem nunca abrir mão da originalidade. Uma espécie de Guimarães Rosa urbano (ele discorda da comparação!), que subverte e decanta a linguagem até atingir uma saturação de sentidos que beira a poesia.

Neste romance, de 2017, acompanha a vida de cinco meninos de rua, narrada de forma fragmentada pela memória do (talvez) único sobrevivente, anos depois.

Eurídice é a figura central do romance. O nome evoca a ninfa grega que Orfeu tenta resgatar do Hades. O inferno, no caso, é a metrópole sombria e desigual por onde rastejam os desvalidos, os abandonados, os decaídos e amaldiçoados. Debaixo de pontes, em becos imundos, tomando banho nas enxurradas, comendo restos, praticando pequenos furtos e, às vezes, sonhando, o quinteto perambula entre ranhos e remelas, e convive com o fantasmagórico personagem que os abraça toda noite: o Relento.

Eurídice é figura materna para os menores do grupo, amante para os mais velhos, paixão para o narrador, Seleno. “Menina-mulher de corpo inflamável”. Seus comentários mordazes sobre a vida contrastam com o lirismo das observações de Ismênio, o menor, um anjo decaído e alucinado capaz de chegar para uma cega e dizer “Ei, moça bonita, se quiser posso ser seu cachorro-guia pro resto da vida”.

Na literatura brasileira, talvez apenas Jorge Amado tenha enfocado um grupo de meninos de rua, no seu clássico Capitães de Areia (Companhia das Letras). Evandro reinventa o mote e coloca o sarrafo bem acima, criando um Orfeu-narrador de voz poderosa: “Não há punhal flambado capaz de remover a umidade da noite, cujo nome é Relento. Cidade? Esquartejadora da nossa esperança: éramos todos forasteiros no próprio lugar onde havíamos nascido.”

Em pouco mais de 150 páginas, Evandro Affonso Ferreira nos oferece o mais pungente retrato da vertiginosa desigualdade em que estamos mergulhados, sem abdicar do lirismo. Obra de um mestre contemporâneo, que já produziu obras-primas como Minha Mãe se Matou sem Dizer Adeus, prêmio APCA de melhor romance em 2010, e O Mendigo Que Sabia de Cor os Adágio de Erasmo de Rotterdam, de 2013, laureado com o Jabuti.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

Referência

Evandro Affonso Ferreira. Nunca houve tanto fim como agora. Rio de Janeiro, Record, 2017 (https://amzn.to/3E5N2KF).

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Fernando Nogueira da Costa Caio Bugiato Berenice Bento Jorge Luiz Souto Maior Dennis Oliveira Fernão Pessoa Ramos Tarso Genro Rodrigo de Faria Anselm Jappe Gerson Almeida João Paulo Ayub Fonseca Andrew Korybko Paulo Sérgio Pinheiro Tadeu Valadares Luis Felipe Miguel João Adolfo Hansen Flávio R. Kothe Milton Pinheiro Juarez Guimarães Jean Marc Von Der Weid Eleonora Albano Vinício Carrilho Martinez Marcelo Módolo Antonio Martins Kátia Gerab Baggio Leonardo Sacramento Rafael R. Ioris Gilberto Maringoni Sergio Amadeu da Silveira Ricardo Musse Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Francisco Pereira de Farias Rubens Pinto Lyra Bernardo Ricupero Renato Dagnino Leda Maria Paulani João Feres Júnior Yuri Martins-Fontes Lincoln Secco Eduardo Borges José Costa Júnior Andrés del Río Lorenzo Vitral Marcelo Guimarães Lima Francisco Fernandes Ladeira Antônio Sales Rios Neto Carla Teixeira Osvaldo Coggiola Ronald Rocha Samuel Kilsztajn Matheus Silveira de Souza Alexandre Aragão de Albuquerque Everaldo de Oliveira Andrade Paulo Nogueira Batista Jr Bruno Machado Henry Burnett Claudio Katz Ricardo Abramovay Gabriel Cohn Luiz Bernardo Pericás Alexandre de Lima Castro Tranjan Paulo Fernandes Silveira Manchetômetro Alysson Leandro Mascaro Bruno Fabricio Alcebino da Silva Denilson Cordeiro Remy José Fontana Marilia Pacheco Fiorillo Vanderlei Tenório Ricardo Fabbrini José Dirceu Salem Nasser Julian Rodrigues Mariarosaria Fabris André Singer Igor Felippe Santos Luiz Carlos Bresser-Pereira Afrânio Catani Luiz Marques Valerio Arcary Mário Maestri Lucas Fiaschetti Estevez Thomas Piketty Eugênio Trivinho Walnice Nogueira Galvão Luiz Renato Martins José Luís Fiori Ladislau Dowbor Marcos Aurélio da Silva Luís Fernando Vitagliano Ronaldo Tadeu de Souza Luiz Werneck Vianna Plínio de Arruda Sampaio Jr. Boaventura de Sousa Santos Eleutério F. S. Prado Leonardo Boff Luiz Eduardo Soares José Micaelson Lacerda Morais Jorge Branco João Sette Whitaker Ferreira Chico Alencar Priscila Figueiredo Liszt Vieira Paulo Capel Narvai Ronald León Núñez Henri Acselrad Michael Roberts Heraldo Campos Atilio A. Boron Sandra Bitencourt Alexandre de Freitas Barbosa Eliziário Andrade Marjorie C. Marona Paulo Martins Francisco de Oliveira Barros Júnior Luiz Roberto Alves Leonardo Avritzer Benicio Viero Schmidt Maria Rita Kehl Airton Paschoa Eugênio Bucci Manuel Domingos Neto Daniel Brazil Michel Goulart da Silva Carlos Tautz Érico Andrade Daniel Costa Chico Whitaker Flávio Aguiar Otaviano Helene Armando Boito Marcus Ianoni André Márcio Neves Soares Fábio Konder Comparato João Carlos Loebens Celso Frederico Marilena Chauí Jean Pierre Chauvin João Carlos Salles Elias Jabbour Michael Löwy Bento Prado Jr. Daniel Afonso da Silva Tales Ab'Sáber Luciano Nascimento Slavoj Žižek Celso Favaretto Dênis de Moraes José Raimundo Trindade Ari Marcelo Solon Vladimir Safatle João Lanari Bo José Machado Moita Neto Gilberto Lopes Ricardo Antunes Marcos Silva Annateresa Fabris Valerio Arcary José Geraldo Couto Antonino Infranca

NOVAS PUBLICAÇÕES