Ostia, Pompeia, SP: uma reflexão turística

Imagem: Jacques-Antoine Volaire, 1729-1799
image_pdf

Por MARCO BUTI*

Os sacrifícios humanos, destituídos de simbolismo e magia, estão planejados nos discursos de transparência, austeridade, competição, controle, empreendedorismo, punição, conformismo

As duas cidades romanas compartilham um alto grau de preservação de suas estruturas urbanas divergentes. Ostia é muito mais determinada pela atividade econômica, devido a sua localização na foz (“ostia”) do rio Tibre, que atravessa Roma. Sua situação geográfica a tornou a principal entrada de mercadorias chegadas por via marítima para a capital do império, durante séculos. Mas não se tornou um destino turístico tão disputado quanto Pompeia, desde o início das escavações, ainda em curso.

Falta o elemento dramático, espetacular, a destruição num prazo extremamente curto, não só da cidade, mas da vida de grande parte de seus habitantes, pela erupção do Vesúvio. Uma tragédia raríssima, atestada pelas cavidades deixadas por corpos em agonia, onde o gesso derramado tornou presentes formas mais tocantes que obras de arte. Drama que estimula a imaginação, amplificada por tantos relatos exaltando o sacrifício humano produzido por forças naturais além de qualquer controle, aterrador, luminoso, contrastado, ruidoso, sublime. Não há como negar o terrível fato histórico real, e sua reiteração através de palavras e imagens atrai turistas agora, para o palco dos acontecimentos do ano 79 d.C.

O processo que levou ao abandono de Ostia foi bem diferente, mas não menos natural. O lento e discreto assoreamento, ao longo de séculos, tornou inviável a função portuária, apesar das iniciativas dos imperadores Claudio e Trajano, que procuraram manter ativa a importante função econômica da cidade. Hoje, a foz do Tibre deslocou-se para cerca de três quilômetros além, com as praias da moderna Ostia.

Pompeia e Ostia Antica estão igualmente preservadas, mas a falta da grande notícia histórica torna a visita a Ostia tranquila. A interrupção súbita da vida cotidiana atrai multidões a Pompeia, imaginando uma história real pouco conhecida, mas que evoca grandes templos e monumentos, deuses pagãos e sacrifícios, lutas até a morte entre seres humanos, grandes espetáculos circenses e arquitetônicos, perseguições religiosas, mortes e torturas, mártires e heróis, governantes e militares poderosos, eventualmente cruéis, guerras, invasões, vitórias e derrotas, a queda final do grande império. O pouco espetacular assoreamento não pode disputar a atenção do turista com tais imagens e narrativas.

Life is what’s happen to you while you’re busy making other plans, sugeria John Lennon no início da década de 1980, já durante a gestão Thatcher no Reino Unido, pouco antes do primeiro mandato de Ronald Reagan na presidência dos U.S.A. O curso da vida comum tende a passar despercebido, como se a história se reduzisse aos grandes acontecimentos, que não podem ser negados. O assassinato, o atentado terrorista, o incêndio, a vitória esportiva, a eleição, o desabamento, o acidente ecológico, a guerra, o assalto, o massacre, tornam-se imagens e discursos, focos da atenção, desviada da rede capilar que os alimentou, e lhes daria um sentido mais real. Sobre a complexa palpitação lança-se um véu de dúvidas e desinformação, embaçando as relações com o acontecimento inegável. Um conhecimento melhor demandaria um tempo menos acelerado daquele determinado pela informação audiovisual contemporânea, que impede a reflexão.

Mas até este fluxo caótico de informações registra o fracasso das conferências mundiais sobre o meio ambiente. Até com a superficial informação passante seria possível perceber que as ameaças provem de decisões originadas fora da esfera pública, dos interesses das grandes organizações, que não mantém com os seres humanos relações de direito e cidadania. Esta obrigação caberia aos estados, que vem modificando constituições para atrair investimentos. O patriotismo é mobilizado para eventos como eleições e campeonatos, enquanto o raciocínio não é estimulado a perceber as raízes econômicas dos desastres naturais, educacionais, alimentares, de segurança, saúde e assistência, dos direitos em geral. É pouco crível que pessoas provavelmente formadas nas melhores escolas, em posição de tomar decisões baseadas na racionalidade econômica, a partir da mágica de projeções, estatísticas, tendências, gráficos, médias e indicadores, sejam incapazes de perceber as consequências nos seres humanos e no mundo real. São certamente complexas as razões que levam a uma diferença de mais de 20 anos na expectativa de vida em diferentes bairros de uma mesma cidade – São Paulo. Mas existiria um conjunto de conhecimentos capaz de propor tentativas de solução razoáveis, menos fáceis e mais inteligentes que revoluções e atentados, mais dignas e democráticas que o achatamento da existência, a serviço da eficiência econômica.

Os sacrifícios humanos, destituídos de simbolismo e magia, estão planejados nos discursos de transparência, austeridade, competição, controle, empreendedorismo, punição, conformismo. A morte lenta, invisível, estatística, indireta, a manutenção deliberada de condições que abreviam a vida de grande parte da sociedade, a criação de riscos para otimizar o desempenho econômico, são crimes como as execuções.

Não é preciso o espetáculo de um imperador sanguinário para haver assassinos.

*Marco Buti é professor titular do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da USP.

 

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
3
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
4
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
5
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
6
A riqueza como tempo do bem viver
15 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: Da acumulação material de Aristóteles e Marx às capacidades humanas de Sen, a riqueza culmina em um novo paradigma: o tempo livre e qualificado para o bem viver, desafio que redireciona o desenvolvimento e a missão do IBGE no século XXI
7
A crise do combate ao trabalho análogo à escravidão
13 Dec 2025 Por CARLOS BAUER: A criação de uma terceira instância política para reverter autuações consolidadas, como nos casos Apaeb, JBS e Santa Colomba, esvazia a "Lista Suja", intimida auditores e abre um perigoso canal de impunidade, ameaçando décadas de avanços em direitos humanos
8
Norbert Elias comentado por Sergio Miceli
14 Dec 2025 Por SÉRGIO MICELI: Republicamos duas resenhas, em homenagem ao sociólogo falecido na última sexta-feira
9
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
10
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
11
Ken Loach: o cinema como espelho da devastação neoliberal
12 Dec 2025 Por RICARDO ANTUNES: Se em "Eu, Daniel Blake" a máquina burocrática mata, em "Você Não Estava Aqui" é o algoritmo que destrói a família: eis o retrato implacável do capitalismo contemporâneo
12
A anomalia brasileira
10 Dec 2025 Por VALERIO ARCARY: Entre o samba e a superexploração, a nação mais injusta do mundo segue buscando uma resposta para o seu abismo social — e a chave pode estar nas lutas históricas de sua imensa classe trabalhadora
13
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
14
Benjamim
13 Dec 2025 Por HOMERO VIZEU ARAÚJO: Comentário sobre o livro de Chico Buarque publicado em 1995
15
Violência de gênero: além do binarismo e das narrativas gastas
14 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Feminicídio e LGBTfobia não se explicam apenas por “machismo” ou “misoginia”: é preciso compreender como a ideia de normalidade e a metafísica médica alimentam a agressão
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES